05 dezembro 2018



Não sou religioso, tampouco ateu, agnóstico ou deísta. Faço parte daquele grupo que crer em algo, mas que foge de categorias religiosas. Costumo me autointitular de preguiçoso da fé, pois, mesmo simpatizando com várias práticas sagradas, acho cansativo ter que criar morada em uma única vertente religiosa frente a pluralidade em que estamos inseridos. Porém, caso meu posicionamento acerca disso muda-se, acredito que seria um religioso atuante, defensor dos oprimidos e acusador dos canastrões que usam o sagrado para benefício próprio. Lutaria firmemente para que a minha crença fosse legitimada, desde que a do meu colega tivesse a mesma prerrogativa. Levaria os preceitos que escolhi seguir não apenas como meras regras, mas como filosofia de vida e faria de tudo para aplicá-las a minha rotina. Então, fazer o bem seria meu norte, não apenas partindo da minha óptica pessoal do que seria benevolência, mas, sobretudo, pelo olhar e necessidades alheias. Nem por isso assumiria a estirpe do religioso modelo. Mas, faria de tudo para que a religião que escolhi caísse bem em mim, tornando-me referência para outras pessoas.

No entanto, faço a seguinte pergunta a você leitor, independentemente de ser ou não religioso, de ter ou não uma fé, ter uma religião lhe cairia bem? Antes de formular sua resposta, preciso dizer porque cheguei até tal indagação. Em tempos de tremenda intolerância, desrespeito e desumanidade como os atuais, a inserção em algum espaço sagrado parece ser o mais apropriado para conter a sanha autodestrutiva que nos forma. De fato, a religião, seja ela qual for, nos permite reconectarmos com aquilo que há de mais precioso para a existência nesse plano, o amor ao próximo. Em seus discursos, o fazer o bem é uma máxima presente em vários segmentos sacralizados, defendido como uma das poucas formas de se alcançar o elo com o divino. O problema é que não basta decorar versos, ir assiduamente a igrejas/templos/santuários, seguir dogmas à risca, quando a tarefa primeva de muitas crenças é ignorada, o amar. Vejo que muitos convertidos desconhecem a aplicabilidade dessa palavra, revelando o quão frágil é apenas ser de uma religião X ou Y sem vivenciá-la de fato.

Para os mais incrédulos, basta um olhar um pouco mais atento nos grandes círculos comunicativos de hoje, as redes sociais, para ver o manto da hipocrisia cair. Nelas, discursos contrários a qualquer ação benfazeja são facilmente encontrados em perfis de indivíduos crédulos, tementes a Deus, muitos em posição de destaques em várias religiões e assíduos em suas práticas dogmáticas. Por estar constantemente inserido nesta atmosfera, cansei de ver esses “religiosos” pregando o ódio, incitando a violência, desrespeitando minorias, muitas vezes usando, inapropriadamente, o nome de Deus ou distorcendo Suas palavras para benefício próprio. Evidentemente que tal prática remonta vários períodos da história da religiosidade humana, porém, na atualidade, há um misto de cinismo e dissimulação que muito me preocupam, não apenas por afetar o Estado democrático de direito (que de laico guarda apenas a ideologia), mas por deturpar algo tão sublime que é o exercício da fé, tão caro em momento de desespero como o atual.

Claro que boa parte dessas pessoas fazia, e faz isso inconscientes do que professam, porque há um discurso forte de manada por trás da retórica beligerante da qual se utilizam. Basta saber que o Brasil vive um impressionante crescimento de pessoas que se autointitulam religiosas. Vejo isso, a priori, como um avanço, na medida em que sabemos que a prática religiosa conserva em si muitas bases humanizantes do respeito e tolerância, sobretudo na nossa sociedade majoritariamente Cristã. Entretanto, contrariando todas as expectativas sagradas, a enxurrada de novos religiosos não tem primado pela qualidade. Hipnotizados por uma retórica salvadora, alienam-se facilmente por meio de discursos teatralizados de líderes controversos, que se utilizam da ignorância social para deturpar os preceitos mais primários da religiosidade. Não à toa, no último período eleitoral muitos representantes religiosos utilizaram seu poder para determinar quem os fiéis deveriam ou não votar. Minha vizinha, por exemplo, de deputado a presidente da república, votou cegamente nas “indicações” do seu pastor.

Esses novos religiosos não se sustentam em suas crenças, pois suas bases não foram construídas a partir de epifanias, tão pouco ouve qualquer chamamento dos céus que fizessem ecoar algo em seus corações, tão ensurdecidos pela lábia dos falsos profetas atuais. O convite partiu ora da dor de se viver imergido numa sociedade onde o medo cria uma áurea de pânico nublando qualquer chance de reflexão, ora de um enredo elaborado por grandes instituições religiosas, que imersas na vida contemporânea, seduzem os mais influenciáveis a adentrar as suas portas desprovidos de qualquer amor pelo próximo. A ideia é enxertar templos, enriquecer líderes religiosos, distorcer a palavra divina e/ou impô-la as demais pessoas, tratando-as como hereges, caso ousem questionar a soberania do deus fotoshopado adorado por esses zumbis. Tudo isso tem surtido efeito. Temos mais canais religiosos na TV aberta do que sobre educação e cultura, a bancada religiosa (leia-se, Cristã) avança confortavelmente na política ditando o que quer e os ícones religiosos passaram a ser mais idolatrados do que o próprio Jesus Cristo.

Devido a estas interferências, os novos convertidos são avessos ao respeito, se mostram intolerantes com outras práticas religiosas que diferem da sua, se julgam no direito de se por como referência para penalizar o coleguinha, quando muitas vezes tem o histórico tão imundo quando o dele. São adúlteros, charlatões, mentirosos, indiscutivelmente corruptos, mas usam destas falhas em seus discursos acusativos para sustentar a alcunha de bom samaritano aos olhos do povo. Muitos são extremamente preconceituosos e fazem questão de deixar isso bem claro, seja na vida pública real ou virtual, hasteando uma bandeira clara de repúdio às minorias ou grupos que fujam do seu falho tradicionalismo. Apáticos, poucos se preocupam com as tragédias cotidianas, não atuam para minorizar o sofrimento das pessoas, mesmo que seja de forma singela legitimando suas lutas. Usam inescrupulosamente o histórico de fé para macular a laicidade do Estado, criando projetos e/ou impedindo que pautas caras a sociedade sigam em frente, porque vão de encontro ao seu sagrado. São muitas vezes egoístas, possuem crise de superioridade e transformam a fé, que é tão pura, em ferramenta de manipulação. Então, alienados, lotam instituições religiosas mas se esvaziam enquanto humanidade.

