09 setembro 2019



     A maior burrice que podemos fazer ao entrar em um relacionamento é excluir aquelas pessoas que, na nossa solteirice, nos preencheram o vazio da solidão, porém, é o que mais acontece. No afã do encantamento, rapidamente números são apagados da agenda, mensagens comprometedoras são deletadas e aqueles contatos, que saciaram a ausência de uma cia, são renegados ao esquecimento. Os bem intencionados argumentarão que isso é uma prova de amor, de fidelidade, palavras muito grandes para serem usadas levianamente, ainda mais quando pouco se conhece de quem está ao nosso lado. Em muitos casos, quando começamos um envolvimento com alguém, há muitas incertezas em jogo. Entretanto, ávidos para dar uma resposta imediatista ao nosso par, desfazemos laços importantes com os contatinhos que tínhamos, os quais, na pior das hipóteses, são os únicos dispostos a nos oferecer alguma forma de afago quando o que idealizamos não dá certo.
     Como a dinâmica a dois ganhou novos contornos com a internet, os relacionamentos seguem em gigabytes unindo almas ávidas a se arriscarem no convívio com o outro. Levar em consideração o advento tecnológico é imprescindível para dar credibilidade aos contatos. Isto porque, por mais vislumbre que se crie por alguém na vida real, a rede tem ofertado hiper possibilidades de envolvimento. São aplicativos, salas de namoro, chats, todos dispostos a acalentar nossas necessidades, sejam elas afetivas ou sexuais. Logo, se afobar na escolha de alguém, sem estar certo dos reais sentimentos envolvidos na questão, não só amplia a incidência de se optar por uma alternativa errada, como também nos faz agir por impulso, renegando aqueles contatos que tiveram, e tem, a sua serventia. Essas tomadas de decisões imprudentes costumam vir carregadas de arrependimentos depois, quando aquilo que deveria durar uma vida nem chega a ser um namoro de verão.
       Em muitos desses casos, ao começar um envolvimento com alguém, há muitas incertezas em jogo acerca da durabilidade daquela história. Não há garantias de que os sentimentos sejam recíprocos e, o pior, duradouros. Hoje, devido aos arranjos conjugais que começam com um click e terminam em outro, é cada vez mais complexo assegurar a duração de uma vida a dois. Porém, iludidos com uma ideia frágil de fidelidade, muitos de nós faz uma demonstração abrupta de comprometimento eliminando os contatinhos da lista telefônica e demais redes sociais. O problema é que, em diversos exemplos, a pessoa que se dizia disposta a estar conosco pode mudar de ideia. Então, nos vemos duplamente sós: sem os contatos e sem a promessa de uma aliança vindoura. Muitos podem alegar que quem chega a esse ponto peca pelo amadorismo. Porém, não há profissionalismo nem experiência capaz de nos impedir de fazer uma escolha equivocada. No campo do sentimento estamos na arquibancada torcendo para que o nosso time ganhe, mas, muitas vezes, o jogo vira.
       Nesse sentido, há conexões que precisam ser mantidas, mesmo que não venham com a promessa de algo a longo prazo, mas que sejam capazes de saciar lacunas presentes, antes daquela pessoa especial de fato surgir em nossas vidas. Porém, concordo que há contatos e contatos. Alguns merecem ser tratados no diminutivo, pois pouco acrescentam a nossa história de vida. Outros, todavia, deveriam ser alocados em outra categoria, porque se tão presentes na dinâmica diária que muitas vezes é impossível pensar em um desenlace. Evidentemente que esse pensamento é repudiado numa sociedade pseudo monogâmica como a nossa. Preferimos ir de encontro a nossa natureza para atender a anseios externos incapazes de compreender e, sobretudo, suprir o nosso lado mais animalesco, aquele que deseja sim várias pessoas, amá-las sem o jugo da condenação, sempre tão rápido e raso em sentenciar os transviados. 
