A história é sempre
a mesma: mulher é estuprada/violentada, sua imagem é divulgada na rede e, ao
invés de ser tratada como vítima, ela é culpabilizada pela atrocidade que
sofreu. Esse é o nosso Brasil onde o machismo culpabiliza quem é violada e
inocenta o agressor. No caso os agressores, já que não basta ser brutalizada
por um, agora a ideia é coletivizar a estupro. Essa conduta animalesca ocorreu
há pouco tempo e destroçou a vida de uma moça usada barbaramente como objeto
sexual por mais de trinta homens. Esse fato injustificável e indiscutivelmente
desmedido não ocorreu no oriente médio, nem em nenhuma tribo africana, mas no
nosso país, onde as minorias são agredidas, negligenciadas e silenciadas pela
própria herança patriarcal que social/midiática/religiosa e politicamente
contribui para esse tipo de crime.
O mais abjeto de
tudo isso é que quando se pensa em estupro, a comoção se dá apenas quando a
vítima é brutalizada, sexualmente falando, seja por um ou por vários
indivíduos. A sociedade não entende que muito antes de consumar o ato, é a
cultura do estupro que sedimenta estas práticas. Em outras palavras, todos os
dias as mulheres são estupradas por multidões nas ruas através de assovios,
cantadas, puxões de cabelo, roçadas e encoxadas em ônibus/metrôs. Muitas são
abusadas no trabalho, na escola, dentro de espaços religiosos. Outras tantas
não encontram respeito nem mesmo em casa, pois muitas vezes são estupradas por
companheiros, pais, primos, entre outros familiares e parentes. Isso significa
dizer que muitas estão nesse exato momento sendo estupradas por multidões de
ignorantes, dos quais se acham no direito de invadir o corpo alheio por
acreditarem que tenham direito de fazer isso.
Tal pensamento é
fruto, ainda, do nosso clichê e velho machismo, enraizado numa cultura da qual
o homem é o epicentro das relações sociais e, sobretudo, sexuais. A começar
pela educação subserviente ensinada as mulheres até hoje por N religiões, as
quais reduziram o ser feminino ao lar e aos afazeres deste. A mídia ainda tenta
ratificar esse modelo trazendo à tona, debochadamente, a ideia de que a mulher
perfeita é aquela "bela, recatada e do lar", como se esse
reducionismo impedisse os assédios, moral e físico, sofridos por quem escolheu
ser mais comedida, diferente daquelas vistas como mais
"transgressoras". Se comportamento, vestimenta e religião fossem
escudos bons o bastante para impedir a abrupta violação sexual, as mulheres que
usam burcas no oriente médio não seriam as maiores vítimas nesse sentido. Por
que a sociedade, então, não vê o estupro muito além da penetração em si e, por
essa razão, não menos bárbaro?
A questão é muito
mais complexa. Vivemos num país que naturalizou a ideia de que a mulher é
propriedade do outro, então sua conduta é avaliada desde sempre pelo o que ela
veste, fala, pensa, deseja, etc, etc. Ou seja, ela não pode fugir do crivo
masculino sempre disposto a tacha-la de puta, caso subverta o que está
estabelecido. Esse encurralamento ganha terreno fértil na mídia, responsável
por sexualizar ainda mais esse grupo: "vai verão, vem verão!". A
igreja por acreditar que o corpo feminino é apenas uma máquina de reproduzir
crianças, mas que ignora a forma como elas são concebidas, sobretudo no raso
debate acerca do aborto. Esta mesma igreja, que culpabiliza a vítima e faz
vista grossa para o agressor, estuprou bem mais do que 30 mulheres ao longo da
história. Tudo isso regido por uma política controversa, a qual até legitima
esse tema: "só não estupro porque você não merece", palavras do
próprio Bolsonaro e que retratam bem a nossa sociedade sexista.
Machismo este que
viraliza na rede com frases do tipo: "por que ela estava nesse local a
essa hora?", "com que roupa ela estava?", "ela deve ter
bebido de mais!", menções estas que suplantam o crime em detrimento de
justificativas vãs para o ato. O crime nesse contexto é ser mulher e não ter o
corpo dilacerado por 30 homens querendo saciar suas vontades bestiais. Não é a
toa que são sexualizadas desde cedo, a exemplo da Mc Mellody, pois o quanto
antes estiverem no "ponto" de serem estupradas, melhor.
Incoerentemente, a mesma sociedade que se deleita com a onda musical das
novinhas é a mesma que se esquiva da responsabilidade quando uma delas é
estuprada por um coletivo. Ou seja, elas são corporificadas em peitos e bundas
, tornam-se objetos de consumo, dançam, requebram até o chão, mas quando são
violadas devem carregar a culpa sozinha, porque "pediram" para isso
acontecer. Ou pior, há homens, e muitas mulheres também, que acham/defendem a
ideia do estupro, por mais absurdo que pareça.
De fato, há quem se
ache no direito de estuprar mulheres, já que não há políticas efetivas para
combater esse tipo de crime. Falta também a presença massiva desse gênero
dentro do espaço político para que aja uma maior representação para esse grupo.
Sem isso, delegacias não são orientadas a tratar das demandas femininas.
Hospitais com alas específicas para estupros, coletivos ou não, são poucos,
como também faltam profissionais para lidar com as feridas físicas e emocionais
das vítimas. O problema se agrava, ainda, porque não há uma educação sexual
libertadora, de casa para a escola e vice-versa, que reposicione o papel da
mulher dentro da sociedade desde a tenra idade. Os papeis de gênero são cada
vez mais estanques, mesmo com todos os avanços tecnológicos responsáveis por
levar a informação até nós na palma das mãos através da telefonia móvel. Sem
conhecer, nem fazer nenhum esforço para isso, temas como sexo, gênero,
identidade, sexualidade, orientação, são alimentados por achismos, que por si
só são limitados, e acabam sendo propagados como verdades na rede, onde a
propagação de chorume travestido de opinião se tornou banal. Vide Ana Paula
Valadão.
Todo esse panorama é responsável pelo estupro daquela garota e de tantas
outras Brasil afora. Infelizmente, é apenas a ponta de um profundo iceberg
ligado a velhas tradições patriarcais que insistem em ressurgir para nos
mostrar o quanto nós estamos aquém dos direitos das mulheres. Nessas horas, é
preciso compreender a essência do feminismo, suas demandas e lutas. Sem um
empoderamento, de fato, outras atrocidades dessa natureza voltarão a público, e
o pior, passarão a ser naturalizadas. Para que isso não aconteça, não basta se
chocar com a quantidade de homens que assediam ou estupram mulheres. Não
importa se é um ou um milhão. A quantidade aqui é meramente ilustrativa. O mais
importante é insurgir-se contra isso; é culpar os reais responsáveis; é dar o
apoio necessário as vítimas; é denunciar o agressor; é não se calar diante das
violências diárias; é legitimar o feminismo; é buscar uma política mais
inclusiva; é incluir as minorias na política; é lutar por maior
representatividade; e, principalmente, ressignificar a nossa educação. Sem
isso, 30 ou mais homens continuarão a estuprar outras tantas mulheres e milhões
de brasileiros ignorantes continuarão a fazer o que sempre fazem nessas horas:
culpar a pessoa errada.
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