Assim, caso o leitor não tenha chegado a uma resposta a minha indagação, deixo aqui a minha: acredito que a religião não nos cai bem quando não assumimos a responsabilidade pelo sacrossanto serviço de fazer o bem. Quando não entendemos que somos uma extensão de nossas crenças e que, por isso, precisamos levar adiante o que há de mais puro para contrapor o desamor que nos circunda. A religião não nos cai bem quando adentramos nela de forma leviana, apenas para escapar momentaneamente de nossos temores, ou para agradar a terceiros. Quando somos desonestos em nossas ações cotidianas, propositadamente alienados e simpatizantes da desinformação. Ainda quando fingimos ignorar os erros de nossos irmãos de fé e não denunciamos as suas indulgências. A religião não nos serve se usamos ela meramente para benefício próprio apropriando-se da mídia, da política, não para disseminar o amor, o respeito e a tolerância, mas para impor nossos dogmas e punir quem não compartilha de tais preceitos. Se for usada como mecanismo de superioridade também não serve. Tão pouco é válida se o foco for apenas encher templos, ganhar espaço na TV e enaltecer líderes religiosos. Acima de tudo, a religião não nos cairá bem se o bem não passar a ser nossa filosofia de vida.

Se a ideia é produzir mais e mais crédulos e ampliar a noção do sagrado em nossa sociedade, há algo de errado no cerne desta construção. É inegável que a religião não tem caído bem em muitas pessoas presas a verdades frágeis sobre certo e errado. Faltam a estes indivíduos a complexa tarefa de reaprender a amar. Apenas o amor rege o universo. Eu acredito nisso, como também creio que é possível ter uma postura humanizada dentro ou fora do seio religioso. O problema é que, antes, esperávamos muito daqueles que se inseriam nas religiões ao ponto de sufocá-los com cobranças que nem sempre poderiam ser cumpridas. Hoje, porém, há uma avalanche de pessoas que se consideram religiosas apenas em titulação e pouco estão preocupadas em se responsabilizar por essa mudança de comportamento. Ser religioso é ser também um agente social. Então, não há nada de errado ter milhares de indivíduos se convertendo a religiões diversas, desde que todas tenham seu espaço assegurado na sociedade e que seus fiéis sejam incansavelmente orientados a levar o que há de melhor em seus preceitos para as demais pessoas; sobretudo aquelas que não desejam ter qualquer vínculo religioso ou têm horror em se encaixotar em uma delas e se tornar mais um desses novos zumbis.

Quero ser teu amigo.
Nem demais e nem de menos.
Nem tão longe nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu puder.
Mas amar-te, sem medida,
e ficar na tua vida
da maneira mais discreta
que eu souber.
Sem tirar-te a liberdade.
Sem jamais te sufocar.
Sem falar quando for hora de
calar,e sem calar, quando
for hora de falar.
Nem ausente nem presente por
demais,simplesmente,
calmamente, ser-te paz...
É bonito ser amigo.
Mas, confesso,
é tão difícil aprender!
E por isso
eu te suplico paciência.
Vou encher este teu rosto
de lembranças!
Dá-me tempo
de acertar nossas distancias!

Fernando Pessoa

A prova do ENEM foi uma afronta ao conservadorismo. Mostrou que a escola é o lugar da subversão, da não aceitação do conservadorismo, do pluralismo de ideias, da abertura para o novo.
Contra o agronegócio, a prova trouxe a agroecologia, bem diferente da propaganda da Globo que diz que o agro é tec e pop. Contra o binarismo biológico do sexo, a prova joga na cara duas autoras lésbicas: Angélica Freitas, de "o útero é do tamanho de um punho", e Natalia Polesso, de "Amora". Além disso, o vocabulário do mundo gay, vindo diretamente do iorubá, expõe que estamos negros, mulheres e gays no mesmo barco da transgressão por ousarmos ser o que somos. Contra o racismo, a prova traz uma questão que, mais do verificar a função da linguagem, expõe os estereótipos e solicita empoderamento. Por que motivo uma questão mostra a produção de Stela do Patrocínio? Uma negra louca e lindamente poeta a gritar "Eu sobrevivi do nada, do nada...". Por que motivo uma questão traz um poema da "literatura negra" que diz "às vezes sou o policial que me suspeito e o porteiro não me deixando entrar em mim mesmo"? Por quê, me digam? Contra o machismo, inclusive instituído pela leitura errônea dos textos sagrados, a prova fez os alunos se depararem com um anúncio de denúncia ao assédio e uma propaganda publicitária da década de 40 que vendia um tônico para mulheres considerando-as de natureza doentia e frágil.
Para coroar, a redação exigia que os candidatos reconhecessem que a internet tem seus mecanismos de manipulação dos usuários, tais como as farms de likes e as fake news compradas. Ah, e não passou despercebida a questão que mostra que esse negócio de brasileiro cordial é uma balela, porque as redes sociais são, na verdade, antissociais, disseminadoras de intolerância e ódio. Contra os idiotas que vociferam contra os direitos humanos, a prova esfrega uma questão que fala da Declaração Universal dos Direitos Humanos e indica seu estudo desde os primeiros anos escolares. Sim, escola deve ensinar o aluno a valorizar os seus direitos e os direitos do outro.
Essa prova foi contra toda a onda conservadora que nos abateu, contra a horda de eleitores que decidiram votar no homem que quase nem gente é e que representa o que de pior somos. Essa prova é para que os bolsominions saibam que não será fácil calar a voz dos educadores.
Enfim, esse foi uma prova que os subversivos, perseguidos e vistos como aberrações devem ter respondido com um sorriso de orelha a orelha, que é o mesmo que sambar na cara da sociedade hipócrita, machista, misógina, racista e cretina. durmam com essa e aguardem a luta, porque nosso nome é LEGIÃO DE SUBVERSIVOS.


Provocar o leitor a pensar a respeito do que se lê é uma árdua tarefa enfrentada por muitos escritores ao longo da história. Em um plano geral, nem sempre certas ideias, por mais inovadoras que sejam, conseguem ser bem efetuadas no papel levando ao outrem uma reflexão acurada, profunda e acessível da gênese do pensamento daquele que escreve. Felizmente, a literatura universal possui alguns gênios responsáveis por ultrapassar esses limites impostos pelo fazer artístico, ao passo que suscita em nós os mais provocativos pensares acerca das nossas incongruentes existências. Nelas, luxúria e castidade, vaidade e moralidade, libertinagem e conservadorismo, compõem as muitas hipocrisias que insistimos em nutrir para viver em sociedade. O Retrato de Dorian Gray não só revisita esses polos, como também desnuda suas incoerências em uma época onde o belo sobrepõe tudo, algo resgatado e deveras enaltecido na atualidade.  

Escrito pelo Irlandês Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray foi publicado pela primeira vez em 1890. Devido ao seu conteúdo considerado como impróprio à época, o livro sofreu diversas sanções para que se adequasse as exigências editoriais antes de ser veiculado ao grande público. Dentre elas, as passagens homoafetivas foram as mais atingidas pela censura do período. Em boa medida isso estava ligado à conduta pessoal do escritor, que viveu abertamente uma relação homossexual que resultou anos depois em sua ruína. Porém, isso não retirou a maestria da obra, que mesmo eufemizada em certas passagens, conservou seu caráter original de enfretamento às incoerências de uma sociedade vitoriana. Ambientada numa Inglaterra do final do século XIX, a obra conta a história de Dorian Gray, que ao ter um quadro pintado a sua semelhança, escraviza sua imagem nele, criando uma representação animalesca de si mesmo.

