REVISTA ÉPOCA
Você, que não
perde um capítulo da novela do mensalão e torce pela condenação de todos os
vilões, já parou para pensar se existe uma Carminha em seu íntimo? Lembre que o
exercício da cidadania começa em casa, ao acordar para o café.
Você é uma
patroete ou patrão sem-noção, que desrespeita as empreguetes – ou valoriza o
trabalho de quem limpa, cozinha, lava e passa para você e sua
família?
Não faz sentido discursar contra a corrupção na aula de pilates
ou no salão de beleza e, durante o alongamento e a escova progressiva, falar mal
do “traste” que você mantém em casa, usando a linguagem da novela das 9, Avenida
Brasil. Na “liga das patroas” da novela das 7, Cheias de charme, o uso da língua
ferina contra as empregadas é mais que um passatempo, é um vício.
Se Zé
Dirceu & Cúmplices precisam ser presos para dar exemplo e moralizar a
política, como disciplinar as Carminhas soltas e impunes por aí? E olha que
Carminha é emergente e já fez de tudo. O Brasil está cheio de Sandrinhas,
Therezinhas, Ruthinhas (incluo meu nome para não fulanizar) que nunca fritaram
um ovo, jamais fazem sua cama ou lavam suas calcinhas, não servem uma mesa, não
lavam a louça e nunca usaram um aspirador de pó ou uma enceradeira. Elas têm
horror a detergente e desperdiçam boa parte da vida procurando poeira para dar
bronca. Humilham as empregadas domésticas fixas – um luxo no mundo moderno e
civilizado. Quem já morou na Europa sabe.
Quando Nina começou a se vingar
de Carminha, invertendo os papéis, a novela ficou meio chata. Na voz e nos
gestos de Nina, as barbaridades cotidianas se tornam caricaturais,
inverossímeis. Antes, tudo estava em seu devido lugar: sininho, exploração,
chiliques, maus-tratos. Carminha era sem dúvida mais convincente no papel de
patroa perua cheia de grana.
Se você não é uma Carminha, certamente
conhece uma. Tive uma amiga de esquerda em São Paulo com atitudes singulares. No
quarto, ao lado de sua cama, ela apertava a campainha ao acordar e lá vinha a
empregada com bandeja e o café da manhã preparado. A doméstica dormia num anexo
da casa, era obrigada a usar uniforme com touquinha. Servia almoço e jantar.
Sentava-se na cozinha para ser chamada por um sininho várias vezes durante as
refeições.
Conversei com Léa Silva, conhecida como Tia Léa, dona de uma
laje no Vidigal, favela pacificada do Rio de Janeiro, onde serve refeições para
estrangeiros. Há 38 anos ela trabalha em “casa de família”, desde adolescente. E
já penou com Carminhas e Chayenes. “Sabe o que é levar na cama da patroa uma
bandeja com café e ela jogar tudo longe, as coisas se esparramarem na cama,
porque ela não gostou de alguma coisa?”, pergunta. Tia Léa detesta o som do
sininho. Acha campainha menos desagradável.
Tia Léa era acordada de
madrugada para atender os amigos da patroa. E o quarto de serviço? “Cheio de
entulho”, diz. “Aquele chuveiro frio da Nina na novela... é assim em muitos
lugares. Eu esperava a patroa sair para esquentar água na panela e tomar banho
de baldinho. Colchão costuma ser horroroso. Roupa de cama é o resto do resto.”O
macarrão com salsicha que Nina serviu para Carminha é realidade em muitos lares.
“Comida de empregada era uma, comida dos patrões era outra.” Numa casa,
empregada era proibida de comer as “partes nobres” do frango. “Para nós ficavam
as asas, o pescoço e os pés da galinha. Um dia, eu desfiei a asa bem fininha e
fiz um empadão para mim e para as outras empregadas. Para quê! A madame chegou e
não gostou nada. Acabou pegando o empadão para ela.” Às vezes, não é só a comida
que é diferente. Os pratos, os talheres e os copos são separados. Como se
patroetes tivessem nojo das empreguetes.
Um dos autores de Cheias de
charme, Filipe Miguez, me disse que tenta mostrar “de maneira leve” as agressões
e irregularidades de uma relação típica de Terceiro Mundo. A patroa Chayene joga
sopa na cara da empregada, mas é denunciada na polícia. Em outra casa, uma
menina, filha da empregada que morreu, trabalha sem carteira assinada. “No
Sudeste, é menos comum, mas no Norte e Nordeste isso ainda acontece muito. A
garota cresceu ali, tem casa e comida, e a mentalidade é de casa-grande e
senzala”, diz Filipe.
Se é para encher a boca com cidadania, vamos
convocar o Supremo para julgar se você é uma patroa cidadã? E não adianta pedir
desmembramento do processo para se safar. Sua empregada tem carteira assinada?
Direito a INSS, férias e 13º salário? Quantas horas trabalha por semana? Você a
chama com sininho e campainha? Grita? Está sempre insatisfeita? Controla o que
ela come? As dependências têm dignidade? Preocupa-se com sua saúde ou apenas
reclama que ela está doente e deixou você na mão?
Faça esse teste
simples. Dependendo do resultado, quem sabe você precisa de uma reviravolta
didática em sua vida.
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