16 junho 2013

"Para não dizer que não falei do Félix" por Jean Wyllys

 
Publicado pelo iG
 
Sem entrar na questão de se estamos preparados ou não para um vilão gay na novela das nove, o horário de maior audiência da tevê aberta brasileira (levando-se em conta não só o fato de que a maioria do povo brasileiro se informa por meio da tevê; a ainda baixa qualidade da educação formal oferecida pela ampla maioria das escolas públicas; o baixo índice de leitura de livros, mas sobretudo se levando em conta o atual contexto político, marcado pela emergência de um fundamentalismo religioso odioso que se expressa e cresce sobretudo na difamação da comunidade LGBT); sem entrar nessa questão, posso afirmar que Walcyr Carrasco teve uma idéia interessante ou, no mínimo, produtiva para sua nova novela, “Amor à vida”: fazer do grande vilão da trama alguém cuja vilania advém da repressão ou recalque da homossexualidade.
 
Félix seria então uma denúncia dos impactos nocivos do recalque da homossexualidade ou internalização da homofobia sobre o caráter de gays e lésbicas: estes experimentam inicialmente, desde a mais tenra infância, o sentimento de pertencer a outra raça; com raras exceções, são vistos pelos próprios pais, quase sempre violentamente hostis à orientação sexual ou identidade de gênero que se expressa apesar de toda repressão, como condenados a uma sexualidade vergonhosa e incapazes de lhes gerar uma descendência; por conta disso, para não decepcionarem esses pais e estarem à altura das suas (dos pais) expectativas, muitos são os que desenvolvem um ódio de si mesmo (e, logo, do semelhante; ou seja, internalizam a homofobia), buscando no suicídio ou no fingimento a saída para seu sofrimento, podendo o fingimento incluir a busca pela realização do desejo homossexual no sexo anônimo em banheiros públicos, saunas e parques; realização do desejo sempre seguida de culpa e de mais ódio de si, claro. Félix seria alguém que teria optado por essa segunda saída. Todo seu fingimento – e por conseguinte todo seu mau caráter – é em nome do pai que sempre o rejeitou e reprimiu por causa da homossexualidade. Félix seria um perverso em função da “lei do pai”; teria uma perversão por conta desta; seria uma “père-version” (versão outra do pai), para usar a expressão lacaniana. Não por acaso Walcyr Carrasco havia escolhido, como primeiro título de sua novela, a expressão “Em nome do pai”.
 
Mas não é esse Félix que estamos vendo na tela ou, pelo menos, estamos vendo apenas parte desse Félix prometido. Este jamais poderia ser tão afeminado ou dar tanta pinta.
 
Um perverso em decorrência da homossexualidade recalcada e conscientemente preso num armário jamais se exporia tanto quanto Félix se expõe, principalmente por meio do “humor bicha” presente em expressões como “Estou uma gelatina de exaustão”, “Minha pele borbulha com comida gordurosa”, “Eu devo ter salgado a santa ceia para merecer isso!”, “Pelas contas do rosário”, “Deu a Elza”, “Vou arrumar o topete, que ele despencou”. Essas expressões – assimiladas e reproduzidas só por quem vive a cultura gay – associadas à afeminação são bandeiras impossíveis num gay enrustido, casado com mulher, pai de um filho adolescente e herdeiro de um grande hospital de São Paulo!
 
E a culpa desse Félix defeituoso enquanto personagem não é de Mateus Solano, excelente ator que não precisa provar seu talento a mais ninguém. Solano lê um texto com rubrica que lhe chega às mãos. Seria estranho se Solano não colocasse alguma afetação num texto que diz “Ai, meu Deus, eu só posso ter salgado a Santa Ceia para merecer uma coisa dessas!”.
 
O problema é do autor da novela, que não se contentou em criar um personagem coerente, mas, antes, quis fazer, dele, um sucesso de público como o foram as vilãs Odete Roitman, Maria de Fátima, Nazaré e Carminha. Carrasco é um homem inteligente, bem-informado e conectado à internet, logo, está a par do enorme sucesso que os perfis das “bichas más” (ou das que se apresentam como “bichas más”) – Hugo Gloss, Cleycianne, Gina Indelicada, Irmã Zuleide, Xuxa Verde, Nair Belo, Katylene e Paola Poder – fazem nas redes sociais. Carrasco quis, portanto, importar, para Félix, esse mar de venenos que tanto seduz os internautas em redes – hoje elementos imprescindíveis na conquista da audiência.
 
Sem essa maledicência típica de alguns homossexuais (mas não de todos e nem mesmo da maioria), sobretudo típica daqueles que jogam mais aberto com certa feminilidade de estrelas do cinema e da música pop; sem essa maledicência “feminina”, como fazer, do Félix, um vilão amado? Carrasco também é um autor experiente e já declarou ser fã de telenovela antes mesmo de começar a escrever as suas; portanto, sabe que o sucesso de Odete Roitman, Maria de Fátima, Nazaré e Carminha tem a ver com a marca de gênero, ou seja, com o fato de elas serem mulheres. E nunca é demais lembrar que essas vilãs foram e são populares principalmente entre gays e mulheres heterossexuais, que constituem o núcleo duro da audiência das telenovelas. Logo, se Félix fosse um gay enrustido que insistisse numa performance de gênero masculina, seria certamente odiado, mas jamais popular.
 
Ao associar o “humor bicha” a um personagem gay recalcado capaz de cometer crimes hediondos em nome de sua ambição, Walcyr Carrasco esvazia a função de defesa psíquica e de resistência política que este humor tem. Como já disse, o “humor bicha” que se expressa sobretudo em frases irônicas, anedóticas e de deboche consigo e/ou com seus pares só pode ser exercitado por quem saiu do armário, voluntária ou compulsoriamente. Pois, como disse Freud do chiste, o “humor bicha” é a formação do inconsciente que mais se insere no social; logo, necessita do outro para referendá-lo (Quem está no armário se esforça para não expor sua orientação sexual ao outro ou encena a orientação sexual socialmente aceita e validada). O “humor bicha” é uma estratégia do inconsciente dos homossexuais – inconsciente quase sempre estruturado sob o insulto, a injúria e a humilhação perpetrados pela ordem heteronormativa e, portanto, homofóbica – para defender a mente e o corpo da angústia e de outros sintomas das neuroses. O “humor bicha” atua então como álibi da verdade do sujeito homossexual que, até então (até sair do armário), não fora possível de ser dita. Este humor passa a ser também uma estratégia de resistência política: por meio dele, a comunidade LGBT (sobretudo o seguimento T dessa “sopa de letras”) debocha da ordem masculina que a oprime e dá significado positivo a palavras insultuosas e difamantes. Associar o “humor bicha” a um criminoso frio e egoísta é perder de vista sua função na luta de LGBTs por dignidade, estima e direitos. A redenção de Walcyr Carrasco nessa questão pode vir se e somente se este humor estiver presente em algum dos outros dois gays que fazem parte da trama. Do contrário, estará provado que Carrasco salgou a Santa Ceia!

Um comentário:

  1. Ai sim, foi no ponto!!! A principio até simpatizei com o Felix, achei que dava caldo, mas a medida que ele foi ficando pintoso complicou a coisa... Se tornou nocivo. Aliás toda essa novela de Carrasco é algo que não me apetece... Não tem um personagem negro ou negra pelo amor de Deus, perpetua preconceitos contra minorias.... a protagonista é insossa... aiaiai... Enfim, aplausos ao Jean, nem sempre sou fã dele, mas dessa vez ele foi brilhante em sua critica.

    ResponderExcluir