A escolha do retrato não poderia ser mais pertinente. Não há arte capaz de reter tão fidedignamente a realidade do que as pinturas. Nem mesmo o advento tecnológico consegue tanta verossimilhança que muitos quadros clássicos da humanidade. As pinceladas do pintor captam as silhuetas invisíveis ao mundo real convidando o espectador a (re)olhar com mais minúcia determinados modelos. Assim como um artesão, breves instantes de vida se imortalizam nas mãos ágeis e delicadas de quem é capaz de aprisionar o tempo através das cores. Na obra quem encarna esse papel é o personagem Basil Hallward, o qual, encantado com a beleza do jovem Dorian Gray resolve fazer um quadro deste, cujo trabalho seria o mais importante da sua vida. Tanto empenho surge da imensa beleza emanada pelo rapagão, um verdadeiro Apolo do seu tempo, humanizado entre os meros mortais para deixar claro a mediocridade de suas existências. A princípio constrangido e incomodado com a bajulação de Hallward, Gray mostra-se alheio aos elogiosos comentários do pintor sobre sua beleza.

É quando lorde Henry Wolton entra em cena. Sua participação engrandece o romance. Em boa medida, suas colocações mordazes, seu humor leviano e a contumaz valorização da beleza como suprassumo da juventude corrompem a mente do jovem Gray fazendo-o reencontrar nele mesmo a valorização pessoal através da eternidade de sua aparência. Wolton representa também os anseios do próprio Wilde. É uma clara personificação do escritor frente à filosofia defendida por ele que apenas as coisas belas merecem ser valorizadas. Trata-se do Esteticismo, corrente defendida por Wilde na qual as belezas, por mais efêmeras e frágeis, são as únicas que importam. Tais ideais são sobrecarregados nas falas de Wolton levando-o a influenciar Dorian Gray. Hedonismo, e maledicência criam uma retórica inebriante acerca da relevância extrema que a beleza tem na vida daquele rapaz.

Sendo a juventude vulnerável por excelência, Dorian Gray se deixa levar pela capciosa interferência de Henry Wolton e passa a entender o sentido de sua existência a partir daquilo que há mais de precioso nela: a sua beleza e juventude. No afã da hipervalorização imagética, Basil resolve produzir um retrato do belo rapaz. O resultado final é mágico. Dorian ver-se pintado no auge de suas potencialidades físicas e, hipnotizado pelo que vê – assim como Narciso o fez em seu lago na antiguidade-, sente que suas feições serão deterioradas pelo tempo, enquanto aquele retrato permanecerá idêntico ao momento que foi pintado, guardando para todo o sempre o instante vivaz em que o belo e o novo – o que há de mais precioso para ser louvado, segundo o já mudado Dorian – estarão imaculados naquela imagem. Então, ensandecido pelo triste fim que sua perene existência mortal lhe reserva, ele invoca dentro de sua alma o desejo de permanecer infinitamente como aquele retrato, ao passo que o quadro carregaria as desgraças impostas pelo tempo.  

Ao se condenar a tal moldura, diversas implicações psicológicas emanam na vida de Dorian Gray. Entretanto, é preciso ler a obra para absorver as mudanças sofridas por este personagem susceptível a influências externas, mimado, por vezes irascível, mas tão atemporal. A autoflagelação de Gray irrompe o tempo. Hoje, a busca incessante pela beleza física tem feito com que diversos indivíduos entreguem suas almas, muitas vezes literalmente, para conquistar as definições perfeitas. Não à toa a beleza abra portas, sobretudo se for padronizada a partir do espectro eurocêntrico do qual foi moldada a cultura ocidental. O belo sobrepõe tudo, ultrapassa a emoção e extrapola a razão levando muitos indivíduos aos mais absurdos gestos para adquiri-lo. Tamanha supervalorização saiu das artes plásticas e ganhou notoriedade em outros veículos como o cinema, a mídia televisiva e hoje a internet.

O Retrato de Dorian Gray não apenas questiona a nossa devoção fanática pela perfeição corpórea como desmascara certas atitudes animalescas realizadas por nós para pertencer a tais ideias de beleza; tão fugidios em sua essência. É uma excelente obra. Curta, de linguagem simples, atemporal, provocativa, que nos faz refletir sobre como exaltamos inutilmente a beleza em detrimento de outras potencialidades caras à existência. Leitura imperdível para quem pretende entender os efeitos dos discursos hipnóticos usados por grandes nomes da sociedade para angariar milhares de seguidores ávidos por pertencimento através daquilo que é visto, e aceitável, como belo. Além das implicações reflexivas que inevitavelmente emergirão da obra, O Retrato de Dorian Gray é uma deliciosa leitura, mesclada com doses calculadas de humor, sarcasmos, aforismos, frases de efeito, filosofias, tudo isso sem pesar a mente do leitor com metáforas desnecessárias e por vezes incompreensíveis. O livro é tão belo na linguagem quanto em essência, por isso se imortalizou entre nós e figurará por muito tempo nessa era de Selfie onde o Retrato de Dorian Gray passou a ser digitalizado.


