10 março 2013

Olhemos por trás da vitrine!*



Era véspera de Natal e eu ainda não havia reparado nada de diferente no ar. O tal espírito natalino não havia me dado o ar de sua graça. E isso não me atormentava. Como criança pensava no banquete que teria logo mais e nos presentes que abriria.
Com toda a minha inocência, jamais poderia prever o que me ocorreria. Mas aquele Natal não seria como os outros. E ainda hoje, vinte anos depois, ainda me lembro da data de 24 de dezembro de 1992...
Acordei sobressaltado quando meu pai me chamou. O sol ainda estava dando seus primeiros sinais de vida.
Nós íamos juntos fazer as compras de Natal. E precisávamos nos apressar, pois nas lojas haveria uma multidão de pessoas amontoadas, lutando por um mínimo de espaço. Seria árdua a simples tarefa de respirar ali.
Em geral, nos organizávamos previamente. Acontece que o papai andava demasiadamente ocupado naqueles dias. Estava trabalhando em um projeto que poderia rendê-lo uma excelente promoção.
Deixa-me esclarecer uma coisa: desde que a mamãe falecera, quando me dera à luz, o papai se focou no trabalho. Passava horas no escritório e quando estava em casa ficava trancafiado na biblioteca. Isso vinha sendo seu refúgio durante oito anos e parecia funcionar bem para ele. Quero dizer, nunca o vi derramando uma lágrima sequer ou se queixando de sua vida. Meu pai era uma rocha. E parecia que nada era capaz de esmorecê-la.
E foi assim que seguimos no carro de meu pai até à cidade vizinha. Durante o trajeto, ele foi pendurado no telefone resolvendo alguns problemas. Tinha uma expressão tensa estampada no rosto, de forma que, quando desligou a ligação, não quis aborrecê-lo.
Ele me perguntou algumas das perguntas clássicas com as quais os adultos costumam abordar as crianças e saltamos do carro, por fim.
Meu pai foi até o fim da loja escolher alguns presentes e eu fiquei olhando uma vitrine, de frente para rua, que tinha vários brinquedos.
Foi quando algo por trás da vitrine chamou minha atenção. Era um menino – maltrapilho, com cabelos desgrenhados e mais ou menos da minha idade. Seus olhos saltavam de um brinquedo para outro, com tamanho fascínio. Ao perceber que o observava, o menino me encarou e sorriu, com uma felicidade que não sei descrever aqui. Sorri de volta. Como não fazê-lo?
Olhei para trás e vi meu pai, falando novamente no telefone. Dessa vez com uma aparência mais branda. Imaginei que devia estar falando com a Carla.
Ele já havia a trazido algumas vezes para jantar conosco e pelo jeito que ela o olhava posso jurar que já sentia algo por ele nessa época.
Devo muito a Carla, até hoje. Lembra que afirmei que nada parecia esmorecer a pedra que era meu pai? Bem, a Carla foi capaz disso. E se no começo tive raiva por vê-la assumir o posto de minha mãe, hoje a agradeço por ser a mãe que não tive a oportunidade de ter e a mulher que o meu pai merece.
Olhando meu pai ao telefone, saí da loja e me dirigi ao menino que havia visto. Ele pareceu surpreso pela minha abordagem, mas de forma positiva.
- Oi, o que você tá fazendo aqui?
- Ah, só tava olhando as ‘coisa’.
- E por que não entra?
- Daqui a pouco minha mãe chega.
- Como é ter uma mãe?
- É legal. Por quê? Você não tem uma?
- Tenho, mas ela tá lá no céu.
- Meu pai também. Os “cara” da polícia deram três tiros nele.
- Nossa, eu sinto muito! Eles foram presos?
- Não. Minha mãe disse que era porque meu pai era um Zé Ninguém.
- Você acha que ele está lá no céu junto com a minha mãe, desejando um feliz natal pra gente?
- Com certeza!
- Também acho.
Uma mulher vinha em nossa direção, sorridente. E se dirigiu ao meu mais novo amigo.
- Rodolfo, trouxe uma coisa para você!
- O que é, mãe?
- Por que você não descobre você mesmo?
Ela o entregou uma embalagem que eu conhecia bem. Era um Mac Lanche Feliz, um conjunto do MacDonald que vem com hambúrguer, batata-frita, refrigerante e um brinquedo. Meu pai trazia de vez em quando para mim. Sendo assim, achei que ela estava brincando. Fiquei esperando o restante do presente, mas ele não veio. Aliás, veio. Mas foi tão grande, que não pude entender naquele momento.