       Ter opções não pode ser visto como traição quando o outro não nos garante a devida segurança. Até que alguém se torne prioridade para nós, não podemos descartar as inúmeras possibilidades de conhecer, estar ou quiçá viver com alguéns, no plural, desde que seja algo consentido, devidamente compactuado entre as partes e seguro para os envolvidos. Entretanto, os mais puritanos rapidamente levantarão a bandeira da promiscuidade para acusar quem opta por essa forma de relacionamento. Tal atitude, além do inegável tom conservador, ignora uma realidade vista claramente: todos usam todo mundo. Seja por uma noite de prazer, seja por mera conveniência, estamos todos em constante relação de interesse com o outro. Ir de encontro a isso é ignorar a influência do capital no convívio humano também no campo afetivo. Assim, ao invés de sentenciar os contatinhos no bojo das vulgaridades, o mais sensato seria rever esse modelo tacanho de namoro/casamento, o qual inicia-se e termina-se cada mais abruptamente.
         Poucas são as uniões não precipitadas. Na ânsia de estar com o outro, firmamos um acordo sem ler as entrelinhas desse contrato, o qual é repleto de cláusulas e pouquíssimas brechas, fazendo com que, quando haja um conflito, ambos estejam sufocados. Não é de se espantar que no Brasil tenha aumentado significativamente o número de litígios, alguns até de forma violenta, bem como de pessoas que trocam de parceiros como de roupa, até mesmo em ambientes ditos mais improváveis como espaços religiosos. Esse fenômeno, apesar de ignorado, na prática refere-se a precipitação dos envolvidos. Estamos divididos em dois polos bem claros: aqueles que buscam ensandecidamente por uma alma gêmea e o outro que não quer perder tempo apenas com uma única pessoa quando o mundo oferece um leque gigantesco de possibilidades. A questão é que o segundo lado dessa moeda é hipocritamente acusado de lascivo, quando ambos os lados praticam, de fato ou em pensamento, a política de ter, ou idealizar alguém, para preencher o que nos falta.
       Os contatinhos, portanto, limitam a chance de escolhermos apressadamente alguém que pode não ser o grande amor de nossa vida. É a nossa zona de conforto, o purgatório, uma espécie de transição para algo melhor que mais cedo ou mais tarde virar. Também faz parte das novas modalidades cibernéticas, em um mundo onde a desconectividade é impossível. Serve para ampliar a nossa noção de tempo, o qual é adiantado para estar com o outro cujo o ritmo nem sempre está em compasso com o nosso. Mais que isso, os contatinhos confrontam as verdades frágeis que criamos para defender uma monogamia incapaz de deter o curso de nossas paixões. Claro, em países como o Brasil, o machismo e a misoginia nem sempre equiparam a balança dessas experimentações, o que está sendo paulatinamente combatido e revisto. Assim, caso você não esteja certo de que encontrou a pessoa da sua vida, não aniquile a pluralidade que te serviu nesse processo. Permita-se experimentar os outros e ser provado por eles. Não se precipite: os contatinhos são importantes.

06 setembro 2019



       Quem nunca se viu perdidamente apaixonado por uma pessoa que não tem nada a ver com o seu perfil? Aquele indivíduo que chega do nada e penetra em fendas muito profundas de nossa alma e parece nos conhecer mais do que a nós mesmos. A pessoa que nos revira do avesso e descobrimos com ele que esse era o nosso lado certo. Aquele cara que sua família certamente não vai aceitar por não ter perspectiva de futuro, mas que conseguiu valorizar qualidades suas que nenhum outro já fez. Ou aquela garota superindependente, cheia de personalidade, indisposta a encarar o perfil dona de casa, que a muitos assusta, transformou-se na mulher de sua vida. Provavelmente, esses e tantos outros arranjos conjugais começam com uma química inexplicável. Trata-se de um fio condutor invisível que, por mais que tentemos lutar contra a nossa razão, a emoção toma as rédeas e nos faz correr o risco de viver aquele sentimento incerto com esse alguém. Isso provavelmente seja química, uma sensação subversiva de ir de encontro as nossas verdades, desconstruindo todas as certezas que tínhamos, para nos aventurar no novo e, a partir dele, começar uma história de amor digna de novela.