A palavra “Desiderata” vem do Latin e significa “coisas que são desejadas”. Também é o título de um famosíssimo poema, que se tornou particularmente conhecido durante os anos sessenta, junto com o movimento hippie. O texto é uma reunião de sábios conselhos que deram a volta ao mundo inteiro, pela precisão de suas ideias e pela profundidade de seu conteúdo.
Em um dado momento, surgiu todo um debate sobre a origem desse poema. Em torno do texto foi criada a lenda de que havia sido escrito por um monge anônimo e que havia sido encontrado sobre o banco de uma igreja em Baltimore, há duzentos anos. De acordo com esta versão, o poema teria sido escrito no ano de 1692.
Na verdade, tudo se tratava de um equívoco. O autor de “Desiderata” foi o filósofo e advogado Max Ehrman. Mas o texto não foi publicado em vida; só foi a público em 1948, quando sua esposa publicou seus poemas de forma póstuma.
O erro surgiu porque, por muitos anos, ‘Desiderata’ foi um poema que passou de mão em mão, como uma espécie de ato de boa vontade. Se transformou em algo como uma proclamação; buscava-se que quem o recebesse praticasse tudo que estava escrito ali.
Muitos resolveram omitir o nome do autor, e foi assim que chegou às mãos de um pastor de Maryland, que compilou vários textos para fazer uma edição especial de Natal. Dentro destes textos estava o ‘Desiderata’ e, ao lado do nome, o presbítero anotou uma legenda: “Igreja de Saint Paul, 1692”. Ele só escreveu estes dados para identificar seu tempo e o ano de fundação do mesmo.
Alguém da congregação ficou encantado com o poema e pediu que um jornal o publicasse. Assim aconteceu, então, a popularização do erro que dizia ser um texto de 1692 que havia sido encontrado na Igreja de Saint Paul.
Seja como for, a verdade é que se trata de um lindo texto que foi traduzido para mais de 70 idiomas.
Este é o texto desse maravilhoso poema:
Desiderata
Siga tranquilamente entre a inquietude e a pressa, lembrando-se que há sempre paz no silêncio. Tanto que possível, sem humilhar-se, viva em harmonia com todos os que o cercam.
Fale a sua verdade mansa e calmamente e ouça a dos outros, mesmo a dos insensatos e ignorantes – eles também tem sua própria história.
Evite as pessoas agressivas e transtornadas, elas afligem nosso espírito. Se você se comparar com os outros você se tornará presunçoso e magoado, pois haverá sempre alguém inferior e alguém superior a você. Viva intensamente o que já pode realizar.
Mantenha-se interessado em seu trabalho, ainda que humilde, ele é o que de real existe ao longo de todo tempo. Seja cauteloso nos negócios, porque o mundo está cheio de astúcia, mas não caia na descrença, a virtude existirá sempre.
“Você é filho do Universo, irmão das estrelas e árvores. Você merece estar aqui e mesmo que você não possa perceber a terra e o universo vão cumprindo o seu destino.”
Muita gente luta por altos ideais e em toda parte a vida está cheia de heroísmos.
Seja você mesmo, principalmente, não simule afeição nem seja descrente do amor; porque mesmo diante de tanta aridez e desencanto ele é tão perene quanto a relva.
Aceite com carinho o conselho dos mais velhos, mas seja compreensível aos impulsos inovadores da juventude.
Alimente a força do Espírito que o protegerá no infortúnio inesperado, mas não se desespere com perigos imaginários, muitos temores nascem do cansaço e da solidão.
E a despeito de uma disciplina rigorosa, seja gentil para consigo mesmo. Portanto esteja em paz com Deus, como quer que você O conceba, e quaisquer que sejam seus trabalhos e aspirações, na fatigante jornada da vida, mantenha-se em paz com sua própria alma.
Acima da falsidade, dos desencantos e agruras, o mundo ainda é bonito, seja prudente.
FAÇA TUDO PARA SER FELIZ
Max Ehrmann
Texto extraído e traduzido de  VerkenJeGeest

A mente de cada um de nós pode ser nossa liberdade ou nossa prisão. Tudo depende dos pensamentos que cultivamos dentro de nós.
Você já se deu conta de que a forma como você pensa pode mudar o rumo da sua vida?
Pensamentos podem ser asas. Quando se decide o que quer, os pensamentos vão adquirindo forma, tornam-se concretos e nos levam a lugares incríveis, onde só uma mente que pensa à frente é capaz de chegar. Nenhuma barreira é suficientemente forte para provocar uma desistência.
Mas os pensamentos também podem se tornar uma prisão, se não forem bem direcionados. Se girarem em torno de amargura, pessimismo, revanchismo ou outras formas de negatividade, a vida se aprisiona e passa a acontecer em um contexto limitado, dentro de cercas e sem mudanças ou avanços consistentes.
Buda ensinou que: “A LEI DA MENTE É IMPLACÁVEL. O QUE VOCÊ PENSA, VOCÊ CRIA; O QUE VOCÊ SENTE, VOCÊ ATRAI; O QUE VOCÊ ACREDITA, TORNA-SE REALIDADE.”
Tudo está relacionado à energia com que você alimenta seus pensamentos, e seus desejos. Depende também do quanto você realmente acredita naquilo que pensa. Porque, ao acreditar, começamos a caminhar em direção ao que queremos que aconteça, como se já antecipássemos o que ainda é impalpável.
Mesmo que algumas coisas não aconteçam no tempo que gostaríamos, é importante que já acordemos com pensamentos positivos e com sinceros desejos de que eles se tornem realidade. Isso é muito poderoso! Produz força, inclusive, para nos ajudar a lidarmos com os inesperados da vida, que são inevitáveis e fazem parte da história de todas as pessoas.
As vantagens de saber direcionar os pensamentos são visíveis. A pessoa que alimenta pensamentos positivos tem um semblante mais feliz e confiante, vive com mais determinação, aprende com as quedas e traça planos mais ousados que os da maioria. Segue com coragem e sem o medo paralisante do desconhecido, que trava muita gente. Olha pra frente, mantendo as dores no passado e traçando metas para um futuro que, por essas características, tende a ser promissor.
Pensar positivo não se trata de uma teoria sem fundamento, é um jeito eficiente e mais prazeroso de ver a vida. É entender que acreditar no que se pensa é o primeiro passo para fazer acontecer. O pensamento positivo tem o poder de levar a crer que tudo pode mudar a qualquer momento, e a crença de que essa mudança será para melhor, traz ânimo e disposição. Afinal, sabemos de antemão que tudo depende da importância que se dá.
Para quem ainda não se deu conta dos benefícios, o ideal é educar a mente. Pode-se começar com leituras e músicas que incentivem a manter a mente aberta para as coisas boas e passar a substituir palavras negativas por palavras positivas no dia a dia. E a partir disso, deixar de pensar nos obstáculos apenas como problemas e percebê-los como desafios capazes de gerar aprendizados e desenvolvimento pessoal.
Manter a mente ocupada com o que realmente é construtivo e importante tem um valor inestimável. Como nos diria Marla de Queiróz, “pensamentos são lugares. Escolha onde você quer estar.”
Escolha o seu e seja feliz!
Visto no: CONTIoutra


Vez ou outra a vida nos coloca numa posição de vulnerabilidade mesmo cientes de que no existir ora estamos por cima, ora por baixo. Esse equilíbrio é inevitável, mas a durabilidade de um desses polos depende unicamente de nossos esforços. No geral, o lado positivo da vida costuma ser superestimado ignorando que, cedo ou tarde, a negatividade baterá a nossa porta. Engana-se, porém, quem pensa que aquilo que consideramos ruim nos chega ao acaso. Boa parte de nossos males são velhos conhecidos nossos, sabem das nossas fraquezas, espreitam pacientemente as nossas falhas e se alojam feito parasitas nos recônditos de nossa alma, arruinando-nos de dentro para fora. A decadência é um desses invasores. Oportunista, ela espera o exato instante em que baixamos a guarda para nos reduzir a nada. Então, quando damos conta de sua presença, já estamos sós, com pouquíssimas perspectivas de mudança e desacreditados da vida. Porém, a decadência não chega sem avisar.

A priori, quando estamos em processo de ruína, acreditamos na falácia de que não fizemos nada de importante na vida e que não há mais tempo para reverter a nossa realidade. É que a decadência costuma minar a nossa noção de temporalidade para nos enfraquecer. Funciona. Muitos passam a acreditar que não foram úteis ou que seus feitos não tiveram serventia e não há mais o que melhorar. Consumidos por essa ideia de fracasso, vamos nos autoboicotando, a princípio nos acumulando de atividades para correr atrás do tempo perdido, depois amargurados por não conseguir realizar todos os desejos, os quais nem sempre são nossos. O excesso de responsabilidade e a autocobrança também colaboram com a decadência. Vivemos numa época em que temos que ser perfeitos em praticamente tudo: na escola, no trabalho, em casa, em nossos relacionamentos amorosos, com os amigos e familiares, dentro e fora das redes sociais. É um checklist interminável dificílimo de ser cumprido à risca por todos nós.

