E se formos muito mais que gays ou héteros? E se houver uma galáxia de identidades sexuais, que devem ser definidas, antes de tudo, por cada um@?
Por Marília Moschovich
Na sexta-feira a atriz Ellen Page se assumiu lésbica em um discurso público pela primeira vez. Entre tantas coisas lindas que disse, refletiu sobre a dificuldade em “sair do armário” (leia o discurso completo aqui). Quando compartilhei a informação com outras pessoas, muita gente disse coisas do tipo “eu já sabia”. Assim como muita gente usa frequentemente o termo “gaydar” (querendo dizer que haveria uma espécie de radar gay, que permite algumas pessoas identificarem mais facilmente quem é gay ou não). Esses comentários não vieram de pessoas homofóbicas, conservadoras, ausentes da discussão sobre os direitos e a condição LGBT num mundo heteronormativo. Pelo contrário, vieram de muit@s companheir@s de luta. Por isso decidi usar minha coluna de hoje como um apelo e lhes dizer: parem. Apenas parem.
Enquanto mulher bissexual, esse tipo de classificação me parece extremamente arbitrária. Por vários motivos, mas principalmente porque se baseia nos mesmos estereótipos que autorizam violência simbólica e física contra a população LGBT, e porque é autoritário ao querer definir para um indivíduo algo que só pode ser definido por ele ou ela mesm@: sua identidade sexual.
Ao dizer que há um “gaydar” ou “eu já sabia”, as pessoas o fazem com base em estereótipos sobre essas diferentes categorias de pessoas. Esses estereótipos em geral estão ligados à expressão de gênero – pessoas “mais femininas”, “mais masculinas” ou com “um certo jeito” que não se sabe bem explicar. A questão é que a expressão de gênero contém matizes extremamente variadas de masculinidade e feminilidade combinadas, o que já mina esse tipo de classificação externa desde o começo. Além disso, a expressão de gênero não é associada necessariamente com certo conjunto de práticas sexuais. Nenhum homem precisa ter uma expressão de gênero espartana para ser heterossexual, por exemplo.
Essa associação automática que fazemos entre um certo tipo de expressão de gênero e certo conjunto de práticas sexuais faz parte do que a filósofa Judith Butler chamou de “matriz heterossexual”. Essa “matriz” seria a associação compulsória exigida em nossa sociedade entre o tipo de corpo que se tem (corpos “masculinos” e “femininos”), uma determinada identidade de gênero (ser “homem” ou “mulher) e a heterossexualidade como norma. Nesse modelo hegemônico de pensamento, o ser humano “normal” seria um homem que tem um corpo masculino (sobretudo um pênis, mas há outros marcadores como pelos, músculos, formato do corpo, cabelo e outros signos culturais do corpo) e transa com mulheres, ou uma mulher que tem um corpo feminino (vagina, seios, curvas, pouco pelo, cabelos longos, etc) e transa com homens. Qualquer pessoa que foge à essa regra é considerada anormal, estranha, doente, menos humana.
Quando falamos em “gaydar” ou dizemos “eu já sabia” quando alguém “sai do armário”, estamos reforçando esse modelo que é simbolicamente violento. É essa violência simbólica, porém, que autoriza na prática os episódios que nos tornam um dos países que mais matam sua população LGBT no mundo. Classificar as práticas sexuais alheias é sempre uma violência, já que para isso partimos de estereótipos que sustentam esse modelo opressor que podemos chamar de “matriz heterossexual”. Reforçamos a associação entre feminilidade ou masculinidade e certas práticas sexuais – o que, convenhamos, não faz o menor sentido.
Dentro dessa perspectiva, só há uma maneira não-violenta de tratar a sexualidade alheia: deixar que o outro se defina. Além da questão simbólica de que estou falando, entra aí uma outra questão, muito mais concreta e de ordem prática: você nunca vai saber sobre as práticas e desejos do outro tanto quanto ele. Se você vir duas mulheres se beijando na rua, você assume que elas sejam lésbicas? Mas não poderiam ser bissexuais? Pansexuais? Ou mesmo heterossexuais que uma vez na vida estão experimentando beijar alguém do mesmo gênero?
Ser lésbica, gay, bissexual, pansexual e toda e qualquer outra forma de identidade sexual é como ser negro, branco, mulher, homem: uma classificação individual ligada à identidade. Ninguém jamais poderá dizer ao outro como se identificar sem que isso seja absurdamente autoritário e violento. Negar ao outro sua identidade sexual é cometer uma violência sexista.
Por fim, creio que vale o bom e velho argumento: será que isso é mesmo da sua conta? Você precisa ter uma opinião sobre a identidade sexual do outro sem que o outro se coloque essa identidade? Precisa parar pra pensar nisso, ficar supondo ou tentar adivinhar? Para quê?
A cada vez quem um/a companheiro/a de militância fala em “gaydar” ou “eu já sabia”, me sinto agredida. E se fosse eu? Quem é você pra me dizer o que eu sou ou deixo de ser, achando que sabe mais do que eu mesma?
Ótimo post. Nunca pensei sobre esse assunto dessa maneira exposta.
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