16 dezembro 2012

A sociologia vai ao shopping center - por Valquíria Padilha


Templo de culto à mercadoria, o modelo do shopping center, como o conhecemos hoje, nasceu nos Estados Unidos na década de 1950. São espaços privados, objetivamente planejados para a supremacia da ação de comprar. O que se compra nesses centros, contudo, é muito mais do que mercadorias, serviços, alimentação e lazer. Compra-se distinção social, sensação de segurança e ilusão de felicidade e liberdade. Munida de um ponto de vista sociológico, a autora visita este espaço encantado e mostra que, nessa exaltação ao consumo e ao lazer alienados, o shopping center exclui a ‘vida real’. Pior ainda: com suas vias limpas e iluminadas, deixa do lado de fora a cidadania e a prática da vida pública.

Valquíria Padilha
Departamento de Administração,
Universidade de São Paulo

Quem nunca ouviu falar em shopping center? Ou nunca passeou pelos corredores desse centro de consumo? Quantas vezes não viajamos para outra cidade ou país e desejamos visitar o shopping center local? Atualmente, o shopping center concorre com a televisão e o computador entre as atrações mais citadas pelas parcelas privilegiadas da popula­ção como preferências de ocupação do tempo livre. Por que isso acontece? Quais são os sentidos desse sucesso?

O que conhecemos no Brasil com o nome de shopping center pode ser entendido como um espaço privado – que se diz públi­co – criado para ser uma solução dos problemas da cidade onde reinam desajustes, desigualdades, contradições, imprevistos. Por isso, consideramos a cidade como o ‘mundo de fora’ em contra­posição ao shopping center como o ‘mundo de dentro’. O ‘mundo de fora’ é a realidade-real, o espaço urbano e seu caráter público. Esse mundo contém outra realidade construída artificialmente, o ‘mundo de dentro’, limpo e isento dos fatores que agem no ‘mun­do de fora’ – chuva, sol, frio, neve, mendigos, pedintes, trânsito, poluição etc.

Ao mesmo tempo em que desencadeia uma série de problemas para muitos, a cidade real possibilita alternativas para poucos, como a criação do shopping center, a ‘catedral’ onde uma parcela da população idolatra as mercadorias e vivencia lazeres que se distanciam da autonomia e da criatividade. O shopping center é hoje um dos empreendimentos mais rentáveis e com uma das maiores taxas de cres­cimento em todo o mundo. A Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce) afirma que, no Bra­sil, o número de shopping centers vem praticamente dobrando a cada cinco anos. Em 1966 havia apenas um shopping center, em São Paulo, enquanto, em fevereiro de 2006, o país já contava com 263 desses espaços em funcionamento, empregando 488.286 pessoas. Nos Estados Unidos, país onde nasceu o atual modelo de shopping center, já havia em 1956 cerca de mil centros comerciais inaugurados e 2 mil em construção. Segundo o urbanista escocês Witold Rybczynski, em seu livro Vida nas cidades, entre as décadas de 1970 e 1990, a cada sete horas, em média, um novo shopping center era inaugurado naquele país.

Os shopping centers refletem, hoje, a cultura de consumo norte-americano, mas suas raízes históri­cas estão nas lojas de departamento da Europa do século 19. Foi entre 1822 e 1832 que surgiram as primeiras galerias em Paris. A cultura de consumo, que se instalou no Ocidente a partir do final do século 18, torna-se reflexo da razão de ser do capi­talismo quando realiza a transposição da utilidade das mercadorias para outros valores que elas passam a ter na sociedade (marca de distinção social, por exemplo). A cultura de consumo que se estabelece transforma os hábitos cotidianos, as relações entre as pessoas, as percepções dos espaços e os signifi­cados dos objetos.

O sociólogo norte-americano Richard Sennett, em seu livro O declínio do homem público, entende a formação dessa cultura de consumo a partir da aná­lise histórica do declínio da vida pública, associado ao aumento da importância da esfera do privado. O capitalismo impulsionou um deslocamento do foco das pessoas para as coisas, fazendo com que elas buscassem significados pessoais em objetos. Nessa nova vida urbana, as condições materiais torna­ram-se mais conhecidas e mais constantes para as pessoas enquanto a vida pública foi ficando cada vez mais frágil.

As lojas de departamentos que nasciam e marca­vam a época eram uma resposta à recente produção fabril, que possibilitava baixar os preços de algumas mercadorias ao mesmo tempo em que as diversifi­cava. E como a produção era feita em massa, havia a necessidade de formar-se também uma massa de consumidores. Essa nova forma de comércio gera o consumo de coisas supérfluas. Mas os lojistas tinham diante de si um desafio: motivar as pessoas a comprar mercadorias desnecessárias, variadas e indefinidas. Para resolver esse problema, os comer­ciantes inventaram espetáculos do lado de fora das lojas para “dotar as mercadorias, por associação, de um interesse que a mercadoria poderia intrinseca­mente não ter”, conforme mostra Sennett.

