Templo de culto à mercadoria, o modelo do shopping center, como o
conhecemos hoje, nasceu nos Estados Unidos na década de 1950. São espaços
privados, objetivamente planejados para a supremacia da ação de comprar. O que
se compra nesses centros, contudo, é muito mais do que mercadorias, serviços,
alimentação e lazer. Compra-se distinção social, sensação de segurança e ilusão
de felicidade e liberdade. Munida de um ponto de vista sociológico, a autora
visita este espaço encantado e mostra que, nessa exaltação ao consumo e ao
lazer alienados, o shopping center exclui a ‘vida real’. Pior ainda: com suas
vias limpas e iluminadas, deixa do lado de fora a cidadania e a prática da vida
pública.
Valquíria
Padilha
Departamento de Administração,
Universidade de São
Paulo
Quem nunca ouviu falar em shopping center? Ou nunca passeou pelos corredores desse centro de consumo? Quantas vezes
não viajamos para outra cidade ou país e desejamos visitar o shopping center
local? Atualmente, o shopping center concorre com a televisão e o
computador entre as atrações mais citadas pelas parcelas privilegiadas da
população como preferências de ocupação do tempo livre. Por que isso acontece?
Quais são os sentidos desse sucesso?
O que conhecemos no Brasil com o nome de shopping
center pode ser entendido como um espaço privado – que se diz público –
criado para ser uma solução dos problemas da cidade onde reinam desajustes,
desigualdades, contradições, imprevistos. Por isso, consideramos a cidade como
o ‘mundo de fora’ em contraposição ao shopping center como o ‘mundo de
dentro’. O ‘mundo de fora’ é a realidade-real, o espaço urbano e seu caráter
público. Esse mundo contém outra realidade construída artificialmente, o ‘mundo
de dentro’, limpo e isento dos fatores que agem no ‘mundo de fora’ – chuva,
sol, frio, neve, mendigos, pedintes, trânsito, poluição etc.
Ao
mesmo tempo em que desencadeia uma série de problemas para muitos, a cidade
real possibilita alternativas para poucos, como a criação do shopping center,
a ‘catedral’ onde uma parcela da população idolatra as mercadorias e vivencia
lazeres que se distanciam da autonomia e da criatividade. O shopping center é
hoje um dos empreendimentos mais rentáveis e com uma das maiores taxas de crescimento
em todo o mundo. A Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce) afirma
que, no Brasil, o número de shopping centers vem praticamente dobrando
a cada cinco anos. Em 1966 havia apenas um shopping center, em São
Paulo, enquanto, em fevereiro de 2006, o país já contava com 263 desses espaços
em funcionamento, empregando 488.286 pessoas. Nos Estados Unidos, país onde
nasceu o atual modelo de shopping center, já havia em 1956 cerca de mil
centros comerciais inaugurados e 2 mil em construção. Segundo o urbanista
escocês Witold Rybczynski, em seu livro Vida nas cidades, entre as
décadas de 1970 e 1990, a cada sete horas, em média, um novo shopping center
era inaugurado naquele país.
Os shopping centers refletem, hoje, a
cultura de consumo norte-americano, mas suas raízes históricas estão nas lojas
de departamento da Europa do século 19. Foi entre 1822 e 1832 que surgiram as
primeiras galerias em Paris. A cultura de consumo, que se instalou no Ocidente
a partir do final do século 18, torna-se reflexo da razão de ser do capitalismo
quando realiza a transposição da utilidade das mercadorias para outros valores
que elas passam a ter na sociedade (marca de distinção social, por exemplo). A
cultura de consumo que se estabelece transforma os hábitos cotidianos, as
relações entre as pessoas, as percepções dos espaços e os significados dos
objetos.
O sociólogo norte-americano Richard Sennett, em seu
livro O declínio do homem público, entende a formação dessa cultura de
consumo a partir da análise histórica do declínio da vida pública, associado
ao aumento da importância da esfera do privado. O capitalismo impulsionou um
deslocamento do foco das pessoas para as coisas, fazendo com que elas buscassem
significados pessoais em objetos. Nessa nova vida urbana, as condições
materiais tornaram-se mais conhecidas e mais constantes para as pessoas
enquanto a vida pública foi ficando cada vez mais frágil.
As lojas de departamentos que nasciam e marcavam a
época eram uma resposta à recente produção fabril, que possibilitava baixar os
preços de algumas mercadorias ao mesmo tempo em que as diversificava. E como a
produção era feita em massa, havia a necessidade de formar-se também uma massa
de consumidores. Essa nova forma de comércio gera o consumo de coisas
supérfluas. Mas os lojistas tinham diante de si um desafio: motivar as pessoas
a comprar mercadorias desnecessárias, variadas e indefinidas. Para resolver
esse problema, os comerciantes inventaram espetáculos do lado de fora das
lojas para “dotar as mercadorias, por associação, de um interesse que a
mercadoria poderia intrinsecamente não ter”, conforme mostra Sennett.
