Quando o colapso irrompe fronteiras geográficas, o
mínimo a ser fazer é se proteger. Porém, a pandemia do Coronavírus exige mais
de nós nesse sentido. Pela primeira vez, na liquidez da pós-modernidade,
precisamos do isolamento por nós e pelo outrem. Pode soar nobre, mas esconde em
essência instintos de sobrevivência por si só egoístas. Em miúdos, significa
evitar a retaliação proveniente da disseminação da doença. Conter esse looping
é desafiador em uma sociedade onde o outro é indispensável. Mas atar esses laços
é inegociável neste instante, tanto quanto é imediato implantar medidas
higienistas em nosso cotidiano. Trata-se de uma empatia forçada, em um planeta
onde a exploração de tudo formou o que somos, temos e o que sofremos. Aquele
vírus talvez seja o apelo da natureza para os ataques mortíferos contra ao meio
ambiente, em detrimento da sanha capitalista, a qual, predatoriamente, devasta
tudo à sua volta. A resposta, então, veio em mais uma pandemia. Por ela, de
repente o mundo se estreitou. Nunca estivemos tão ligados. Aqueles cuja
superioridade tem sido responsável por aniquilar a vida se veem agora
vulneráveis diante daquilo que une a fragilidade humana no planeta: a saúde.
Estou em confinamento. Sei que não sou o único,
pelo menos não deveria. Há tantos iguais a mim reclusos pela incerteza à espera
milagrosa de um antídoto que nos traga de volta a realidade. Na mídia, há muito
barulho, e números, e casos, e mortes. Fico atordoado com o que vejo. E o SUS?
Pensar nisso me causa calafrio. Ensaio ignorar as notícias, me ocupar com
trabalhos inacabados, me desligar do problema, mas é inútil. Ele está no ar
agora, ávido por um hospedeiro. Ficar em casa é o nosso superpoder, nossa
contribuição, o preço a ser pago pelo apresso que devemos ter pelo outro. Na
rua, entre labirintos de concreto, muitos aderiram à sensatez do momento se
resguardando. Outros, porém, afrontam as normas e perambulam por aí como se
estivéssemos diante de uma virose. É a irresponsabilidade daqueles que não
foram educados a cooperar, em um país de base cidadã fragilizada. E o vírus se
alastra, as projeções negativas se avolumam e eu me atemorizo.
Vagando pela minha casa, cada vez mais
claustrofóbica, ouço meu vizinho a tagarelar com outros sobre o panorama. A
Itália é citada por eles. Fico atento, ansioso para ver qual problematização
sairá daquela conversa. Palavras como inferno, condenação, Roma, castigo,
deixam meus ouvidos desacreditados. Estavam justificando as mortes naquele
lugar por castigo divino. Fiquei sem ar e precisei entrar para a minha ainda
menor residência. Noutro dia, uma senhora pregava na frente do meu lar para
dois alcoólatras. A retórica era a mesma: destruição, insurreição, punição,
isso proferido a plenos pulmões como se no púlpito religioso estivesse. Nada
falei. Observei calmamente aquela cena, pois saberia que me seria útil quando
fosse escrever. Das poucas saídas que dei para trabalhar, descobri que há
religiosos protestando para ocupar as igrejas. Querem cultuar, encher templos,
mesmo que isso contrarie as exigências sociais. O presidente coaduna dessa
loucura, embora uma das máximas de Deus é sua onipresença em todos os lugares.
Aqui estou, surpreso como o misticismo é forte em
detrimento da ciência. Nessa batalha antiga, médicos de hoje usam as redes
sociais para implorar pela nossa colaboração: fiquem em casa, lavem as mãos,
mantenham o distanciamento social. Tudo é dito à exaustão para sensibilizar,
cobrar um posicionamento que deveria ser natural. Mas não é. O Estado interviu,
decretou o fechamento de tudo, provavelmente implantará toque de recolher. A
decisão, todavia, não partiu de imediato do chefe da nação. Foi preciso que
cada capital nacional se mobiliza-se por conta própria, pois a presidência
desdenhou, eficaz em seu papel de não fazer nada, sobre a pandemia: “é
fantasia!”. Infelizmente não era. Há correligionários dele detectados com o
vírus. Brasília está entre as cidades com mais casos, antecedida por Rio de
Janeiro e São Paulo. E o acrítico líder da pátria foi obrigado a pensar. Da sua
oca cabeça beligerante não saiu solução empática. De sua boca as únicas
preocupações são com os prejuízos econômicos, com os empresários que lucraram
com sua vitória e a elite, primeira a ser afetada pela pandemia. Não há atenção
à saúde, cuidados com o povo, respeito aos profissionais que estão agora
lutando com pouco que dispõem para salvar vidas.