O desejo de comprar
Para suscitar a vontade de olhar as mercadorias e o desejo de comprá-las, suspendia-se o caráter de utili­dade dos objetos, privilegiando-se o prazer de adqui­rir algo diferente. As vitrines das lojas e as fotografias publicitárias, que criavam ambientes fantasiosos ou colocavam figuras públicas importantes usando tal ou qual mercadoria, criavam uma associação entre os artigos à venda e o status incorporado neles. Essa nova concepção de consumo moldava a personali­dade dos que consumiam as mercadorias porque estavam muito bem dispostas em vitrines ou porque estavam associadas a uma duquesa qualquer.

O estímulo ao consumo presente nos shopping centers e na publicidade dos dias atuais originou-se nessa fase do desenvolvimento do capitalismo em que se combinaram produção industrial em massa e crescimento do mercado urbano com as lojas de departamentos e galerias. O consumo de mercadorias começou, então, a significar um mergulho em fantasia e status social, uma vez que os objetos passaram a ser adquiridos não pela sua utilidade imediata, mas pelo significado social de sua posse. A utilidade dos produtos passa a se submeter ao valor monetário e social que eles adquirem na complexa engrenagem da produção e circulação dos bens no capitalismo. Assim, a aparência das mercadorias passa a ser de fundamental importância para a sua venda.

Nas sociedades capitalistas, o homem não produz mais apenas para satisfazer suas necessidades origi­nais. Existem outras necessidades em jogo que são as impor ­necessidades de valorização do capital. A produção de mercadorias converteu-se em uma fonte de lucro, dado que cada trabalhador produz, para os donos das empresas, muito mais do que precisaria para a satisfação de suas próprias necessidades. A produção capitalista gera excedentes que não são calculados com base nas necessidades naturais do homem e sim nas do capital, o qual, por sua vez, precisa criar novas necessidades para estimular a demanda e o consumo. Assim, a produção deve visar a um consumo descartável, uma cultura do desperdício, o que reflete o princípio da ‘obsolescência planejada’ (os objetos são feitos para serem obsoletos). Esse sistema precisa sempre aumentar a produção de mercadorias em quantidade e variedade, mas não em qualidade e durabilidade.

O lazer nos shopping centers
Partindo dessa concepção, também podemos refletir sobre o lazer enquanto um fenômeno social impor­tante da dinâmica dessa sociedade. Nesse espaço, que denominamos shopping center híbrido – hoje com características de ser mais um centro de com­pra de lazer, serviços e símbolos do que um centro de compra de produtos úteis –, prevalece um certo encantamento das pessoas que ali ocupam o seu tempo supostamente livre. A subordinação do lazer a essa lógica dá-se basicamente pelas várias manei­ras de mercantilização da diversão, que é produzida industrialmente, divulgada pela publicidade e trocada por dinheiro.

Os shopping centers são símbolos de uma so­ciedade que valoriza o espetáculo do consumo de bens materiais e do lazer-mercadoria e que, além disso, oferece a uma parcela da população o direi-to a esse consumo e a esse lazer, enquanto exclui dessa possibilidade a maioria da população. Assim, esses centros comerciais configuram-se como espa­ços de lazer alienado, reduzindo a identidade so-cial ao universo do consumo, tanto dos que frequen­tam tais espaços quanto dos que não os frequentam mas desejariam frequenta-los.

Os diversos equipamentos de lazer disponíveis – como mais um produto à venda – levam seus ­­frequentadores a encontrar diversão em torno da celebração de mercadorias, de modo que, mesmo no lazer, o ‘ser’ permanece subjugado ao ‘ter’. Não há espaços livres, vazios; cada centímetro é preenchido para direcionar a ocupação monetarizada desse centro de consumo. Assim, concebemos o lazer oferecido nesses centros como alienante porque leva ao distanciamento dos sujeitos deles próprios, da obscurecida essência humana, ao mesmo tempo em que não possibilita a livre criatividade, a autonomia, a convivência desinteressada (do ponto de vista financeiro) com os outros. O shopping center – e toda a complexa rede psicossocial que se forma com a ‘sociedade de consumo’ – baseia-se em uma lógica que não possibilita aos homens desenvolverem suas capacidades e seus sentidos em plenitude.

É preciso reconhecer que essa privatização do lazer nos shopping centers acontece porque, entre outros fatores, não existem políticas públicas que confiram ao fenômeno do lazer o caráter de direito social. O shopping center vem aumentando sua participação na esfera do lazer urbano por causa da brecha que a inexistência ou ineficiência dos espaços públicos de lazer vem abrindo. A ausência de políticas públicas favorece também a segregação social, uma vez que o poder aquisitivo acaba sendo um dos determinantes principais para a tomada de decisões diante das escolhas existentes. Quem tem dinheiro tem mais opções.

Espaços como os shopping centers afastam as pessoas de qualquer experiência de “formação”, conforme nos ensinou o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969). Para ele, a “formação” deveria corresponder a uma sociedade de seres livres, iguais e conscientes. Essa formação supõe uma humanidade sem exploração e, mais do que isso, a libertação da imposição dos meios e da utilidade, o que significa a autonomia do ser social. Nesse sentido, o shopping center dificulta ainda mais a superação do que o filó­sofo chamou de “semiformação” – que é a “formação” incompleta, manipulada por interesses exteriores a nós. No shopping center híbrido, parece-nos clara a ausência de pessoas autônomas interligadas. Nesse espaço, os sujeitos estão ainda mais destituídos de liberdade, de forma que a vida em conjunto com os outros não se articula como verdadeira. Não há possibilidade de uma sociabilidade consciente, refle­tida, afastada das artimanhas que acabam reduzindo cidadãos a consumidores.

Diante disso, olhamos para o shopping center como uma referência para pensar a ‘sociedade de consumo’ e de lazer, vista como um mundo encan­tado que, num interessante delírio coletivo, obscu­rece a consciência dos seres sociais para a plena (e difícil) vida em coletividade. Em outras palavras, nos shopping centers os sujeitos estão afastados de si mesmos. Mergulhados nesse universo do consu­mo, sentem-se autorizados a permanecer alheios à vida pública, o que se agrava ainda mais quando se percebe que seu comportamento e suas relações com o mundo são mediatizados por coisas. Nos shopping centers, até o lazer – que deveria ser tempo de li­berdade – torna-se algo a possuir, consumir, usar e gastar. Não há espaço nem tempo para a espontânea fruição do tempo livre.

Compro, logo existo
O shopping center é um centro de comércio que se completa com alimentação (normalmente do tipo fast food), serviços (bancos, cabeleireiros, correios, academias de ginástica, consultórios médicos, es­colas) e lazer (jogos eletrônicos, cinema, internet). Ali, o consumidor de mercadorias se mistura com o consumidor de serviços e de diversão, sentindo-se protegido e moderno. Fugindo dos aspectos negati­vos dos centros das cidades e da busca conjunta de soluções para eles, os shopping centers vendem a imagem de serem locais com uma melhor ‘qualidade de vida’ por possuírem ruas cobertas, iluminadas, limpas e seguras; praças, fontes, bulevares recriados; cinemas e atrações prontas e relativamente fáceis de serem adquiridas – ao menos para os que podem pagar. É como se o ‘mundo de fora’, a vida real, não lhes dissesse respeito...
O que essa catedral das mercadorias pretende é criar um espaço urbano ideal, concentrando várias opções de consumo e consagrando-se como ‘ponto de encontro’ para uma população seleta de seres “semiformados”, incompletos, que aceitam fenô-menos historicamente construídos como se fizes-sem parte do curso da natureza. O imaginário que se impõe é o da plenitude da vida pelo consumo. Nes-ses espaços, podemos ocupar-nos apenas dos nossos desejos – aguçados com as inúmeras possibilidades disponíveis de aquisição. Prevalece a ideia do ‘com­pro, logo existo’.

Concluímos que esse mundo de sonhos que é o shopping center acaba reforçando nas pessoas uma visão individualista da vida, onde os valores propa­gados são todos relacionados às necessidades e aos desejos individuais – ‘eu quero, eu posso, eu com­pro’. Assim, colabora para uma deterioração do ser social e o retardamento do projeto de emancipação de seres mais conscientes, autônomos, prontos para a sociabilidade coletiva – que exige a capacidade da troca desinteressada, da tolerância, da relação verdadeiramente humana entre o eu e o outro, entre iguais e entre diferentes. Compreendemos que um ser social emancipado identifica as necessidades in­dividuais com as da coletividade, sem colocá-las em campos opostos. Assim, o ser emancipado sabe agir pensando nos outros, no presente e no futuro.

O shopping center híbrido representa hoje o prin­cipal lugar da ‘sociedade de consumo’, contribuindo para a sacralização do modo de vida consumista e alienado, um modo de vida em que há uma evi­dente predominância de símbolos como status, poder, distinção, jovialidade, virilidade etc. sobre a utilidade das mercadorias. Vale ainda lembrar que não é somente o shopping center que gera empre­go. Centros culturais, esportivos e de lazer, escolas, postos de saúde, teatros, cinemas, praças públicas com animação cultural também.

O que se pode concluir é que o sucesso da fór­mula atual do shopping center híbrido como lugar privilegiado para a realização da lógica consumista traz consigo o fracasso da plenitude do ser social, distanciando-o de qualquer projeto de emancipação e de humanização do ser humano. Como diz o poe-ta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) no poema Eu, etiqueta: “Já não me convém o título de homem./Meu nome novo é coisa./Eu sou a coisa, coisamente.”

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