- “Puxa”, mãe, que legal! Não precisava...
- Claro que sim! Eu juntei uns “trocado” essa semana.
- “Valeu”, mãe! Você é demais!
Eles se abraçaram e eu fiquei ali, custando a entender o que havia se passado. Eu vi o menino e a mãe saciarem suas fomes. E não apenas de comida. Havia ingredientes na ceia deles que faltavam na minha mesa de jantar. No entanto, eles não estavam dispostos nas prateleiras de nenhum supermercado.
A gente nunca sabe o que a vida nos reserva e o que aprendi naquela tarde foi que os melhores presentes não se embrulham.
Hoje é véspera de Natal e eu reparei que tudo no ar está diferente. O espírito natalino está dentro de cada um que se permite senti-lo. E isso me alegra. Como adulto, só posso esperar que os dias que se seguem tragam consigo serenidade e mais aprendizado. Como pai, que meu filho aprenda como eu aprendi que existem coisas mais importantes do que ceia e presentes.
Estou na casa do meu pai. Pasmem, mas ele não está mais trancafiado na biblioteca. Está cantando músicas natalinas com a Carla e o Lucas.
O Lucas é meu irmão, filho do meu pai com a Carla. O garoto tem onze anos e quando ele nasceu trouxe um brilho para essa casa. É apaixonado por música e tenho certeza que terá um futuro promissor.
Eu me mudei daqui faz oito anos, quando fui morar com a Laís. Ela era minha vizinha quando pequeno e nunca me deu muita atenção. Dizia que eu era metido e filhinho de papai. De fato eu era. Mas aprendi muito naquele Natal e até a Laís foi obrigada a concordar, quando comecei a ser voluntário na mesma ONG em que ela trabalhava.
No primeiro dia que fui trabalhar lá, ela estava contando uma história para crianças, com dois fantoches nas mãos. Assim que me viu, sorriu sem jeito. Naquele instante eu soube que nós iríamos nos casar e que seríamos muito felizes juntos.
A segunda parte de fato aconteceu. Estamos juntos e felizes até hoje. Mas a vida é imprevisível.
O que eu senti pela Laís foi algo muito repentino e intenso. A família dela me adorava e nós éramos aparentemente perfeitos um para o outro. Mas eu vi tudo isso desmoronar quando a levei em casa, oito anos atrás, e anunciamos sua gravidez.
Só Deus sabe o quanto eu amava aquela mulher e se coloquei ela naquela situação, haveria de tirar. Eu não me perdoaria se deixasse ela enfrentar tudo aquilo ouvindo desaforos.
Pedi um empréstimo e naquele mesmo ano alugamos uma casinha simples. E pouco a pouco fomos construindo nossa história. Passamos por situações difíceis, como a morte do nosso filho. O médico disse que ela era muito nova e que o corpo não tinha preparo para dar à luz a uma criança. Por um milagre ela havia escapado.
Foi momentos como esse que quase nos fizeram desistir. Mas o nosso amor sempre esteve acima de tudo isso. E ela esteve ao meu lado quando fui promovido. Comemoramos juntos.
Laís voltou a estudar e se formou em Jornalismo. Sinto orgulho quando estou no horário do intervalo na empresa, abro o jornal e está lá o seu nome estampado na coluna.
Mas a felicidade maior ainda estava por vir...
- Filhão, vem cá um instante! – falei, entusiasmado.
Lá vinha o Pedro Vitor, com seus três aninhos e seus passos desengonçados. Ele estava sentado no sofá, abraçado com a mãe, vendo, com os olhinhos brilhando, o tio e os avós cantarem Jingle Bells.
- O papai trouxe um lanche para você. Vamos comer?
Eu estava dando ao meu filho a lição que havia recebido anos atrás. Estava dando a ele o meu carinho, a minha presença. E parecia que nada no mundo me faria me sentir melhor.
- Obligado, papai. Eu amo você!
Bem, o amor do meu filho me fez me sentir melhor...
Meu maior presente esse ano foram as palavras do Pedro Vitor. Como disse, há presentes que não se embrulham. Esses são os melhores...

(Pollyanna Cristina Quadros de Souza)*

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