O
desejo de comprar
Para
suscitar a vontade de olhar as mercadorias e o desejo de comprá-las,
suspendia-se o caráter de utilidade dos objetos, privilegiando-se o prazer de
adquirir algo diferente. As vitrines das lojas e as fotografias publicitárias,
que criavam ambientes fantasiosos ou colocavam figuras públicas importantes
usando tal ou qual mercadoria, criavam uma associação entre os artigos à venda
e o status incorporado neles. Essa nova concepção de consumo
moldava a personalidade dos que consumiam as mercadorias porque estavam muito
bem dispostas em vitrines ou porque estavam associadas a uma duquesa qualquer.
O estímulo ao consumo presente nos shopping
centers e na publicidade dos dias atuais originou-se nessa fase do
desenvolvimento do capitalismo em que se combinaram produção industrial em
massa e crescimento do mercado urbano com as lojas de departamentos e galerias.
O consumo de mercadorias começou, então, a significar um mergulho em fantasia e
status social, uma vez que os objetos passaram a ser adquiridos não pela
sua utilidade imediata, mas pelo significado social de sua posse. A utilidade
dos produtos passa a se submeter ao valor monetário e social que eles adquirem
na complexa engrenagem da produção e circulação dos bens no capitalismo. Assim,
a aparência das mercadorias passa a ser de fundamental importância para a sua venda.
Nas sociedades capitalistas, o homem não produz
mais apenas para satisfazer suas necessidades originais. Existem outras
necessidades em jogo que são as impor necessidades de valorização do capital. A produção de mercadorias converteu-se
em uma fonte de lucro, dado que cada trabalhador produz, para os donos das
empresas, muito mais do que precisaria para a satisfação de suas próprias
necessidades. A produção capitalista gera excedentes que não são calculados com
base nas necessidades naturais do homem e sim nas do capital, o qual, por sua
vez, precisa criar novas necessidades para estimular a demanda e o consumo.
Assim, a produção deve visar a um consumo descartável, uma cultura do
desperdício, o que reflete o princípio da ‘obsolescência planejada’ (os objetos
são feitos para serem obsoletos). Esse sistema precisa sempre aumentar a
produção de mercadorias em quantidade e variedade, mas não em qualidade e
durabilidade.
O
lazer nos shopping centers
Partindo
dessa concepção, também podemos refletir sobre o lazer enquanto um fenômeno
social importante da dinâmica dessa sociedade. Nesse espaço, que denominamos shopping
center híbrido – hoje com características de ser mais um centro de compra
de lazer, serviços e símbolos do que um centro de compra de produtos úteis –,
prevalece um certo encantamento das pessoas que ali ocupam o seu tempo
supostamente livre. A subordinação do lazer a essa lógica dá-se basicamente
pelas várias maneiras de mercantilização da diversão, que é produzida
industrialmente, divulgada pela publicidade e trocada por dinheiro.
Os shopping centers são símbolos de uma sociedade
que valoriza o espetáculo do consumo de bens materiais e do lazer-mercadoria e
que, além disso, oferece a uma parcela da população o direi-to a esse consumo e
a esse lazer, enquanto exclui dessa possibilidade a maioria da população.
Assim, esses centros comerciais configuram-se como espaços de lazer alienado,
reduzindo a identidade so-cial ao universo do consumo, tanto dos que frequentam
tais espaços quanto dos que não os frequentam mas desejariam frequenta-los.
Os
diversos equipamentos de lazer disponíveis – como mais um produto à venda –
levam seus frequentadores a encontrar diversão em torno da celebração de
mercadorias, de modo que, mesmo no lazer, o ‘ser’ permanece subjugado ao ‘ter’.
Não há espaços livres, vazios; cada centímetro é preenchido para direcionar a
ocupação monetarizada desse centro de consumo. Assim, concebemos o lazer
oferecido nesses centros como alienante porque leva ao distanciamento dos
sujeitos deles próprios, da obscurecida essência humana, ao mesmo tempo em que
não possibilita a livre criatividade, a autonomia, a convivência desinteressada
(do ponto de vista financeiro) com os outros. O shopping center – e toda
a complexa rede psicossocial que se forma com a ‘sociedade de consumo’ –
baseia-se em uma lógica que não possibilita aos homens desenvolverem suas
capacidades e seus sentidos em plenitude.
É preciso reconhecer que essa
privatização do lazer nos shopping centers acontece porque, entre outros
fatores, não existem políticas públicas que confiram ao fenômeno do lazer o
caráter de direito social. O shopping center vem aumentando sua
participação na esfera do lazer urbano por causa da brecha que a inexistência
ou ineficiência dos espaços públicos de lazer vem abrindo. A ausência de
políticas públicas favorece também a segregação social, uma vez que o poder
aquisitivo acaba sendo um dos determinantes principais para a tomada de
decisões diante das escolhas existentes. Quem tem dinheiro tem mais opções.