Panelaços surgem entre protestos e homenagens. São
ações louváveis vistas pelo telespectador que, de casa, acompanha o mundo que
conheceu se transformar da noite para o dia. Contudo, são frágeis em suas
militâncias, em um país onde muitos que ali estão, gritando palavras de ordem
contra o desgoverno, votaram naquele energúmeno para a presidência e, ao mesmo
tempo, pouco se preocupam em qualificar a saúde nacional. Agora, com as redes pública
e privada na iminência de um colapso, e a economia em declínio, batem-se
panelas, palmas, batuques, contra um e a favor de outros; nessa hipocrisia
abrasileirada que não cansa de nos ridicularizar perante o mundo. Tudo bem,
escapou aos olhos de muitos. Não há tempo para embates. Precisamos de diálogo.
Ouvir nunca foi tão imperativo. A mídia tem sido esse canal comunicativo. Há
que ache exagero tamanha cobertura. Porém, foi a negligência informativa uma
das causas do caos na Itália, onde centenas de vidas são ceifadas a cada hora.
Aqui, a voz da ciência precisa chegar a todos o quando antes, ainda mais na
crescente onda de terraplanismo. Trata-se de validar pela primeira vez a razão
de quem tem propriedade para falar de doenças.
Em casa, fui visitado pela angústia. Sua chegada
não foi à toa. Tudo o que vejo, leio e assisto, formam um panorama
desalentador. Penso em quem mora comigo, uma entre tantas senhoras inclusas no
grupo de risco do Coronavírus. Me apavoro ainda mais. Durmo mal, como idem. É
uma característica minha sofrer por antecipação, mesmo ciente que é inútil. A
resposta que busco vem da palavra. Escrever é o elixir das minhas dores. Quando
sinto que estou prestes a sucumbir de vez, escrevo. Aqui estou. No entanto, sei
que outros não têm válvulas de escape para fugir. Daí vem a ansiedade,
depressão, o suicídio, patologias agravadas há tempos pela pressão de pertencer
a um corpo social, mas que podem ser agravadas pelo confinamento. Precisamos de
sanidade, seja pela fé não alienante, seja pela racionalidade dos fatos. Cada
um precisará encontrar seu eixo de equilíbrio. Reaprender a viver nas sombras,
voltar a caverna platônica que acreditávamos estarmos libertos. Felizmente,
temos a tecnologia para acalentar a solidão. Ela precisará ganhar mais vida
nestes tempos de morte. A única aliança possível entre nós.
Lembrei da viralização da corrente “ninguém solta a
mão de ninguém”. É uma metáfora, sei disso, mas não podemos correr o risco de
criar discursos dúbios nessas circunstâncias. Para a ocasião, o mais sensato
seria “todo mundo colabora para todo mundo”, ficaria na mesma indefinição
inclusiva da primeira. Precisamos nos solidarizar pelo outro que é o nosso
correlato, nosso espelho, nosso sangue. É desrespeitoso recorrer ao sagrado por
uma salvação individual quando aquele que pede não tem feito sua parte pelo
coletivo. Se precisar clamar ao sobrenatural para nos proteger, faça! Tudo é
válido! Porém, com as mãos higienizadas e sem aglomerações, é possível se
conectar com o divino e obter as graças desejadas. Por sua vez, no âmbito
político, a presidência do Brasil, inegavelmente inapta para estar onde estar,
precisa ser humilde para admitir sua incapacidade administrativa, visível a
olho nu, e pedir ajuda, mostrar solidariedade, ser empático, mesmo que
hipocritamente. O povo gosta de líderes que mostrem interesse pelos seus
dilemas. Mais que isso, invista na saúde e seus profissionais, os grandes
heróis nessa batalha contra o Coronavírus. A nós fica a lição aprendida a duras
penas pelo confinamento: quem conecta o mundo são as pessoas. Então, vamos
fazer a nossa parte para perpetrar essa conexão.
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