19 maio 2020

O INFERNO EM WEINTRAUB



Não precisa ser Cristão para saber que os fundamentos deixados por Jesus na terra têm sido deturpados por hordas de hereges, travestidos sob o manto da evangelização, cuja irrupção na política tem deixado marcas tão profundas quanto na Idade Média. Desse coquetel molotov político-religioso nacional, advindo da onda ultradireitista do governo Bolsonaro, não há uma divisão clara do que seria céu e inferno. Tais instâncias coexistem aqui na terra nos limítrofes determinados por quem se acha merecedor de ocupar o firmamento, ao passo que relega as chamas infernais aqueles que não coadunam com suas demarcações. Porém, a fala do impronunciável ministro da educação a respeito da reportagem de Drauzio Varella, sobre a realidade prisional das travestis e transexuais, demonstra em sua potência verbal a força de quem tem propriedade para falar de inferno, pois este está alocado nas entranhas daquele indivíduo.

Como se sabe, é cada vez mais complexo determinar onde começa a política e termina a religião, tamanha intromissão desta no cenário público nacional. Com a democracia em ruína, e o alavancar do ultraconservadorismo, a metamorfose entre ambas tem feito estragos imensuráveis na sociedade. Um deles é permitir que a instância educacional tenha um ministrado que se apropria de conceitos religiosos para tratar de temáticas sociais. Ao fazer isso, o “imprecionante” ministro da educação deixa mais que claro o caráter punitivista da governança atual. Uma posição tirânica, por isso controversa, de quem deveria usar a fé para abrandar as violências, concretas e simbólicas, que vitimizam a sociedade, sobretudo os grupos minoritários.
Certamente, Abraham Wheintraub representa esse novo nicho religioso-protestante-petencostal-politico da qual certos grupos humanos são passíveis de condenação. Não há julgamento, perdão, tão pouco absolvição. Os direitos se restringem aos seus púlpitos eivados de uma retórica salvadora ilusória, restrita a seus fiéis hipnotizados pelos brados de seus pastores-políticos, os quais usam do sensacionalismo, e não do pecado, para levar ao inferno seus desafetos. Foi isto feito no vídeo de Drauzio Varella. A pachorra do ministro em atacar a atitude do médico escancara a tática infalível que levou Bolsonaro à presidência, criar balbúrdia- a única verdadeira deste desgoverno- para incitar os preconceitos infinitos da nação. Em parte, funcionou. A travesti Susy, destacada no final da matéria jornalística, foi ainda mais hostilizada por aqueles hipnotizados pelos delírios da atual governança.

Entretanto, xingar no Twitter através das Fake News só funciona para quem já foi infectado pelo vírus da burrice que assola o país desde o golpe a Dilma Rousseff. Para os demais, imunes e essas sandices, a atitude do ministro semianalfabeto escancara a falta de compaixão de setores religiosos para com a população penitenciária, mas, sobretudo, os grupos LGBT’s. Os que felizmente gozam de liberdade veem seus direitos serem arruinados paulatinamente desde que a sanha bolsonarista irrompeu o poder, por meio de falácias em torno do “kit gay”, ideologia de gênero, proibição de discussões sobre educação sexual, meninos vestem azul e meninas vestem rosa, doutros recalques protagonizados por quem tenta inutilmente castrar a sexualidade humana. E, os detidos, idem. Dessa forma, diversos líderes religiosos magistrados evidenciam com essas atitudes qual é o perfil selecionado pelas suas Igrejas a ir ao céu: héteros, brancos e endinheirados; desconfigurando o legado deixado pelo Cristo.

Na verdade, o que tocou na ferida desses impostores foi ver na mídia o papel que deveria ser exercido por eles, sendo feito através da solidariedade alheia. Assim, ao desmascarar o projeto de governo das Igrejas, as quais, em suas figuras representativas na política, pouco se importam com presidiários, bem como aqueles que estão à solta, se estes fizerem parte dos grupos marginalizados por eles e usados como pêndulo a séculos para o enriquecimento da Igreja Católica no passado e, hoje, das esferas protestantes. O propósito delas é expandir seus espaços, não para disseminar o amor de Cristo, mas para enriquecer por meio dEle. Isso numa nação construída sob os pilares da fé e erguida nas frágeis paredes da ignorância pulveriza-se rapidamente, sobretudo na realidade hiperconectada atual.

De volta ao inferno de Weintraub, mandar Varela e a travesti Suzy para tal local não parece ser o mais apropriado. Para quem acredita nessa condenação eterna, talvez seja um destino horrível imaginar uma eternidade de sofrimento, em um lugar criado para punir os ditos ímpios da terra. Porém, para muitos indivíduos, o inferno existe em vida. Susy e aquelas travestis e transexuais estão cientes disso, pois, a criminalidade que as abraçou advém de uma sociedade preconceituosa, responsável por inúmeras violências, torturas, discriminações que resvalam em mortes psicológicas desses indivíduos, quando não ceifam literalmente suas vidas. Por isso, lamentavelmente, a morte parece ser para muitas delas o descanso diante de tudo que sofrem. Todavia, há pessoas como o médico Drauzio Varella, antes de tudo humano, capaz de se separar entre o joio e o trigo nesta seara. Tamanha seleção prima pelo respeito profissional, dedicação a trazer dignidade para a vida de pessoas cujas histórias de miséria contam com descasos no âmbito da saúde física e emocional. Assim, um simples abraço, que poderia ter sido dado por esses políticos pseudo sacerdotes de Cristo, foi ofertado pela simplicidade de quem, distante de conotações políticas, apenas fez o que a governança e seus correligionários são incapazes de admitir, o seu papel.

Ao invés disso, preferem retomar o espaço ficcional de danação destinado aos pecadores, elaborado pelo Catolicismo, do que expressar qualquer tipo de respeito a condição humana, a partir da óptica religiosa da qual tanto usufruem. Porém, muito antes da representação dantesca conhecida hoje por nós, o inferno é um estado moral. Talvez o lugar mais complexo onde o humano possa ir. Trata-se de um espaço destinado às maledicências que a vil capacidade humana é capaz de realizar. Contudo, a sociedade, através da educação, tem papel crucial nisso, pois o conhecimento civiliza, humaniza, cria seres empáticos, os quais, em consonância com o subjetivismo da fé, conseguem moldar um caráter sempre em processo de ajuste. O estado de elevação capaz de abraçar a diferença e levar até ela o aconchego negado por tantos preconceitos, estes sempre precipitados a condenar ao fogo aqueles que Cristo certamente levaria para luz. Enquanto não entendemos que o binômio céu e inferno é intrínseco ao que somos, caímos nessa balela de condenar o outro aos braços do capiroto, quando, na verdade, o coisa ruim já habita em muitos de nós.

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