Dentre as muitas
violências simbólicas das quais convivemos, o assédio talvez seja o mais comum
entre nós e, infelizmente, naturalizado pela nossa cultura ainda machista. Por
essa razão, não vemos com maus olhos práticas tidas ofensivas para alguns, como
soltar uma cantada na rua para uma pessoa desconhecida, secá-la com olhos
desejosos de prazer, julgar sua roupa e/ou comportamento como convidativos,
passar a mão em seu corpo sem o consentimento ou qualquer intimidade com a pessoa
e, muitas vezes, usar do poder para conseguir privilégios sexuais. São ações
que não seguem uma obrigatoriedade cronológica, mas se materializam em
contextos bem claros em que há um assediador e uma vítima. Essas premissas
foram fixadas ao longo da nossa história sutilmente, quando se atribuiu à
educação entre homens e mulheres valores de caçador a eles, e a elas de presas
resignadas a serem consumidas sem espernear. Quando elas se rebelam, todavia,
seus algozes transformam-se em animais brincalhões que não queriam realmente
comer aquela presa.
Foi o que talvez tenha
ocorrido com o ator global José Mayer, acusado de ter posto a mão na vagina da
figurinista Susllen Tonani na emissora. Após o relato da
moça, outras atrizes, celebridades e anônimos saíram em defesa da vítima. Muito
justo, diante da realidade vivida por muitas mulheres famosas ou não em
território nacional. Depois de ter dado um tiro pela culatra, o ator se
desculpou publicamente, acredito que por pressão da Globo devido a tamanha
repercussão do caso. Porém, é na grandiosidade do incidente que a reflexão se
faz necessária. Quem é o predador em questão? Galã de inúmeras novelas, já
contracenou com atrizes de diversas idades, mas sempre na posição de macho
alfa, aquele que domina o pedaço e se torna disputado pelas fêmeas ao redor. A própria
emissora contribuiu para essa imagem no ator. Então, se a vida imita a arte ou
a mimese se faz ao revés disso, Mayer incorreu pelo erro de impor seus
personagens fora das câmeras, desta vez com uma “coadjuvante” que não se calou.
É preciso pontuar que o
assédio dessa natureza não acontece ao acaso. Quem assedia é meticuloso ao
abordar suas vítimas. Quem assedia nunca o faz apenas uma vez. Provavelmente, o
próprio ator já tenha feito isso com outras figurinistas, camareiras, copeiras,
diretoras, atrizes ou quem mais passasse a sua frente. Entretanto, seria
leviano da minha parte restringir o Mayer ao único “garanhão” de plantão nesse
sentido. Quantos e quantos atores, diretores e autores de novelas e minisséries
impõem seu nome, prestígio e poder social para assediar muitas mulheres, e
homens também, em troca de papéis de destaque na TV ou quaisquer outros
favoritismos do gênero? Incontáveis. Não é possível mensurar aqui. Da mesma
forma que a quantidade de mulheres que se submete a isso, mais por medo do que
por interesse, se agiganta. A própria literatura moderna e, a posteriori, o
cinema romantiza isso. Basta ver a popularização do livro/película Cinquenta
Tons de Cinza para entender a naturalização dos chefes que assediam suas
funcionárias, dando a elas céus e terras degrades.
Mais que isso, a
atitude de Mayer encoraja e reforça outras ocorridas em tantos lares
brasileiros, onde o assédio faz parte da rotina de muitas mulheres, bem como, e
infelizmente, meninas. São pais, padrastos, amigos da família, primos,
vizinhos, conhecidos, tocando nas intimidades de garotas, que por medo, se
emudecem temendo serem mal compreendidas. São cantadas nas ruas cujos assobios
não bastam, é preciso tocar no cabelo, alisar a cintura, puxar pelo braço,
dizer palavras chulas para começar a caçada. Os mais ousados, como Mayer, vão
direto à violação dos peitos, vaginas, bundas, para assegurar que a vítima
esteja no ponto para o consumo. Numa sociedade onde elas são personificadas em
arrobas de carne, ou frutas nas diversas mulheres que compõem essa cesta,
resulta nesse comportamento de muitos homens em apalpar o produto para se saber
se é de qualidade ou não. É a sexualização da mulher e a sua objetificação,
conhecidas muito bem por pessoas inteligentes como José Mayer, mas conceitos
ainda distantes do grande público. Enquanto isso, a cultura do passar a mão
continua deixando suas marcas.