Espaços como os shopping centers afastam as
pessoas de qualquer experiência de “formação”, conforme nos ensinou o filósofo
alemão Theodor Adorno (1903-1969). Para ele, a “formação” deveria corresponder
a uma sociedade de seres livres, iguais e conscientes. Essa formação supõe uma
humanidade sem exploração e, mais do que isso, a libertação da imposição dos
meios e da utilidade, o que significa a autonomia do ser social. Nesse sentido,
o shopping center dificulta ainda mais a superação do que o filósofo
chamou de “semiformação” – que é a “formação” incompleta, manipulada por
interesses exteriores a nós. No shopping center híbrido, parece-nos
clara a ausência de pessoas autônomas interligadas. Nesse espaço, os sujeitos
estão ainda mais destituídos de liberdade, de forma que a vida em conjunto com
os outros não se articula como verdadeira. Não há possibilidade de uma
sociabilidade consciente, refletida, afastada das artimanhas que acabam
reduzindo cidadãos a consumidores.
Diante disso, olhamos para o shopping center como
uma referência para pensar a ‘sociedade de consumo’ e de lazer, vista como um
mundo encantado que, num interessante delírio coletivo, obscurece a
consciência dos seres sociais para a plena (e difícil) vida em coletividade. Em
outras palavras, nos shopping centers os sujeitos estão afastados de si
mesmos. Mergulhados nesse universo do consumo, sentem-se autorizados a
permanecer alheios à vida pública, o que se agrava ainda mais quando se percebe
que seu comportamento e suas relações com o mundo são mediatizados por coisas.
Nos shopping centers, até o lazer – que deveria ser tempo de liberdade
– torna-se algo a possuir, consumir, usar e gastar. Não há espaço nem tempo
para a espontânea fruição do tempo livre.
Compro,
logo existo
O
shopping center é um centro de comércio que se completa com alimentação
(normalmente do tipo fast food), serviços (bancos, cabeleireiros,
correios, academias de ginástica, consultórios médicos, escolas) e lazer
(jogos eletrônicos, cinema, internet). Ali, o consumidor de mercadorias se
mistura com o consumidor de serviços e de diversão, sentindo-se protegido e
moderno. Fugindo dos aspectos negativos dos centros das cidades e da busca
conjunta de soluções para eles, os shopping centers vendem a imagem de
serem locais com uma melhor ‘qualidade de vida’ por possuírem ruas cobertas,
iluminadas, limpas e seguras; praças, fontes, bulevares recriados; cinemas e
atrações prontas e relativamente fáceis de serem adquiridas – ao menos para os
que podem pagar. É como se o ‘mundo de fora’, a vida real, não lhes dissesse
respeito...
O que essa catedral das mercadorias pretende é
criar um espaço urbano ideal, concentrando várias opções de consumo e
consagrando-se como ‘ponto de encontro’ para uma população seleta de seres
“semiformados”, incompletos, que aceitam fenô-menos historicamente construídos
como se fizes-sem parte do curso da natureza. O imaginário que se impõe é o da
plenitude da vida pelo consumo. Nes-ses espaços, podemos ocupar-nos
apenas dos nossos desejos – aguçados com as inúmeras possibilidades disponíveis
de aquisição. Prevalece a ideia do ‘compro, logo existo’.
Concluímos que esse mundo de sonhos que é o shopping
center acaba reforçando nas pessoas uma visão individualista da vida, onde
os valores propagados são todos relacionados às necessidades e aos desejos
individuais – ‘eu quero, eu posso, eu compro’. Assim, colabora para uma
deterioração do ser social e o retardamento do projeto de emancipação de seres
mais conscientes, autônomos, prontos para a sociabilidade coletiva – que exige
a capacidade da troca desinteressada, da tolerância, da relação verdadeiramente
humana entre o eu e o outro, entre iguais e entre diferentes. Compreendemos que
um ser social emancipado identifica as necessidades individuais com as da
coletividade, sem colocá-las em campos opostos. Assim, o ser emancipado sabe
agir pensando nos outros, no presente e no futuro.
O shopping center híbrido representa hoje o
principal lugar da ‘sociedade de consumo’, contribuindo para a sacralização do
modo de vida consumista e alienado, um modo de vida em que há uma evidente
predominância de símbolos como status, poder, distinção, jovialidade,
virilidade etc. sobre a utilidade das mercadorias. Vale ainda lembrar que não é
somente o shopping center que gera emprego. Centros culturais,
esportivos e de lazer, escolas, postos de saúde, teatros, cinemas, praças
públicas com animação cultural também.
O que se pode concluir é que o sucesso da fórmula
atual do shopping center híbrido como lugar privilegiado para a
realização da lógica consumista traz consigo o fracasso da plenitude do ser
social, distanciando-o de qualquer projeto de emancipação e de humanização do
ser humano. Como diz o poe-ta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) no poema Eu,
etiqueta: “Já não me convém o título de homem./Meu nome novo é coisa./Eu
sou a coisa, coisamente.”
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