        Nem faz muito tempo assim, escrevi um texto sobre relacionamentos sob a perspectiva da cara metade, a outra face da laranja, alma gêmea, descreditando o valor dessas expressões. Na época, achava inconcebível a possibilidade de validar essas ideias no campo amoroso, embora eu tenha tido envolvimentos facilmente classificáveis naquelas categorias. Na minha intransigência, fruto da imaturidade e inexperiência, torcia o nariz para os apaixonados os quais se derramavam em romantismo dentro e fora da rede quando seu aparentemente par perfeito aparecia em suas vidas. Continuo achando que a perfeição nesse campo é impossível, mas estou mais flexível quanto a possibilidade de encontrarmos alguém sob medida para nós. Tamanha mudança só acontece quando passamos a dividir das mesmas experimentações vividas por muitos. O problema é racionalizar esse novo sentimento que não é amor, paixão, é apenas química, a qual, no início, em sua vaga manifestação, vai muitas vezes de encontro com os preceitos que criamos para estar com alguém.
         Vou me colocar na berlinda deste assunto, mesmo não tendo ampla propriedade para falar dele. Antes de me aventurar nas possibilidades oferecidas pelos aplicativos de relacionamento, partia do princípio de ser incapaz de me envolver sentimentalmente com alguém pela internet, sem ao menos ter tido qualquer contato íntimo clássico que me fizesse ter certeza de quem aquela pessoa era. Falo do olho no olho, sentir a pele, provar do beijo... mas que isso, analisar se o perfil daquele indivíduo confere com as minhas expectativas, se temos gostos parecidos, ou complementares e, assim, se a mágica da afinidade acontecia entre nós. Esses critérios me pareciam irrefutáveis, mas também foram flexibilizados. Nessa era tecnológica, o príncipe ou princesa não deixaram de ser símbolos de desejos para uma vida a dois, apenas ganharam novos contornos. Os castelos são outros e os muros, que impediam a entrada ou saída desses locais, nem sempre bloqueiam a conexão, agora mais virtual, entre as pessoas. Assim, a tecnologia baniu muitas barreiras impenetráveis para estar com alguém, mas não nos ensinou a lidar com o outro fora dela. Estou em fase de formação nesta seara.
         Acredito que não seja o único em aprendizado nesse sentido. É complexo demais lidar com a euforia de estar conectado com alguém que mal conhecemos, mas queremos estar juntos, dividir uma intimidade, mesmo que esse alguém seja completamente o oposto do parceiro que havíamos idealizado. Esse é outro ponto interessante da química, ela quebra toda e qualquer expectativa que temos sobre com quem vamos nos relacionar. Apesar da nossa insistência em traçar um perfil X ou Y, quando o coração diz “é esse!”, mesmo que não seja, somos compelidos a arriscar. Dar Match também significa se aventurar no incerto, permitir-nos criar laços de afeto à revelia de qualquer checklist. Claro, há muitas chances de sermos enganados pelos nossos sentimentos. Às vezes, nosso nível de carência ultrapassa o tolerável e nos faz cair em armadilhas. Porém, após alguns tropeços, passamos a distinguir melhor quem serve ou não para estar ao nosso lado.
        De certo, não prevemos de quem vamos gostar. Nosso gosto, apesar das interferências culturais, é incerto, pois correspondem aos nossos anseios mais instintivos e são passíveis de mudanças temporais e comportamentais. Por exemplo, há pessoas que numa fase da vida preferem se relacionar com outras mais velhas, devido não só a curiosidade, maturidade, mas também ao senso de responsabilidade. Anos depois essas mesmas pessoas passam a desejar outras mais novas, por razões variáveis. Há quem prefira na juventude o tipo Bad Boy, e mais à frente se case com o mais almofadinha dos caras. Da mesma forma, há quem prefira mulheres complacentes para namorar, mas se atraia ao longo da vida por outras mais atrevidas. Quando a química bate, personalidade, características físicas, noções de estética, classe social, idade, gênero e até mesmo sexualidade, perdem seu poder limitado de classificação para se transformarem em meros detalhes incapazes de impedir a felicidade de quem se vê refletindo brilhante pelo olhar do outro.
