07 janeiro 2014

Santa Bethânia da purificação


Um homem franzino, 1m75 de altura e 50 anos de idade adentra o prédio do Teatro Barreto Júnior, no Pina, munido apenas com uma mala de viagens. Veste uma bermuda clara, uma camisa de algodão simples e chinelos marrons. O cabelo contido por um pequeno prendedor azul mais os óculos de lentes estreitas e armação de haste dupla imprimem um tom discreto. Acompanhado da equipe de reportagem, ele cumprimenta os funcionários da portaria e caminha, na frente, pela escadaria da plateia, em direção ao palco, antes mesmo que acendam a luz. “Dá pra descer isso aqui tranquilo, não tem como quebrar o salto”, brinca.

O personagem, tão íntimo daquele espaço, se chama Odemir Félix Lins, mas quase ninguém conhece assim o penúltimo entre os seis filhos da parteira Blandina com o ex-combatente Osório, ambos atualmente com 92 anos. A vida inteira ligada às artes rendeu a Odemir quatro DRTs (sigla da carteira de registro profissional) e um nome unissex híbrido, que sintetiza o de batismo: Odilex é maquiador, figurinista, aderecista e ator – atividades dispostas na ordem decrescente de retorno financeiro. A última arte, que em outros tempos já rendeu a construção de sua casa, no bairro de Casa Amarela, ocupa cada vez menos espaço no orçamento, mas lhe enche de prazer há 33 anos. “O aplauso de uma sala lotada é a maior recompensa possível para a alma de um artista”, explica.

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“Numa velocidade estonteante”, Odilex sobe os degraus do palco e caminha pelo tablado até o camarim, que fica nas costas do fundo negro das cenas. Liga as luzes da longa penteadeira, onde coloca os óculos e a mala, e começa a tirar pincel, blush, batom e lápis de olho, além de uma calça, duas blusas e um terninho, sempre brancos. Está prestes a se transformar na “chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma”, um ritual que pratica todas as semanas — em algumas, mais de uma vez. “Recebo a entidade Maria Bethânia”, diz. “Não é só um cover, ele leva ao espetáculo a essência de Bethânia”, avalia o amigo Júnior Barros, ator conhecido pela interpretação da drag queen Vagiene Coqueluche.

A metamorfose é rápida. Empregando a experiência do vasto currículo como maquiador (principalmente no mercado publicitário e no teatro, caso da Paixão de Cristo do Recife, mas também no cinema, em curtas e longas, como O Bem Amado (Guel Arraes, 2010), e em eventos como As Noites do Terror, do antigo parque Mirabilândia), Odilex não demora mais de quinze minutos para concluir a caracterização. Nesse período, concentrado, como um “mar partindo ao meio”, parece que vai incorporando gradativamente os trejeitos da cantora.

Primeiro é o pé esquerdo que abandona a sandália, começando a se guardar para a sacralidade do palco — uma das marcas mais conhecidas da irmã de Caetano. Então Odilex apoia-se na penteadeira, encara o espelho luminoso e mantém a perna canhota curva, como a vela de um barco, com a sola do pé se atando à perna direita. Terminada a maquiagem, o outro pé também se afasta do calçado. Chega a hora dos “truques que o público não pode saber”, como ele diz, e o homem delgado ganha seios, veste a calça feminina, a blusa, dois colares, uma coleção de pulseiras no braço esquerdo e um bracelete dourado no outro. “O que não dá mais para ocultar” toma forma, e o cabelo, antes contido, ganha volume tropicalista. No início, usava peruca. Agora, para dar mais autenticidade, faz alongamento a cada três meses.

Há momentos em que a lógica se inverte e Odilex, o fã, se transforma no centro da admiração. “O show dele é performático, maravilhoso. Eu encontrava um homem magro, discreto e tímido, que de repente se transformava no esboço mais perfeito de Maria Bethânia”, comenta Rudimar Constâncio, ator e diretor de teatro. Odilex não se resume a seu personagem mais famoso. A primeira participação no teatro, além das brincadeiras de colégio, foi numa montagem do clássico musical Hair, nos anos 1970. Depois, ele fez parte da Trupe do Barulho, encenando espetáculos como a sequência Salve-se quem puder, que fez sucesso nos anos 1990, com turnê pelo Nordeste. Atualmente, integra o elenco da peça As Freirigas, em cartaz no Teatro Valdemar de Oliveira.

“Odilex é nome importante de um teatro pernambucano que muitas vezes é desprezado pelos chamados intelectuais”, avalia Luís Reis, professor e pesquisador de teatro da Universidade Federal de Pernambuco. “É uma linhagem apoiada numa tradição popular, que busca a linguagem das massas para suprir uma das maravilhosas funções da arte: trazer diversão”. Segundo Reis, este caminho foi aberto no estado pelo grupo Vivencial, nos anos 1970. “Em plena ditadura, o grupo uniu estudiosos e pessoas que estavam à margem, tendo como figura emblemática a travesti. Foi uma atualização de várias tradições do teatro, como os gêneros ligeiros e o teatro de revista, que têm como essência uma coisa muito brasileira, a paródia”.

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Difícil pensar que o intérprete dedicado não gostou de sua musa inspiradora um dia. Mas quando tudo começou, em 1979, Odilex sequer conhecia um disco inteiro de Bethânia. Àquela altura, fazia cover da cantora e atriz Liza Minnelli, vencedora do Oscar por sua atuação como Sally Bowles no filme Cabaret (Bob Fosse, 1972). Foi a amiga Claudete Bardot, que interpretava Dalva de Oliveira nos palcos pernambucanos, quem percebeu a semelhança física e convenceu Odilex a investir no novo papel. Desde então, a pesquisa profissional para composição da performance evoluiu para uma devoção entusiasmada, com direito a coleção com mais de 3 mil fotos e discografia completa, além de gravações inéditas de concertos, tanto em áudio como em vídeo. “Amo não só a música de Bethânia, mas os detalhes: o andar, a respiração, o movimento dos braços, o som e o texto”, declara-se Odilex, presente em todos os shows da estrela no Recife. “Já garanti meu ingresso para a abertura da Fliporto, ela vai participar”, comemora.

Após as apresentações de Bethânia na cidade, Odilex sempre vai ao camarim levar um presente. Só não foi atendido uma vez. “Ela estava muito cansada”, alivia, acrescentando que não deseja estreitar os laços para uma relação pessoal. Questionado por que nega sistematicamente os convites de amigos para conhecer a família Veloso em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, Odilex pondera: “Bethânia tem personalidade difícil. A pessoa é uma coisa diferente do artista. Eu prefiro manter essa condição de fã com o ídolo, para não correr o risco de quebrar o encanto”. Precaução sensata para garantir que, “sob o sono dos séculos”, continue a amanhecer o espetáculo.
Mano Ferreira (texto) / Helder Tavares (fotos)

Visto no: Aurora

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