Assim, impelidos a pertencer a todos esses mundos, nos sobrecarregamos de funções, acumulamos pedidos que não são nossos, ao passo que nocauteamos a nossa personalidade, anseios, desejos e sonhos, em detrimento da sociedade. Então, quando menos esperamos, cada um daqueles pilares que não nos representava começa a ruir levando-nos a decadência. Desse modo, é preciso entender sua atuação frente aos anseios da vida moderna. Isto porque vivemos numa era em que nos é constantemente cobrado uma postura comportamental frente as demais pessoas. A felicidade virtual faz parte dessa cobrança. Nas relações individualistas da atualidade, não ser extremamente feliz, dentro do modelo exigido pela sociedade, é estar excluído socialmente. Logo, outra aliada da decadência surge para nos fragilizar ainda mais, a obrigação. Somos muitas vezes obrigados a pertencer a realidades que não dizem nada sobre nós apenas para fazer parte do sistema e quando nos damos conta dessa prisão, vem a tristeza, depressão, a solidão, elementos que degradam o corpo físico, mente e alma.

Essa série de determinações sociais vai, aos poucos, minando nossas barreiras. Então, basta um trauma, uma promoção no trabalho que não veio, uma morte inesperada de alguém muito especial para nós, uma decepção com uma pessoa de extrema confiança, uma tragédia, ou qualquer outra coisa, para nos deteriorar por completo. Confinados em nossas dores a decadência encontra no nosso sofrimento a chance de nos arruinar por completo. Nisso, ela é extremamente sorrateira por se aproveitar de nossas incertezas para nos desmoronar. Reduzidos a pó, nos agarramos ao arrependimento de algo que nem sabemos ao certo do que se trata. É quando entra em cena a partícula se: e se eu tivesse feito isso? E se eu tivesse escutado aquele conselho? E se eu não tivesse ido por aquele caminho? Não adianta. Lamentar os deslizes do passado não vai amenizar as dores do presente, apenas dar vazão para que a decadência se alastre ainda mais em nós.

Perecendo em um mar de frustração, costumamos também acusar o outro por aquilo que nos acontece. Não é uma prática individual, mas cultural. A humanidade sentenciou o desconhecido para não assumir a responsabilidade pelos seus atos falhos. Logo, quando estamos em declínio, acionamos essa função humana em nosso DNA para punir todos aqueles que podem ter uma parcela de culpa sobre nosso estado decadente. Contudo, mesmo penalizando todos a nossa volta, não é o bastante para nos resgatar da decadência, que a essa altura já está nos consumindo por completo. Então, quando recobramos a lucidez, percebemos a tolice que há em não admitir o óbvio: somos nós que atraímos a decadência para a nossa vida, seja através de brechas abertas, seja por meio de descuidos, ou ainda pela falsa ideia de superioridade que insiste em nos nivelar dos demais. Todavia, se você chegou a este nível de involução, saiba que há como sair dessa realidade e assegurar o equilíbrio de sua vida.

Basta aceitar que estamos susceptíveis a tudo. Os dias bons costumam criar uma zona de conforto nos fazendo acreditar que todos os demais serão semelhantes ou melhores. Porém, na balança da existência, às vezes o fardo maior recai em nossos ombros. Precisamos estar fortalecidos para suportar qualquer demanda que vier. E, caso não estejamos prontos, as invés de culpar o mundo, unimo-nos a ele arregimentando forças que possam nos auxiliar a resistir. Lamentar pelo que não foi feito também não é saudável. Só o agora faz sentido. O que se foi deve ficar onde está. Revisitar o passado apenas quando for para recordar dos breves momentos de alegria que nos construíram, fazendo-nos chegar até onde chegamos. Mais que tudo isso, acreditar que nenhuma decadência é eterna, desde que tenhamos em mente que, semelhante a terra, a vida gira constantemente. O lugar que estamos agora, por mais decadente que possa parecer, não será eterno, desde que não esqueçamos de acreditar em nossas potencialidades. Temos muito a oferecer enquanto houver fôlego, criatividade e fé na vida.

Por tudo isso, não deixe que a decadência se demore dentro de si. Impeça sua permanência e garanta que o equilíbrio volte a fazer parte de sua rotina. Aproveite apenas essa fase ruim para acumular aprendizado e maturidade para enfrentar futuras crises. Até porque as maiores reflexões da vida são feitas quando chegamos ao fundo do poço. Lá embaixo, geralmente abandonados, paramos para repensar o que fizemos, ou deveríamos ter feito, para evitar chegar a tal estágio. As hipóteses não demoram a surgir, todas miraculosas em sua essência transformadora. Caso tivessem sido utilizadas antes do fracasso bater a nossa porta, evitaríamos a derrota. Passado a fase do se, adentramos ao período acusativo, transferindo a responsabilidade dos nossos erros para terceiros, que até podem ter contribuído para a nossa derrocada, mas não foram os únicos. Em grande medida, somos os protagonistas do bem ou do mal que nos acomete. O problema é que ignoramos os sinais da decadência, por mais claros e visíveis que eles nos sejam.

Não te rendas, ainda estás a tempo
de alcançar e começar de novo,
aceitar as tuas sombras
enterrar os teus medos,
largar o lastro,
retomar o voo.
Não te rendas que a vida é isso,
continuar a viagem,
perseguir os teus sonhos,
destravar os tempos,
arrumar os escombros,
e destapar o céu.
Não te rendas, por favor, não cedas,
ainda que o frio queime,
ainda que o medo morda,
ainda que o sol se esconda,
e se cale o vento:
ainda há fogo na tua alma
ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque a vida é tua, e teu é também o desejo,
porque o quiseste e eu te amo,
porque existe o vinho e o amor,
porque não existem feridas que o tempo não cure.
Abrir as portas,
tirar os ferrolhos,
abandonar as muralhas que te protegeram,
viver a vida e aceitar o desafio,
recuperar o riso,
ensaiar um canto,
baixar a guarda e estender as mãos,
abrir as asas
e tentar de novo
celebrar a vida e relançar-se no infinito.
Não te rendas, por favor, não cedas:
mesmo que o frio queime,
mesmo que o medo morda,
mesmo que o sol se ponha e se cale o vento,
ainda há fogo na tua alma,
ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque cada dia é um novo início,
porque esta é a hora e o melhor momento.
Porque não estás só, por eu te amo.