Sinais estes que
insistem em macular a imagem das mulheres pondo-as como acusadas pelo assédio,
quando na verdade, em muitos casos, é o contrário. Foi o que também ocorreu com
a figurinista vitimada por Mayer. Apesar dos apoios virtuais, as hastags e tudo
mais, houve quem postulasse na rede, inclusive “famosos”, o lugar onde ela
estava, com que roupa, ou pior, se ela não havia se insinuado para o ator
anteriormente para que ele tomasse essa atitude. É a culpabilização da mulher
numa sociedade que vigia suas ações, tolhe seus comportamentos, regra suas
roupas e controla suas escolhas e decisões. Logo, quando uma delas se rebelam
são rapidamente rebaixadas, desqualificadas, à posição de ardilosas, colocando
em cheque suas palavras, já que durante séculos o poder de fala feminino foi
subjulgado por uma sociedade dita, controlada e cerceada pelos homens. Então, é
bem mais fácil descreditar o relato dela do que criar mecanismos para reeducar
homens e mulheres a se respeitarem mutualmente nessa cultura sexista em que
estamos inseridos. É desta mesma lógica que surgem o vagão cor de rosa, no qual
a vítima precisa ser isolada, enquanto os assediadores vagam livremente pela
sociedade.
De volta ao
incontrolável José Mayer, antes de se desculpar do indesculpável ato que
cometeu, ele chegou a dizer que não era ele naquele momento, e sim o seu
personagem, numa possível pesquisa de campo que não deve ter sido comunicada à
figurinista assediada. Tal ficção machista não se limita à TV aberta. A
indústria pornográfica por exemplo já faz isso há anos, em cenas nas quais
homens em posição de poder assediam e fazem o que bem entenderem com mulheres.
Isso a longo prazo, dentro de uma cultura indiscutivelmente falocêntrica, tem
consequências graves, sobretudo na formação humanística de futuros homens e
mulheres. Falo isso porque quando não há um entendimento acerca da importância do
feminismo, e os perigos do machismo, continuaremos a retroalimentar tais e
outras violências simbólicas do gênero, como aquela que ocorreu no RJ quando
uma menina no ano passado foi estuprada por 30 homens e houve a fetichização do
ato, ignorando a barbaridade em torno dele. Ou seja, é o pau sendo elevado ao
patamar de arte, mesmo que ele adentre em espaços/corpos sem permissão. O que
importa é que ele (o pau) te ama, como reforçado pelo hit do momento.
Em contrapartida, José
Mayer pediu desculpas. Tentou se retratar com a figurinista, além e todas as
outras mulheres/pessoas ofendidas com o que ele fez. Para quem leu a carta do
ator, percebeu que há mais orgulho do que arrependimento em suas palavras. Não
se trata apenas de um homem sessentão, sem acesso a informação ou alheio às
mudanças sociais. Trata-se de um indivíduo que, em sua zona de conforto, achou
que isso nunca aconteceria com ele, que o seu papel de vilão machista passaria
despercebido por ser famoso, sexy e talentoso ator global. É um homem dentre
muitos outros, de diversos nichos e classes sociais que se aproveitam da
posição, da arte, do dinheiro, da fama, do poder, dentre outras coisas que os
formam, para manipular suas vítimas. É um predador, como muitos outros o são
ainda criados para serem, os quais veem nas mulheres pedaços de carne para
saborear. Iguais ao ator, há muitos outros protegidos pelo machismo, este
responsável por silenciar suas vítimas dentro de relações abusivas em namoros,
casamentos, trabalhos, na Igreja, na arte ou fora dela. Coitados desses homens,
programados a atacar toda e qualquer presa que arrisque estar a seu alcance.
Tristes indivíduos descontextualizados em tempo e espaço, obsoletos pelas lutas
e conquistas femininas ao longo dos anos. Parabéns à Figurinista por conseguir
escapar das garras daquele algoz e ainda alertar a sociedade que muitos iguais
a ele ainda estão à solta por ai fazendo suas vítimas. Com ela, José Mayer
errou o alvo, mas outas infelizmente não terão a mesma sorte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário