10 janeiro 2013

Cultura do Estupro? Não, imagine! - por Lola


Sempre que se fala em cultura de estupro, vem homens dizer que de jeito nenhum, isso não existe, é paranoia de feminista. Eu digo que cultura de estupro é quando temos uma sociedade que tolera e até incentiva o estupro, e que está sempre pronta pra culpar a vítima. Costumo dar alguns exemplos. Tipo: se você foi vítima de estupro e estiver procurando ajuda, será mais fácil encontrar na internet vídeos pornôs com simulações de estupro, mostrando estupro como algo excitante, do que instruções tratando de delegacias e exames de corpo de delito. 

Cultura de estupro écomediante dizer que homem que estupra mulher feia não merece cadeia, merece um abraço, e metade da população rir e, diante dos protestos da outra metade, xingar quem se indignou com o chiste de mal amada, mocreia, sapatão, “nem pra ser estuprada vc serve”. Cultura de estupro é vender camisa (e muita gente comprar pra usar) com “fórmula do amor”, que equivale a embebedar a mulher para conseguir sexo sem resistência. Cultura de estupro é um programa de TV fazer rirem cima de um problema que acomete milhares de mulheres por dia (bolinações dentro de meios de transporte coletivo). Cultura de estupro é anúncio de preservativo brincar que sexo sem consentimento queima mais calorias. 

Cultura de estupro é o comercial da Nova Schin estar passando na TV há meses sem que se veja qualquer problema. Não viu o comercial? Eu explico: um grupo de amigos, só homens e brancos, bebem na praia, quando um deles, ao observar mulheres, pergunta pros outros: “Já pensou se a gente fosse invisível?”. Corte pra latinhas de cerveja flutuando, representando que a fantasia virou realidade. E o que os homens invisíveis estão fazendo? Passando a mão na bunda de mulheres no mar. Sacaneando um cara que joga frescobol. Tocando o terror na praia. 

Até que entram num vestiário feminino. A câmera não mostra tudo, só as latinhas abrindo a porta, e mulheres correndo pra fora, aterrorizadas. O mais perverso é que, mesmo no “clima de humor” do comercial, a expressão no rosto das mulheres é de pavor. Na maior parte das vezes, quando homens fazem piadas de estupro, atenuam a violência fingindo que a vítima está gostando (esta também é uma mensagem perversa, claro). Aqui nem tentam isso. As mulheres saem correndo dos homens invisíveis com medo mesmo.

Publicitário é um bicho arrogante e egocêntrico (eu fui redatora publicitária em outra encarnação). Mas uma de suas funções é estar antenado com o mundo, saber o que acontece, conhecer outros produtos culturais. Daí eu imagino que os publicitários saibam que, desde 2009, as leis brasileiras deixaram de considerar estupro apenas quando há penetração vaginal. Hoje temos uma das leis mais abrangentes do mundo, e passar a mão também pode ser visto como estupro. Ou seja: o que os homens invisíveis do comercial da Nova Schin fazem, pela lei, é estupro. E eles morrem de rir disso. Se fosse com eles, seria engraçado? 

Mesmo que os publicitários não conheçam a lei, eles definitivamente conhecem O Homem Sem Sombra, filme de 2000 do Paul Verhoeven. Nesse thriller, Kevin Bacon faz um cientista que descobre a fórmula da invisibilidade, e a testa nele mesmo. Ele vai ficando cada vez mais obcecado com esse poder, até que decide estuprar uma vizinha que ele espia pela janela. A cena é terrível (você podevê-la aqui, e aqui a continuação, com o comentário do diretor explicando que tiveram que suavizar o estupro), mas mais chocante ainda é o número de comentaristas no YouTube fazendo piadinhas (“ela vai ter um filho invisível?”) e afirmando que, na pele do cientista, fariam exatamente a mesma coisa -– estuprariam mulheres.

E eles não estão brincando. Não tenho tempo para encontrar todas as pesquisas que já li mostrando que, se estupro não fosse crime, muitos homens estuprariam. Margo Paine fez um estudo com universitários americanos, e os números, publicados emBody Wars, não são bonitos. 30%  dos entrevistados responderam que estuprariam se não houvesse consequências legais. 8% revelaram já ter estuprado ou ter tentado estuprar. 83% concordaram com a expressão “Algumas mulheres parecem que estão pedindo para ser estupradas”. Diante de resultados assim, você ainda quer manter sua certeza de que apenas psicopatas estupram? De que não vivemos numa cultura de estupro?

Um dos problemas é que boaparte dos homens não faz ideia do que seja estupro. Estupro, pra eles, é só o que acontece num beco escuro à noite entre um psicopata e uma mulher que, pelas roupas, “estava pedindo”. E tem que haver muita violência física para que esses mesmos homens encarem aquilo como estupro. Para esses cidadãos, não passa a ideia de que estupro é pura e simplesmente sexo sem consentimento. Nesse mesmo estudo de Paine, quando a palavra estupro foi substituída por “sexo forçado”, 54% dos entrevistados disseram que “forçariam sexo”. Quer dizer... Muitos homens não veem forçar sexo como estupro! Assim como a Prudence não vê sexo sem consentimento como estupro. Assim como a Nova Schin não vê agarrar mulheres nuas como estupro.

É exatamente isso que a cultura de estupro faz com a sociedade: ensina que mulher faz charminho, que quando ela diz não ela no fundo está dizendo sim, que é totalmente normal pruma mulher, que obviamente nem gosta de sexo, “vender caro seu passe”, fingindo refutar o macho incontrolável para assim se valorizar. E que homens são eternos brincalhões, boys will be boys.

Acho que nunca publiquei um só post sobre estupro sem que viesse algum sujeito dizer que aquilo é besteira, que somos paranoicas, que não deveríamos dar importância pra aquilo, que deveríamos estar falando da corrupção do governo ou salvando criancinhas na África. Ou sem que viesse algum cara dizer que o caso narrado simplesmente não aconteceu, que a mulher está mentindo, que aquilo não é estupro de jeito nenhum, que as mulheres gostam, que imagina se aquela propaganda faz apologia do estupro!, que nós é que não temos senso de humor. O que eu leio em todas essas frases é apenas um recado vindo de homens: “Não quero saber de assuntos de mulheres, mas quero continuar podendo rir deles”. 

Que tal trocar o disco? Que tal assumir sua responsabilidade nesta cultura de estupro? Temos basicamente dois times: um que luta pelo fim do estupro e pela liberdade das mulheres; outro que luta para manter o privilégio de encarar estupro como piadinha e manter as mulheres com medo. Em que time estão os publicitários e a mídia em geral? Em que time vocêestá?

Visto no blog: Escreva Lola Escreva

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