Não sou religioso,
tampouco ateu, agnóstico ou deísta. Faço parte daquele grupo que crer em algo,
mas que foge de categorias religiosas. Costumo me autointitular de preguiçoso
da fé, pois, mesmo simpatizando com várias práticas sagradas, acho cansativo
ter que criar morada em uma única vertente religiosa frente a pluralidade em
que estamos inseridos. Porém, caso meu posicionamento acerca disso muda-se,
acredito que seria um religioso atuante, defensor dos oprimidos e acusador dos
canastrões que usam o sagrado para benefício próprio. Lutaria firmemente para
que a minha crença fosse legitimada, desde que a do meu colega tivesse a mesma
prerrogativa. Levaria os preceitos que escolhi seguir não apenas como meras
regras, mas como filosofia de vida e faria de tudo para aplicá-las a minha
rotina. Então, fazer o bem seria meu norte, não apenas partindo da minha óptica
pessoal do que seria benevolência, mas, sobretudo, pelo olhar e necessidades
alheias. Nem por isso assumiria a estirpe do religioso modelo. Mas, faria de
tudo para que a religião que escolhi caísse bem em mim, tornando-me referência
para outras pessoas.
No entanto, faço a
seguinte pergunta a você leitor, independentemente de ser ou não religioso, de
ter ou não uma fé, ter uma religião lhe cairia bem? Antes de formular sua
resposta, preciso dizer porque cheguei até tal indagação. Em tempos de tremenda
intolerância, desrespeito e desumanidade como os atuais, a inserção em algum
espaço sagrado parece ser o mais apropriado para conter a sanha autodestrutiva
que nos forma. De fato, a religião, seja ela qual for, nos permite
reconectarmos com aquilo que há de mais precioso para a existência nesse plano,
o amor ao próximo. Em seus discursos, o fazer o bem é uma máxima presente em
vários segmentos sacralizados, defendido como uma das poucas formas de se
alcançar o elo com o divino. O problema é que não basta decorar versos, ir
assiduamente a igrejas/templos/santuários, seguir dogmas à risca, quando a
tarefa primeva de muitas crenças é ignorada, o amar. Vejo que muitos
convertidos desconhecem a aplicabilidade dessa palavra, revelando o quão frágil
é apenas ser de uma religião X ou Y sem vivenciá-la de fato.
Para os mais
incrédulos, basta um olhar um pouco mais atento nos grandes círculos
comunicativos de hoje, as redes sociais, para ver o manto da hipocrisia cair.
Nelas, discursos contrários a qualquer ação benfazeja são facilmente
encontrados em perfis de indivíduos crédulos, tementes a Deus, muitos em
posição de destaques em várias religiões e assíduos em suas práticas
dogmáticas. Por estar constantemente inserido nesta atmosfera, cansei de ver
esses “religiosos” pregando o ódio, incitando a violência, desrespeitando
minorias, muitas vezes usando, inapropriadamente, o nome de Deus ou distorcendo
Suas palavras para benefício próprio. Evidentemente que tal prática remonta
vários períodos da história da religiosidade humana, porém, na atualidade, há
um misto de cinismo e dissimulação que muito me preocupam, não apenas por
afetar o Estado democrático de direito (que de laico guarda apenas a
ideologia), mas por deturpar algo tão sublime que é o exercício da fé, tão caro
em momento de desespero como o atual.
Claro que boa parte
dessas pessoas fazia, e faz isso inconscientes do que professam, porque há um
discurso forte de manada por trás da retórica beligerante da qual se utilizam. Basta
saber que o Brasil vive um impressionante crescimento de pessoas que se
autointitulam religiosas. Vejo isso, a priori, como um avanço, na medida em que
sabemos que a prática religiosa conserva em si muitas bases humanizantes do
respeito e tolerância, sobretudo na nossa sociedade majoritariamente Cristã.
Entretanto, contrariando todas as expectativas sagradas, a enxurrada de novos
religiosos não tem primado pela qualidade. Hipnotizados por uma retórica
salvadora, alienam-se facilmente por meio de discursos teatralizados de líderes
controversos, que se utilizam da ignorância social para deturpar os preceitos
mais primários da religiosidade. Não à toa, no último período eleitoral muitos
representantes religiosos utilizaram seu poder para determinar quem os fiéis
deveriam ou não votar. Minha vizinha, por exemplo, de deputado a presidente da
república, votou cegamente nas “indicações” do seu pastor.