Por: Vitor Paiva –  do site Hypeness
Quando soube que havia enfim recebido o Prêmio Nobel de Literatura, não só o poeta chileno Pablo Neruda como seu próprio país de origem viviam realidades muito diferentes da que viria a lhes assaltar dois anos depois. Corria o ano de 1971, e aquele a quem Gabriel Gárcia Márquez chamou de “o maior poeta do século 20, em qualquer idioma” quase não acreditou no que chamou de “milagre”, conforme declarou em entrevista diante da notícia. “Enfim parece que sou mesmo agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. Ótimo, vocês sabem que nós, poetas, sempre estamos esperando milagres. E o milagre realizou-se”, afirmou Neruda.
Em seguida, o poeta expôs outra alegria que lhe acometia junto do Nobel: a eleição de Salvador Allende como presidente do Chile e o primeiro socialista a ser eleito democraticamente na América Latina. “O presidente Allende acaba de me felicitar, em nome do governo e do povo chileno”, disse Neruda. Dois anos depois, no fatídico 11 de setembro de 1973, Allende seria derrubado e assassinado pelas tropas de Pinochet, que instauraria uma longa ditadura no país, e doze dias depois do golpe militar, o próprio Neruda viria a falecer, em circunstâncias suspeitas que hoje sugerem também um assassinato.
Mas a poesia e a memória de Neruda, assim como de Allende, permanecem – e se fazem mais necessárias do que nunca, em um mundo tão polarizado, sombrio e perigoso como o que vivemos.
A grandeza de Neruda e a força simbólica de seu Nobel merecem ser lembrados hoje, através da íntegra de seu comovente discurso diante da Academia Sueca ao receber o prêmio.
“Meu discurso será uma longa travessia, uma viagem minha por regiões longínquas e antípodas, não por isso menos semelhantes à paisagem e às solidões do norte. Falo do extremo sul do meu país. Nós, chilenos, nos afastamos tanto até tocar com nossos limites o Pólo Sul, que parecemos a geografia da Suécia, que roça com a sua cabeça o norte nevado do planeta.
Por ali, por aquelas extensões da minha pátria, para onde me levaram acontecimentos já esquecidos, deve-se atravessar, tive que atravessar os Andes, procurando a fronteira do meu país com a Argentina. Grandes bosques cobrem como um túnel as regiões inacessíveis, e, como o nosso caminho era oculto e vedado, aceitávamos somente os sinais mais débeis da orientação. Não havia rastros, não existiam caminhos, e com meus quatro companheiros a cavalo procurávamos em ondulante cavalgada – eliminando os obstáculos de árvores poderosas, impossíveis rios, rochas imensas, desoladas neves, adivinhando quase a rota da minha própria liberdade. Os que me acompanhavam conheciam a orientação, a possibilidade entre as grandes folhagens, mas, para sentirem-se mais seguros montados em seus cavalos, marcavam com seus machados aqui e acolá os troncos das grandes árvores, deixando rastros que pudessem guiá-los no regresso, quando tivessem me deixado só com meu destino.
Cada qual avançava tolhido por aquela solidão sem margens, naquele silêncio verde e branco; as árvores, as grandes trepadeiras, o húmus depositado por centenas de anos, os tron­cos semiderrubados, que repentinamente tornavam-se outra barreira na nossa marcha. Tudo era ao mesmo tempo uma na­tureza deslumbrante e secreta e uma crescente ameaça de frio, neve, perseguição. Tudo se misturava; a solidão, o perigo, o si­lêncio e a urgência da minha missão.
Às vezes, seguíamos um rastro estreitíssimo, deixado tal­vez por contrabandistas ou delinquentes comuns fugitivos, e ig­norávamos se muitos deles tinham perecido, surpreendidos de repente pelas glaciais mãos do inverno, pelas tremendas tormentas de neve que, quando se desencadeiam nos Andes, en­volvem o viajante, enterram-no sob sete andares de brancura.
A cada lado do rastro contemplei, naquela desolação sel­vagem, algo parecido com uma construção humana. Eram peda­ços de galhos acumulados que tinham suportado muitos inver­nos, oferenda vegetal de centenas de viajantes, altos túmulos de madeira para recordar os caídos, para fazer pensar naqueles que não puderam continuar e ficaram ali para sempre embaixo das neves. Também os meus companheiros cortaram com os seus machados os galhos que tocavam nossas cabeças e que desciam sobre nós desde a altura das coníferas imensas, desde os carvalhos cujas últimas folhas palpitavam antes das tempes­tades do inverno. E eu também fui deixando em cada túmulo uma recordação, um cartão de madeira, um galho cortado do bosque para enfeitar as tumbas de alguns daqueles viajantes desconhecidos.
Tínhamos que atravessar um rio. Esses pequenos manan­ciais nascidos nos cumes dos Andes se precipitam, descarregam sua força vertiginosa e atropeladora, transformam-se em casca­tas, rompem terras e rochas com a energia e a velocidade que trouxeram das alturas insignes: mas essa vez encontramos um remanso, um grande espelho de água, um vau. Os cavalos en­traram, perderam pé e nadaram até à outra margem. Em segui­da, o meu cavalo foi sobrepassado quase totalmente pelas águas; eu comecei a balançar sem nenhum apoio, meus pés boiavam enquanto o animal lutava por manter a cabeça ao ar li­vre. Dessa forma, atravessamos. No momento em que chega­mos à outra beira, os vaqueanos, os camponeses que me acom­panhavam, perguntaram-me com um certo sorriso:
– Sentiu muito medo?
– Muito. Achei que a minha última hora tinha chegado – disse.
– Íamos atrás do senhor com o laço na mão – responde­ram-me.
– Aí mesmo – acrescentou um deles – meu pai caiu e foi ar­rastado pela correnteza. Não ia acontecer a mesma coisa com o senhor.
Continuamos até entrar num túnel natural que talvez tives­se sido aberto nas rochas imponentes por um caudaloso rio per­dido, ou por um estremecimento do planeta que criou aquela obra nas alturas, aquele canal rupestre de pedra socavada, de granito, no qual penetramos.
Depois de poucos passos, as cavalgaduras já resvalavam, tentavam apoiar-se nos desníveis de pedra, suas patas dobra­vam-se, produziam-se faíscas nas ferraduras: mais de uma vez me vi atirado fora do cavalo e estendido sobre as rochas. O focinho e as patas da minha cavalgadura sangravam, mas prosse­guimos pertinazmente o vasto, o esplêndido, o difícil caminho.
Algo esperava por nós no meio daquela selva selvagem. Subitamente, como singular visão, chegamos a uma pradaria pequena e esmerada, encolhida no regaço das montanhas: água clara, prado verde, flores silvestres, rumor de rios e o céu azul em cima, generosa luz ininterrompida por nenhuma folhagem.
Ali nos detivemos como dentro de um círculo mágico, como hóspedes de um recinto sagrado: e ainda maior foi a condição de sagrada que teve a cerimônia da qual participei. Os vaqueiros desceram das suas cavalgaduras. No centro do recinto, estava colocada, como num rito, uma caveira de boi. Meus companhei­ros aproximaram-se silenciosamente, um por um, para deixar umas moedas e alguns alimentos nos buracos do osso. Uni-me a eles naquela oferenda destinada a toscos Ulísses extraviados, a fugitivos de todas as espécies que encontrariam pão e auxílio nas órbitas do touro morto.
