É muita cara de pau exigir do eleitor brasileiro que “vote limpo”. Como se a lisura de nossa democracia dependesse de mim e de você. Durante dois meses, a televisão transmitiu 20 vídeos por dia para convencer o cidadão “infrator”, que não votou nas três últimas eleições, a pagar multa e regularizar sua situação. A campanha custou R$ 184 mil – de verba pública. E ameaçava punir pesado. O prazo terminou na última quinta-feira, 25 de abril.
Havia mais de 1,5 milhão de eleitores em falta
com a Justiça Eleitoral. Desses, 129 mil ficaram “quites” nos últimos dias. O
resto, pau neles. São maus cidadãos. O título de eleitor será cancelado, serão
impedidos de tirar documento de identidade e passaporte, não poderão obter
alguns empréstimos nem se matricular em qualquer escola ou universidade
pública.
Não está certo. Um país que se gaba de ser uma
democracia consolidada não pode transformar um exercício de cidadania num dever
draconiano. Se não votarmos por impedimento geográfico ou inapetência pelo jogo
sujo dos políticos, somos obrigados a nos justificar? Entre as dez primeiras
economias do mundo, o Brasil, em sétimo lugar, é o único país a manter o voto
obrigatório. Quem defende essa excrescência fala “em nome da
representatividade”, mesmo forçada.
Os intelectuais adeptos do voto compulsório dizem que, se o
voto for facultativo, menos pobres e mais ricos votarão – e o resultado da
eleição será distorcido em favor da elite. É uma bobagem. Reforça a tese
discriminatória de que “pobre não sabe votar”. Tantos países ricos têm
lamentado a alta abstenção nas eleições. É cansativa, preconceituosa e ilusória
essa tentativa de dividir as opiniões, as ideologias e a consciência da
sociedade entre ricos e pobres. Como se a vontade de votar dependesse do
contracheque. E como se os ricos tivessem mais motivo para votar.
O voto obrigatório mascara o real interesse da
população na eleição. Faz muita gente (de todas as classes sociais) eleger
“rostos conhecidos” ou “amigos de amigos”. Falta maior consciência do eleitor,
falta educação política? Falta. O voto facultativo levaria às urnas quem acha
que sua escolha pode mudar o atual estado de coisas. Falta vergonha na cara dos
políticos, falta transparência nos gastos públicos? Falta. O voto facultativo
obrigaria o Estado a fazer campanhas sobre a importância de participar do processo
democrático. Obrigaria os políticos a se preocupar mais com sua ficha corrida e
a prestar contas de seus atos. O voto seria dado com consciência e por
convicção, não por medo de pagar multa. Hoje, no Brasil, o cidadão que não está
em dia com a Justiça Eleitoral “não está em pleno gozo de seus direitos civis”.
Ora, diante de um Renan Calheiros presidindo o
Senado... Diante do pastor Feliciano cuidando dos Direitos Humanos... Diante da
presença dos mensaleiros José Genoino e João Paulo Cunha e do deputado Paulo
Maluf na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara... Diante do senador
cassado Demóstenes Torres como promotor vitalício no Ministério Público em
Goiás... Diante da manobra casuísta do governo Dilma para boicotar futuros
potenciais adversários em 2014, como a ex-senadora Marina da Silva... Diante da
lentidão da Justiça, que pode devolver à vida pública o ex-governador condenado
do Distrito Federal José Roberto Arruda... Diante da censura do PT nacional a
qualquer crítica aos Sarneys na TV do Maranhão, por pedido de Roseana a José
Dirceu... Diante do salário de R$ 15 mil para garçom que serve cafezinho no
Senado, nomeado por ato secreto... Bem, diante de tudo isso, qual eleitor e
cidadão está “em pleno gozo” de alguma coisa? Eles é que estão gozando com a
gente. E ainda exigem que eu vote limpo.
Na briga entre Congresso e Supremo, com quem
fica a palavra final? É uma briga chata de doer. Não há santos nem no
Judiciário nem no Legislativo. Mas o momento favorece o Supremo. É no Congresso
que condenados e cassados se locupletam. O deputado Nazareno Fonteles (PT-PI),
autor da emenda contra o STF, se queixa de que “o Judiciário vem interferindo
em decisões do Legislativo; há uma invasão de competência”. Ou seria “de
incompetência”?
Ao ver na semana passada as imensas filas
diante de cartórios para justificar a “infração eleitoral”, fiquei
constrangida. O voto obrigatório ofende a democracia, desonra a expressão
“direito de voto”. Se posso anular meu voto ou votar em branco, por que sou
obrigada a comparecer às urnas? Voto porque quero, mas respeito quem não quer.
O Brasil se livrou da ditadura. Numa democracia formal, o eleitor vota se
quiser, se algum candidato o representar e se achar que sua opinião conta. Um
dia essa obrigação cairá, por bom-senso. Por enquanto, se os políticos querem
um voto limpo, façam sua parte. Comportem-se.
Visto na: Época
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