Esses novos religiosos
não se sustentam em suas crenças, pois suas bases não foram construídas a
partir de epifanias, tão pouco ouve qualquer chamamento dos céus que fizessem
ecoar algo em seus corações, tão ensurdecidos pela lábia dos falsos profetas
atuais. O convite partiu ora da dor de se viver imergido numa sociedade onde o
medo cria uma áurea de pânico nublando qualquer chance de reflexão, ora de um
enredo elaborado por grandes instituições religiosas, que imersas na vida
contemporânea, seduzem os mais influenciáveis a adentrar as suas portas
desprovidos de qualquer amor pelo próximo. A ideia é enxertar templos,
enriquecer líderes religiosos, distorcer a palavra divina e/ou impô-la as
demais pessoas, tratando-as como hereges, caso ousem questionar a soberania do
deus fotoshopado adorado por esses zumbis. Tudo isso tem surtido efeito. Temos
mais canais religiosos na TV aberta do que sobre educação e cultura, a bancada
religiosa (leia-se, Cristã) avança confortavelmente na política ditando o que
quer e os ícones religiosos passaram a ser mais idolatrados do que o próprio
Jesus Cristo.
Devido a estas
interferências, os novos convertidos são avessos ao respeito, se mostram
intolerantes com outras práticas religiosas que diferem da sua, se julgam no
direito de se por como referência para penalizar o coleguinha, quando muitas
vezes tem o histórico tão imundo quando o dele. São adúlteros, charlatões,
mentirosos, indiscutivelmente corruptos, mas usam destas falhas em seus
discursos acusativos para sustentar a alcunha de bom samaritano aos olhos do
povo. Muitos são extremamente preconceituosos e fazem questão de deixar isso
bem claro, seja na vida pública real ou virtual, hasteando uma bandeira clara
de repúdio às minorias ou grupos que fujam do seu falho tradicionalismo. Apáticos,
poucos se preocupam com as tragédias cotidianas, não atuam para minorizar o
sofrimento das pessoas, mesmo que seja de forma singela legitimando suas lutas.
Usam inescrupulosamente o histórico de fé para macular a laicidade do Estado,
criando projetos e/ou impedindo que pautas caras a sociedade sigam em frente,
porque vão de encontro ao seu sagrado. São muitas vezes egoístas, possuem crise
de superioridade e transformam a fé, que é tão pura, em ferramenta de
manipulação. Então, alienados, lotam instituições religiosas mas se esvaziam
enquanto humanidade.
Assim, caso o leitor
não tenha chegado a uma resposta a minha indagação, deixo aqui a minha:
acredito que a religião não nos cai bem quando não assumimos a responsabilidade
pelo sacrossanto serviço de fazer o bem. Quando não entendemos que somos uma
extensão de nossas crenças e que, por isso, precisamos levar adiante o que há
de mais puro para contrapor o desamor que nos circunda. A religião não nos cai
bem quando adentramos nela de forma leviana, apenas para escapar
momentaneamente de nossos temores, ou para agradar a terceiros. Quando somos
desonestos em nossas ações cotidianas, propositadamente alienados e
simpatizantes da desinformação. Ainda quando fingimos ignorar os erros de
nossos irmãos de fé e não denunciamos as suas indulgências. A religião não nos
serve se usamos ela meramente para benefício próprio apropriando-se da mídia,
da política, não para disseminar o amor, o respeito e a tolerância, mas para
impor nossos dogmas e punir quem não compartilha de tais preceitos. Se for
usada como mecanismo de superioridade também não serve. Tão pouco é válida se o
foco for apenas encher templos, ganhar espaço na TV e enaltecer líderes
religiosos. Acima de tudo, a religião não nos cairá bem se o bem não passar a ser
nossa filosofia de vida.
Se a ideia é produzir
mais e mais crédulos e ampliar a noção do sagrado em nossa sociedade, há algo
de errado no cerne desta construção. É inegável que a religião não tem caído
bem em muitas pessoas presas a verdades frágeis sobre certo e errado. Faltam a
estes indivíduos a complexa tarefa de reaprender a amar. Apenas o amor rege o
universo. Eu acredito nisso, como também creio que é possível ter uma postura
humanizada dentro ou fora do seio religioso. O problema é que, antes, esperávamos
muito daqueles que se inseriam nas religiões ao ponto de sufocá-los com
cobranças que nem sempre poderiam ser cumpridas. Hoje, porém, há uma avalanche
de pessoas que se consideram religiosas apenas em titulação e pouco estão
preocupadas em se responsabilizar por essa mudança de comportamento. Ser
religioso é ser também um agente social. Então, não há nada de errado ter
milhares de indivíduos se convertendo a religiões diversas, desde que todas
tenham seu espaço assegurado na sociedade e que seus fiéis sejam
incansavelmente orientados a levar o que há de melhor em seus preceitos para as
demais pessoas; sobretudo aquelas que não desejam ter qualquer vínculo
religioso ou têm horror em se encaixotar em uma delas e se tornar mais um
desses novos zumbis.