          Entretanto, combinar com alguém momentaneamente não garante a longevidade desse enlace, e não há drama nesse sentido. Por mais que vivamos numa fase onde as relações amorosas são cada vez mais breves, isso não quer dizer que estão menos intensas. Pelo contrário, é nessa efemeridade que as pessoas regozijam de um prazer a dois fora do comum, pois não há espaço para desperdício, é um sugando o máximo que pode do outro e vice-versa, o que naturalmente pode levar à exaustão. Todavia, essa intensidade que constitui a química entre duas pessoas no início não deixa muitas sequelas, caso termine antes de virar uma longa história de amor. Muitas delas são paixões de verão, envolvimentos de curtas semanas, as vezes dias, mas não menos especial do que uma vida inteira. Diante da falta de profundidade de algumas dessas configurações a dois, sobra entrega, permissividade e recomeço com menos neuras e mais bagagem na mochila quando uma onda de tremores anunciar que uma nova química está abalando as estruturas. Bater a química, então, não significa sacramentar nada em definitivo. É mais um dos compassos do baile que sempre segue adiante.
        Estou aprendendo essa nova coreografia dos envolvimentos. Para quem está de fora, parece complexo, mas logo logo encontramos no ritmo da dança os parceiros de uma noite, uma estação ou da vida inteira. A durabilidade da história não determinará sua intensidade. Aliás, quando a química bate, o lance não é quantificar nada, mas qualificar. Se foi bom, se valeu a pena, nos deixou mais leves, bem conosco, significa que ficou algum legado e isso não pode ser descartado. Da mesma forma que as experiências ruins também precisam ser aproveitadas. Nada é desperdiçado no processo. Claro, inconscientemente somos levados a crer que aquele Match será nosso por tempo ilimitado, mas o eterno enquanto dure, enfatizado pelo poeta, está cada vez mais relativizando-se. O que não se relativiza são as sensações: o frio na barriga, a ansiedade, as fugas, as loucuras, a vontade de estar junto, de ir contra o mundo para viver com aquela pessoa. Tudo isso continua dando aos nossos Match’s algum significado, embora a química continue sem explicação, e não precisa de uma. Basta continuar nos fazendo felizes.  


       Tive depressão. Não faz muito tempo, mas ainda machuca tocar nessa ferida, embora, da descoberta até a atualidade, houve um longo processo de tratamento e reencontro comigo mesmo para vencer essa doença e impedir o seu agravo. Não é fácil. Ainda carrego profundas marcas da época em vias de cicatrização. Quem tem/teve momentos assim sabe da luta diária travada consigo para seguir em frente. Parece que o mundo perde as tonalidades vívidas que dão sentido a existência. Digo isto porque, revirando o meu transcurso depressivo, lembro como a ausência de cores em coisas básicas do meu cotidiano afetaram outros sentidos meus como o paladar, o olfato e o tato. Sem o colorido ávido capaz de atribuir vida ao que me cercava, comecei a sucumbir a escuridão lentamente até chegar a um ponto crítico do qual o breu surgia como único refúgio para a dor que sentia. E por que estou falando de cores nesse contexto? Justamente porque no mês do Setembro Amarelo, apesar de compreender a função deste tom para a discussão sobre suicídio/depressão, acredito que há outras pigmentações tão caras a essa problemática, que precisam ser destacadas.
       Para validar essa tese, recorro a algo pouco difundido entre o grande público. Trata-se da psicologia das cores, estudo voltado a mostrar como o nosso cérebro identifica e transforma os tons a nossa volta em sensações. O marketing já usa desse artifício há anos para angariar novos clientes, mas pode ser estendida também para a maneira como gostaríamos de ser vistos e compreendidos pela sociedade. Nesse sentido, as cores não servem meramente para o adorno do olhar. Cada uma exerce uma força quando captada pelas lentes humanas. O problema é que no prisma refletido pela sociedade contemporânea, há uma pintura única, traçada no geral pelos socialmente privilegiados, para delinear a existência de todos. Trocando em miúdos, nos é vendido um quadro de vida do qual o molde pode ser ajustado para todos os indivíduos, como se possuíssemos uma capacidade furta-cor de nos adequar a realidade do outro, ao passo que anulamos a nossa. Alguns conseguem tal adaptabilidade, pagando um alto preço por isso, porém, outros muitos destoam, e daí o suicídio muitas vezes entra em cena.
