Hoje, o mais clichês de
todos os inícios, mas foi o momento exato em que te vi. Estavas acompanhado.
Por mais ciente dessa condição, presenciar-te em outros braços causou-me desconforto.
A incômoda certeza da verdade que tanto transformei em mentira, tu não és meu.
Talvez nunca fostes e nem torne a ser. Eu que me prendi a ideia de ter-te
comigo em plenitude. Não aconteceu. Vendo-te caminhando de sorriso largo, mãos
dadas naqueles dedos entrelaçados deixando claro quem possui a tua posse. Difícil,
muito, muito difícil. Tentei desviar o olhar para não ter meu sofrimento
descoberto. Falhei. Tu me vistes justamente quando estava hipnotizado em ti, em
tua vida completa, feliz, ao lado de alguém que não era eu. Alguém que chegou
primeiro e ocupou o espaço reservado a mim.
Desconcertado com
aquele encontro, busquei forças para sair dali. Me levantei, mas não andei. As
pernas não atenderam ao meu pedido de fuga. Paralisado, esbarramos
inevitavelmente um no outro. Quanta coisa aqueles olhos disseram em um piscar.
É incrível o quanto os olhos são capazes de falar no silêncio de um encontro.
Respondi inexpressivamente. Tu, sordidamente, ainda sorristes para mim.
Acenastes com a mão como se fôssemos meros conhecidos. Dedilhei de volta em
autômato. Minha face não dizia nada, apenas o espanto era capaz de me definir.
E continuei ali em pé, mãos estendidas ao acaso, vendo-te partir com o
desconhecido, um entrevero entre mim e ti. Talvez eu que fosse o adversário
entre vocês. Sei que sou, mas agora consigo admitir minha frágil condição.
Fiquei parado tempo o
bastante para não perceber o fim do alvorecer. Então, quando minha condição
humana cutucou minha existência, senti meu corpo congelar. Foi a retomada à
realidade que faltava. Segui cambaleante pelas ruas trilhando o teu caminho,
imaginando para onde terias ido com aquele alguém tão feliz e altivo. Me perdi
ao te procurar e me achei ainda mais perdido sem ti. Deve ser essa a sensação
dos amores incorrespondidos, vagar em busca de alguém que quer se perder de nós.
Funcionou. Não consegui te achar. Estava confuso no labirinto dos teus rastros.
Não havia saída, a não ser voltar a mim e me reencontrar. Achei-me à custa de muito
sacrifício. Nem sei de onde tirei forças para regressar. Se eu disser como
cheguei até aqui, estarei mentindo. Não registrei meus passos, apenas segui
como um zumbi que sabe exatamente onde viveu antes da morte.
Com dificuldade, retomei
minhas atividades diárias. Embora, aquela cena continue sendo reproduzida em
minha cabeça. É o filme da vida que ignorei assistir. Trata-se da verdade
suprema, tu não és meu. Sabia disso, não me envolvi por engano. Tinha total
ciência da minha condição efêmera em tua vida. Mesmo correndo perigo, deixei-me
conduzir pelos teus encantos. Aceitei o papel secundário em tua vida como uma
condenação, mas, nos delírios da paixão, não pensamos em consequências, só
bonanças e prazeres. Gozei jubilosamente ao teu compasso. Nestas ocasiões, não
havia céu ou inferno para nos abrigar. Éramos corpos transcendentes no místico entrecruzar
do desejo. Tudo intenso, puro, ardente, real. Esses momentos agora se mesclam
com a verdade de horas atrás. Tu não és meu. Tudo o que vivemos foram breves
mentiras reais.
Na mente, a vontade é
de te cobrar. Voltar no tempo, fazer um escândalo novelesco e te expor em praça
pública. Sangrar em carne viva essa ferida incicatrizável de não te ter. Exibir
toda a amargura acumulada durante esse tempo que estivemos juntos. Seria justo
diante do que perdi por te esperar, pelas noites desejosas de ti, pelos longas
tardes sem tua presença, pelos incontáveis dias em que não se fizestes presente
em mim. Derramar-me em lágrimas na frente dessa pessoa desconhecida que se opôs
entre nós. Esse indivíduo que tu insiste em chamar de protagonista de tua vida,
enquanto eu nem vislumbro a mera vilania interpretativa. Mostrar que sou mais
que figurante. Sou a direção, o enredo, a produção de tua história, da nossa
história. Exigir que voltes a ser meu como antes. Passar esse papelão em praça
pública para merecer estar contigo novamente, eu faria. Deveria ter feito.
Mas, não fiz, não
consigo, não posso, não tenho direito. Sei que não me deves explicação. Tu não
és meu para permitir tamanha cobrança. Eu que me apossei da ideia de a ti
possuir. Ingenuamente, fui acreditar que tinha algum poder sobre ti. Não tinha.
Ninguém tem. Então, preso nesta casa, revivo o bem e o mal ao teu lado. Vejo as
paredes representando nossos instantes de paixão, que começavam e terminavam
com a casa em frangalhos de suor e espasmos de luxúria. Ao mesmo tempo, retomo
à vista de ti acompanhado, feliz com quem tu escolhestes para ser tua companhia
principal. Em teus sorrisos havia uma sintonia incompreendida por mim. Talvez
estivessem fazendo planos para o futuro, quem sabe comemorando alguma data
importante para ambos, ou estivessem apenas desfrutando de um dia tranquilo com
a pessoa amada. Nenhuma dessas opções me conforta.
Tu não és meu mesmo.
Acatei viver nos bastidores do teu coração na esperança de estrelar o
espetáculo do nosso relacionamento. Não aconteceu. A minha chance de brilhar ao
teu lado é cada vez mais improvável. Resta-me abandonar esse papel irrelevante
e ir buscar outros palcos. Tarefa complicada. Me acostumei a sermos um só. Estou
contigo mesmo quando não estás comigo. Contentei-me a essa prisão por muito
tempo. Porém, chegou a hora de me libertar. Preciso me alforriar de ti.
Conceda-me a chance de sobreviver sem os teus carinhos. Permita que a tua
ausência não seja mais um fardo em minha vida. Passe um tempo longe, o mais distante
que puder. Ignore meus chamados, os olhares de apelo, as súplicas nas redes
sociais. Faça de conta que não existo que um dia sua existência também não terá
mais importância para mim.
Quem sabe assim eu me
conforme, supere essa verdade de não seres meu e tolere que outro ocupe o teu
lugar. O que sei é que não posso te ter por completo. Esse é o preço a ser pago
por se envolver com alguém que não é inteiramente nosso. Você nunca foi meu
desde o princípio. Mesmo assim, me contentei com as migalhas de tua presença. Porém,
isso não satisfaz mais a minha fome de ti. Minha alma precisa de algo mais para
sobreviver. Pensei que fostes tu esse alimento. Me enganei novamente. Se
envolver é fazer escolhas erradas. Eu fiz a minha. Vegetei nessa relação e
enfraqueci. Quase sucumbi por inteiro. Necessito de forças para recomeçar. Na
verdade, frente a dor daquela certeza, quando te vi hoje mais cedo, fui
energizado por uma vontade de recomeço que desconhecia. Após retorcer-me de
dor, levantei do chão, recolhi os pedaços de ti jogados pela casa, arrumei tudo
o que coube numa sacola e me desfiz das lembranças de ti. Em epifania, fiz isso
porque finalmente notei o que meu coração não havia detectado, tu não és meu.