Mas a inesquecível cerimônia não se deteve neste ponto. Meus rústicos amigos tiraram seus chapéus e iniciaram uma es­tranha dança, pulando num pé só ao redor da caveira abandona­da, repassando o rastro circular deixado por tantas danças de outros que passaram antes por ali.
Compreendi, então, de uma maneira imprecisa, ao lado dos meus impenetráveis companheiros, que existia uma comunica­ção de desconhecido a desconhecido, que havia uma solicitude, uma petição e uma resposta mesmo nas mais longínquas e afas­tadas solidões deste mundo.
Mais longe, já perto das fronteiras que me afastariam por muitos anos da minha pátria, chegamos à noite às últimas gar­gantas das montanhas. Subitamente, vimos urna luz acesa que era indício certo de habitação humana e, quando nos aproxima­mos, encontramos umas construções derruídas, uns galpões mi­seráveis que pareciam vazios. Entramos num deles e vimos, ao clarão do lume, grandes troncos acesos no centro da habitação, corpos de árvores gigantes que ali ardiam de dia e de noite e que deixavam sair pelas fendas do teto uma fumaça que flutua­va no meio das trevas como um profundo véu azul. Vimos mon­tões de queijos acumulados por aqueles que os coalharam na­quelas alturas. Perto do fogo, agrupados como sacos, jaziam al­guns homens. Distinguimos no silêncio as cordas de um violão e as palavras de uma canção que, nascendo das brasas e da escu­ridão, nos trazia a primeira voz humana que tínhamos encontra­do pelo caminho. Era uma canção de amor e de distância, um la­mento de amor e de saudade dirigido à primavera longínqua, às cidades de onde vínhamos, à infinita extensão da vida. Eles igno­ravam quem nós éramos, eles nada sabiam do fugitivo, eles não conheciam a minha poesia nem meu nome. Ou o conheciam, nos conheciam? O fato real foi que junto àquele fogo cantamos e comemos, e depois caminhamos dentro da escuridão até uns quartos elementais. Através deles passava uma corrente ter­mal, água vulcânica onde nos submergimos, calor que se des­prendia das cordilheiras e que nos acolheu no seu seio.
Chapinhamos com gozo, penetrando naquela água, limpando o peso da imensa cavalgada. Sentimo-nos frescos, re­nascidos, batizados, quando ao amanhecer empreendemos os últimos quilômetros da jornada que separar-me-iam daquele eclipse da minha pátria. Afastamo-nos cantando sobre as nossas cavalgaduras, repletos de um ar novo, de um hábito que nos empurrava para o grande caminho do mundo que estava me es­perando. Quando quisemos dar (recordo vivamente este fato) aos montanheses algumas moedas de recompensa pelas can­ções, pelos alimentos, pelas águas termais, pelo teto e pelos lei­tos, isto é, pelo inesperado amparo que encontramos, eles rejei­taram o nosso oferecimento sem um gesto. Eles tinham nos ser­vido e nada mais. E nesse nada mais, nesse silencioso nada mais havia muitas coisas subentendidas, talvez o reconhecimen­to, talvez os próprios sonhos.
Senhoras e Senhores:
Não aprendi nos livros nenhuma receita para a composição de um poema; e também não deixarei impresso nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria.
Se narrei neste discurso certos fatos do passado, se revivi um relato nunca esquecido nesta ocasião e neste lugar tão dife­rentes daqueles, foi porque no transcurso de minha vida tenho encontrado sempre em alguma parte a asseveração necessária, a fórmula que me aguardava, não para endurecer-se em minhas palavras, mas para explicar-me a mim mesmo.
Naquela longa jornada, encontrei as doses necessárias para a formação do poema. Ali, me foram dadas as dádivas solenes da terra e da alma. E penso que a poesia é uma ação passageira ou solene na qual entram em igual medida a solidão e a solidariedade, o sentimento e a ação, a intimidade de si mesmo, a in­timidade do homem e a revelação secreta da natureza. E penso com não menor fé que tudo está sustentado – o homem e sua sombra, o homem e sua atitude, o homem e sua poesia – numa comunidade cada vez mais extensa, num exercício que integrará para sempre em nós a realidade e os sonhos porque de tal ma­neira os une e confunde. E digo igualmente que não sei, depois de tantos anos, se aquelas lições que recebi ao atravessar um rio vertiginoso, ao dançar em torno do crânio duma vaca, ao ba­nhar a minha pele na água purificadora das mais altas regiões, digo que não sei se aquilo saía de mim mesmo para comunicar-se depois com muitos outros seres, ou se era a mensagem que os outros homens me enviavam como exigênciaou desafio. Não sei se vivi aquilo ou se o escrevi, não sei se foram verdade ou poesia, transição ou eternidade, os versos que experimentei na­quele momento, as experiências que cantei mais tarde.
De tudo isso, amigos, surge uma lição que o poeta deve aprender dos outros homens. Não há solidão inexpugnável. To­dos os caminhos levam ao mesmo ponto: a comunicação daquilo que somos. E é preciso atravessar a solidão e a aspereza, a incomunicação e o silêncio para chegar ao recinto mágico no qual podemos dançar torpemente ou cantar com melancolia: mas nesta dança ou nesta canção estão consumados os mais antigos ritos da consciência, da consciência de ser homens e de crer num destino comum.
Na realidade, embora alguma ou muita gente tenha me considerado um sectário, sem possível participação na mesa comum da amizade e da responsabilidade, não quero me justi­ficar, não acredito que as acusações nem as justificações façam parte dos deveres do poeta. De qualquer forma, nenhum poeta administrou a poesia, e se algum deles dedicou-se a acusar os seus semelhantes, ou se outro pensou que poderia gastar a vida defendendo-se de recriminações razoáveis ou absurdas, tenho a convicção de que somente a vaidade é capaz de desviar-nos a tais extremos. Digo que os inimigos da poesia não estão entre os que a professam ou resguardam, mas na falta de concordância do poeta. Por esta razão, nenhum poeta tem um inimigo mais essencial do que a sua própria incapacidade para entender-se com os mais ignorados e explorados dos seus contemporâneos; e isso acontece em todas as épocas e em todas as terras.
O poeta não é um pequeno deus. Não, não é um pequeno deus. Não está marcado por um destino cabalístico superior ao daqueles que exercem outros misteres é ofícios. Tenho expres­sado frequentemente que o melhor poeta é o homem que nos entrega o pão de cada dia: o padeiro mais próximo, que não pen­sa que é deus. Ele realiza a sua majestosa e humilde tarefa de amassar, colocar no forno, dourar e entregar o pão cada dia, com uma obrigação comunitária. E se o poeta chegar a al­cançar esta consciência simples, poderá também a cons­ciência simples converter-se em parte de um colossal arte­sanato, de uma construção simples ou complicada, que é a construção da sociedade, a transformação das condições que rodeiam o homem, a entrega de uma mercadoria: pão, verdade, vinho, sonhos. Se o poeta se incorpo­rar a esta luta nunca gasta a fim de consignar cada qual nas mãos do outro sua ração de compromisso, sua dedicação e sua ternura pelo trabalho comum de cada dia e de todos os homens, o poeta tomará parte no suor, no pão, no vinho, no sonho da Humanida­de inteira. Somente por este caminho inalienável de ser homens comuns chegaremos a restituir à poesia o amplo espaço que lhe é recortado em cada época, que nós mesmos lhe recortamos em cada época.