          Em outras palavras, o suicida é alguém desencaixado dos parâmetros sociais. Ele é sensível ao captar a insuficiência da matiz ofertada pelo social, depois sofre ao perceber que não se encaixa naquela aquarela aparentemente perfeita, grita em silêncio por socorro, observa que ninguém se importa com isso e, por fim, chama atenção para si através do apagamento da própria existência. Seguindo esse raciocínio, é espantoso o crescimento do autocídio, sobretudo entre os mais jovens. Dentre muitas razões, nossa juventude não está sendo vista, incluída em sua multiplicidade e, sobretudo, acolhida. Sem referenciais para se apoiar, a depressão ofusca possíveis rotas de fuga, levando-os ao trágico desfecho pela morte. Não à toa, entre os muitos sinais daqueles que pretendem dar cabo da própria vida, está o uso de vestimentas escuras, como um prelúdio daquilo que estar por vir. Ou seja, o verde conhecido como símbolo da juventude, por designar vitalidade, saúde e esperança, perde sua conotação de segurança e dá lugar ao preto da melancolia e da morbidez.
      Entendo como essa substituição se dá. No auge da minha crise, sentia uma paz quando estava na escuridão do meu quarto trancado, ausente da pieguice alheia - inútil por excelência – longe dos ruídos externos que muito diziam, mas eram incapazes de tocar meu íntimo, e protegido do contato humano. Para ser resgatado desse limbo foram meses de insistência daqueles que me amam, todos não apenas preocupados com o meu bem-estar, mas com o desaparecimento do brilho nítido que havia nos meus olhos – que de verdes ficaram foscos diante do que passei. Sorte não ter chegado ao ponto do obscurantismo total, porque tinha estas pessoas ao redor dizendo que havia um arco-íris à minha espera. Porém, ter gente disposta a colorir o meu caminhar é um privilégio de poucos. Muitos em situações semelhantes ou piores que a minha nem sequer são percebidos por aqueles que dizem nutrir algum sentimento. Talvez seja essa negligência uma das principais responsáveis pelo desaparecimento das cores que equilibrariam os desajustes daqueles com depressão.
        Sabiamente, todavia, o amarelo escolhido para tingir o mês de Setembro é eficaz no que se propõe, pois problematiza a necessidade de olharmos atentamente para aqueles que nos rodeiam. Isto porque, em uma era onde o eu é autossuficiente, não há espaço para os dilemas do outro. Então, evocamos essa cor de alerta, da luz, da euforia, mas também do otimismo, para reverter esse quadro egocêntrico, na tentativa de salvar quem tanto precisa da nossa ajuda. Tem funcionado. Após algumas edições dessa campanha anual, mais pessoas se mostram receptivas a discussão e, mais que isso, aptas a dispor de tempo para observar e acolher aqueles susceptíveis a depressão e suicídio. Contudo, sobrecarregar a cor amarela, concentrando-a em um único mês, é pouco diante da complexidade do assunto. É preciso neutralizar as chances de tais doenças acometerem ainda mais a sociedade. A maneira que encontrei, e quem tem funcionado muito, é potencializar o sentido das cores: tranquilizar-me com o azul, espiritualizar-me com o lilás, alegrar-me com o laranja, reavivar o verde da esperança, estar vermelho de paixão pela vida e em paz comigo mesmo.
      Não cheguei a essa conclusão sozinho. Além dos muitos que me cercam, ser acompanhado por psicólogo e depois por analista, a qual faço até hoje, e recomendo – foram cruciais para reaprender a olhar o mundo. É um ciclo que pode variar de pessoa para pessoa. O que quero dizer aqui é que as cores, e não apenas o amarelo, poderiam ser grandes aliadas no combate e cura daqueles, que como eu, sofrem/sofreram de depressão, impedindo a opção do suicídio. Dessa forma, reiterando a psicologia, cores podem ser uteis por compreender nossos anseios, salvando-nos de longos sofrimentos e fins abruptos. Cores são indivíduos atentos aos sinais mais singelos do outro pedindo socorro. Pessoas ternas como o tom de rosa que tanto romantiza as nossas relações, levando a compreensão através da delicadeza do olhar, sempre visando não apenas afagar, mas, principalmente ouvir e entender as dores do outro. Cores também são possibilidades. É a metáfora do pote de ouro no fim do arco-íris. Significa mostrar para quem está nessa condição de vazio profundo que há um mundo colorido debaixo daquela escuridão imposta pelos nossos medos.
        Passados três anos após a descoberta da minha depressão, aceitação do diagnóstico – que também não é fácil – tratamento e processo de cura, estou reencontrando as cores a minha volta, todas ainda mais brilhantes e vivas do que antes. Mais que isso, passei a iluminar a vida daqueles cuja a escuridão da depressão tenta fisgá-los. Tornei-me uma cor, é isso que precisamos também para evitar que o amarelo seja a única encarregada de chamar atenção sobre esse assunto. Parece complexo por em prática essa sinestesia, porém, o fato é que já irradiamos isso sem notar quando não julgamos os depressivos, não o condenamos ao inferno, ou, simplesmente quando estamos dispostos a ouvi-los e compreendê-los, ao passo que mostramos que há naquela dor toda dentro dele uma paleta de cores apenas revirada, mas que pode ser reorganizada. Se o depressivo/suicida, descolorido pelo mundo, notar que o mundo passou a nota-lo, incluí-lo, respeitá-lo como é, suas cores voltarão junto com a sua vontade de existir, pois o suicídio precisa de cores para viver.

04 setembro 2019



      Após o término recente e conturbado do meu namoro, tinha decidido dar um tempo nos relacionamentos. Na época, o pivô da nossa separação foi a mentira, de ambas as partes. Acontece que a pressão social para estar com alguém alimenta uma carência nem sempre nossa de preencher o vazio deixado pelo outro com uma nova pessoa. Assim, depois de encontros mal sucedidos, aderi, por indicação da minha analista, ao famoso Tinder, pois, diante de tantos relatos, haveria uma chance de achar alguém bacana por lá. Empolgado, fiz a minha conta e confesso que tenho me divertido com a experiência de dar “Match” com pessoas interessantes, geralmente fora da minha caixinha. Porém, para não repetir os erros passados, resolvi ser o mais honesto possível na criação do meu perfil, desde fotos, descrição, gostos pessoais e o que mais me representasse. Iludido, achei que não era o único, mas, depois de uma espécie de DR com um futuro pretendente, percebi que dizer a verdade nesses aplicativos esfria qualquer possibilidade de envolvimento.
        Não é novidade que a internet se tornou o celeiro dos mentirosos. Nessa era de pós-verdade, encontrar na rede alguma veracidade nas informações é uma tarefa de Sísifo. Mais ainda é conseguir se relacionar com o outro sem a presença de inverdades convidativas para atrair aquele que se quer ter uma ligação. O que há são fabulações pessoais consentidas criando um pacto silencioso, mas frágil, entre duas ou mais pessoas que, quando inteiradas fora do âmbito virtual, percebem a fraude que há no outro ou em si mesmos. Nesse sentido, mentimos sobre a nossa idade- geralmente para menos- inventamos profissões, atributos físicos, características pessoais. Enxertamos adjetivos extras a nossa personalidade, elaboramos frases de efeito, floreamos um perfil imaginário de nós mesmos para atrair o outro tão ou mais aparamentado das mesmas artimanhas. Todo esse teatro do absurdo é estrelado por inúmeros perfis atrás de outros atores para dividir uma cena mentirosa de uma possível fake vida a dois.
          Então, os poucos como eu dispostos a encontrar alguma genuinidade acabam se frustrando diante dos simulacros existentes na rede. Digo isso por experiência própria e sei que não sou nem serei o único. Na odisseia pelo “dating”, passei por situações constrangedoras, as quais poderiam ser facilmente evitadas se o outro estivesse inclinado desde o início a se mostrar como é tanto esteticamente quanto individualmente, assim como ser aberto para receber o inverso de minha parte. Por exemplo, dos muitos encontros marcados, apenas um foi interessante. Noutros, as pessoas eram completamente diferentes daquilo que se mostravam no aplicativo, tanto visualmente quanto na personalidade. Numa ocasião, fiquei enrubescido quando um cara com o dobro da minha altura e peso chegou perto de mim cumprimentando-me. Fiquei, a priori, sem reação, porque meu cérebro não conseguiu captar quem ele era. Após as apresentações, ele me disse ser o rapaz do Tinder, que na minha memória era mais magro do que eu e pelo menos dez anos mais jovem. Perguntei porque ele não se mostrou como é. A resposta saiu em retórica: “E quem faz isso?!”.