Os erros que me levaram a uma relativa verdade, e as ver­dades que repetidas vezes me conduziram ao erro, ambos não me pertimiram – nem eu nunca pretendi isso – orientar, dirigir, ensinar o que é chamado de processo criador, de caminhos da li­teratura. Mas pude verificar uma coisa: que nós mesmos vamos criando os fantasmas da nossa própria mitificação. Da argamassa do que nós fazemos, ou queremos fazer, surgem mais tarde os impedimentos do nosso próprio e futuro desenvolvi­mento. Vemo-nos indefectivelmente conduzidos à realidade e ao realismo, isto é,a tomar uma consciência direta daquilo que nos rodeia e dos caminhos da transformação, e depois compreen­demos, quando parece tarde, que construímos uma limitação tão exagerada que matamos o que vive, em vez de fazer a vida desenvolver-se e florescer. Impomo-nos um realismo que poste­riormente nos resulta mais pesado que o tijolo das construções, sem que por isso tenhamos levantado o edifício que contemplávamos como parte integral do nosso dever. E, em sentido con­trário, se conseguimos criar o fetiche do incompreensível (ou daquilo que é compreensível parapoucos), o fetiche do seleto e do secreto, se suprimimos a realidade e suas degenerações rea­listas, nos veremos de repente rodeados por um terreno impos­sível, por um pântano de folhas, de barro, de nuvens, no qual afundam os nossos pés e somos afogados por uma incomunicação opressiva.
Quanto a nós em particular, escritores da vasta extensão americana, escutamos sem trégua a chamada para encher esse espaço enorme com seres de carne e osso. Somos conscientes da nossa obrigação de povoadores e – ao mesmo tempo que nos re­sulta essencial o dever de uma comunicação crítica num mundo desabitado, porém, não por desabitado, menos cheio de injusti­ças, castigos e dores – sentimos também o compromisso de recu­perar os antigos sonhos que dormem nas estátuas de pedra, nos antigos monumentos destruídos, nos largos silêncios de pampas plantários, de selvas espessas, de rios que cantam como tro­vões. Necessitamos colmar de palavras os confins de um conti­nente mudo, e nos embriaga esta tarefa de fabular e de nomear. Talvez essa seja a razão determinante do meu humilde caso in­dividual: e, nessa circunstância, os meus excessos, a minha abundância ou a minha retórica, não seriam nada mais que atos, os mais simples, do mister americano de cada dia. Cada um dos meus versos quis se instalar como umobjeto palpável; cada um dos meus poemas pretendeu ser um instrumento útil de traba­lho; cada um dos meus cantos aspirou a servir no espaço como signo de reunião onde os caminhos se cruzaram, ou como frag­mento de pedra ou de madeira em que alguém, outros, os que virão, pudessem depositar os novos signos.
Ampliando estes deveres do poeta, na verdade ou no erro, até as suas últimas consequências, decidi que a minha atitude dentro da sociedade e perante a vida devia ser também humil­demente partidária. Decidi isso vendo gloriosos fracassos, soli­tárias vitórias, derrotas deslumbrantes. Compreendi, imerso no cenário das lutas da América, que minha missão humana era a de unir-me à extensa força do povo organizado, unir-me com sangue e alma, com paixão e esperança, porque somente desta torrente impetuosa podem nascer as mudanças necessárias para os escritores e para os povos. E embora minha posição tenha causado e cause objeções amargas ou amáveis, o certo é que não encontro outro caminho para o escritor dos nossos amplos e cruéis países, se não queremos que a escuridão floresça, se pre­tendemos que os milhões de homens que ainda não aprenderam aler-nos nem a ler, que ainda não sabem escrever nem escre­ver-nos, se estabeleçam no terreno da dignidade sem a qual não é possível serem homens integrais.
Herdamos a vida dilacerada dos povos que arrastam um castigo de séculos, os povos mais edênicos, os mais puros, aqueles que construíram com pedras e metais torres milagro­sas, joias de fulgor deslumbrante; povos que de repente foram arrasados e emudecidos pelas épocas terríveis do colonialismo que ainda existe.
Nossas estrelas primordiais são a luta e a esperança. Mas não há luta nem esperança solitárias. Em todo homem se jun­tam as épocas remotas, a inércia, os erros, as paixões, as urgên­cias do nosso tempo, a velocidade da História. Mas o que seria de mim se eu, por exemplo, tivesse contribuído de alguma ma­neira com o passado feudal do grande continente americano? Como poderia eu levantar a cabeça, iluminada pela honra que a Suécia me outorgou, se não me sentisse orgulhoso de ter toma­do uma mínima parte na transformação atual do meu país? É preciso olhar o mapa da América, encarar a grandiosa diversi­dade, a generosidade cósmica do espaço que nos rodeia, para entender que muitos escritores se negam a compartir o passado de opróbrio e de pilhagem que obscuros deuses destinaram aos povos americanos.
Escolhi o difícil caminho de uma responsabilidade compartida e, em vez de reiterar a adoração ao indivíduo como sol cen­tral do sistema, preferi entregar com humildade o meu serviço a um considerável exército que pode errar às vezes, mas que ca­minha sem descanso e avança cada dia, enfrentando tanto ana­crônicos recalcitrantes, quanto enfatuados impacientes. Porque acredito que meus deveres de poeta não me indicavam somente a fraternidade com a rosa e a simetria, com o exaltado amor e a nostalgia infinita, mas também com as ásperas tarefas humanas que incorporei à minha poesia.
Há exatamente cem anos, um pobre e esplêndido poeta, o mais atroz dos desesperados, escreveu esta profecia: “À l’aurore, armes d’une ardente patiente, nous entrerons aux splendides Villes” (Ao amanhecer, armados de uma ardente paciência, entraremos nas esplêndidas cidades).
Acredito nesta profecia de Rimbaud, o vidente. Venho de uma obscura província, de um país separado de todos os outros pela sua talhante geografia. Fui o mais abandonado dos poetas e minha poesia foi regional, dolorosa e chuvosa. Mas sempre ti­ve confiança no homem. Jamais perdi a esperança. Por isso talvez tenha chegado até aqui com a minha poesia, e também com a minha bandeira.
Em conclusão, devo dizer aos homens de boa vontade, aos trabalhadores, aos poetas, que todo o futuro foi expressado nes­sa frase de Rimbaud: só com uma ardente paciência conquista­remos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens.
Assim a poesia não terá cantado em vão.”
Pablo Neruda, 1971
Vitor Paiva
Escritor, jornalista e músico, doutorando em literatura pela PUC-Rio, publica artigos, ensaios e reportagens. É autor dos livros Tudo Que Não é Cavalo, Boca Aberta, Só o Sol Sabe Sair de Cena e Dólar e outros amores.