             Em outro exemplo, conheci um rapaz cujo perfil muito me agradou. Marcamos um encontro e logo de cara percebi que ele não era nada daquilo que havia descrito no aplicativo: “Sou amante da leitura, gosto de um bom papo, amo filmes e séries, sair à noite para jantar ou se jogar na balada. Sou alto astral, da paz, estou em busca de alguém para dividir os bons momentos da vida comigo.” Quando li isso, disse para mim mesmo: encontrei meu futuro namorado. Quando deu “Match” eu quase tive um surto pela tela do celular. Conversamos alguns dias e tudo parecia bem, até que a máscara dele caiu quando o questionei sobre a necessidade de nos vermos, aí ele disse filosoficamente: “tudo tem seu tempo...” Retruquei dizendo que namoro virtual só é viável quando a distância é um obstáculo imposto, o que não era o nosso caso. Foi o suficiente, o rapaz “alto astral” se mostrou superintransigente, rude, assumiu que odiava sair de casa e que não sabia se queria namorar. Pensei, oi?! Escorpiano que só, alfinetei: “Você mentiu desde o início, então?” Pronto, começou uma DR pelo zap que hoje me causa gargalhadas, mas que denota algo sério: a verdade não é um critério para se relacionar.
            Ficamos tão preocupados em conceber um arquétipo equivocado de nós mesmos que não admitimos que alguém, mesmo que seja um futuro pretendente, venha arruinar o conto de fadas feito para nos fazer acreditar que somos mais do que aquilo que já somos. O problema começa com mentirinhas bobas, mas que se agigantam e podem levar a construções patológicas das nossas particularidades, levando-nos a acreditar que precisamos assumir uma persona multifacetada para conseguir ser visto por alguém. Disso não só há a negação das nossas potencialidades, mas também o desrespeito com a expectativa do outro. Mentimos duplamente nesse sentido. E mentir, apesar do efeito paliativo, não soluciona nossas dores, só agrava, submergindo-nos em um mar de ilusões onde o afogamento leva a morte das nossas identidades. Falar a verdade, dentro e fora das redes, por mais surpreendente que seja, confere dignidade a nossa história de vida e aquela que pretendemos iniciar com alguém. Claro, digo isto pela perspectiva de alguém que já usou e abusou do artifício da mentira e viu as consequências negativas advindas de tais atitudes. A maturidade ensina que o custo da mentira é alto, mas o valor da verdade é incalculável.
           Todavia, na era fake das relações virtuais, é preferível ludibriar a própria essência para conseguir fomentar uma versão imaginária de si, desde que esta sirva de atrativo para angariar outros currículos tão enganosos quanto. Assim, “photoshopa-se” a aparência, edita-se o caráter, simulam-se preferências, inventam-se idades, táticas dissimuladas de quem prefere preencher o vazio da solidão a partir de um pertencimento transitório, ou restrito ao mundo cibernético. No cara a cara, no tête-à-tête, não há espaço para essas mentiras, por mais bem elaboradas que sejam. Salvo quando o outro logra dos mesmos anseios falseados. Contudo, no geral, perfis irreais são facilmente perceptíveis. Tratam-se de máscaras mal ajustadas à face. Infelizmente, muito provavelmente esse espetáculo de horror, do qual a genuinidade é vista como vilã, estará em longuíssima temporada nas redes sociais e, sobretudo, nos aplicativos de relacionamento, pois, nestas páginas – assim como em toda a internet- a verdade tem sido inimiga do convívio sensato entre as pessoas. Assim, inseridos nesse mundo, e sem o discernimento para filtrar suas interferências, optamos por relações mentirosas, sejam com amigos ou futuros pretendentes, do que abraçar a delícia da honestidade nossa, do outro e entre todos.
             Eu, enquanto isso, continuo fidedigno ao que sou para atrair o que há de mais legítimo no outro. Não cederei à mentira nesse âmbito à custa de perder o que me há de mais precioso, a minha identidade. Respeito, porém, quem prefere usar do subterfúgio da inverdade para saciar seus desejos. Não julgo ninguém por isso. Só não quero servir de experimento para as fantasias de quem acredita que a verdade não é um critério para se relacionar.