Nem sempre conversar
com os outros sacia nossos anseios. Por mais íntimos, dispostos e de confiança
que sejam, muitos deles não compreendem a dimensão dos nossos problemas mais
existenciais, ainda que se esforcem para preencher essa lacuna. Em tempos de
não diálogo como os vividos atualmente, é cada vez mais raro encontrar alguém
pronto para nos ouvir falar sobre nós mesmos, sem para isso dispor de
julgamentos levianos a nosso respeito. Talvez apenas os profissionais de
psicologia sejam os únicos a se sobressair nesse sentido. Então, quando o outro
não está disponível ao diálogo, resta-nos aguardar um momento oportuno, torcer
para que surja um indivíduo novo em nossas vidas aberto a nos escutar ou trabalhar
a autorreflexão. Destas, a mais acessível é a última, mas ainda a menos usual.
Não se trata de apenas sussurrar coisas para nós mesmos ou fazer isso silenciosamente
através do pensamento. E sim falar em alto e bom som consigo mesmo, exercitando
uma prática de autoconhecimento que pode nos ser valiosíssima.
Aprendi a relevância do
monólogo interior da pior maneira possível. Como muitas outras pessoas, sempre
que precisava de algum conselho, fazer um desabafo ou até mesmo trocar
determinadas experiências, recorria, e ainda o faço, às pessoas que me são
caras: familiares e amigos próximos. Todavia, a proximidade não ajudava a
estreitar certos diálogos. Isto porque, muitas vezes o que dizemos não é bem
recebido pelo outro, que trata de elaborar juízos de valor rasos sobre o que
estamos passando/sentindo/vivendo. Logo, o que poderia ser um mecanismo de
ajuda, acaba por intensificar os nossos dilemas internos. Ao perceber que o
diálogo estava infrutífero, passei primeiro a questionar o meu falar. Será
mesmo que estava sendo claro em minha exposição do pensamento? Cheguei à
conclusão que sim, pelo menos na maior parte das vezes. O problema é que os
outros que procurava para me auxiliar não estavam aptos a me orientar naquele
momento e circunstâncias. Por isso, passei a me autoindagar, questionar-me
sobre tudo e tentar responder a mim aquilo que os outros não foram capazes de
dizer.
Entretanto, percebi
nesse processo que a falta de abertura do outro nem sempre o coloca na posição
de vilão. Fruto de um tempo avesso à conversa, as pessoas naturalmente são
condicionadas a limitar o diálogo a breves trocas de palavras, sobretudo quando
estas dizem respeito aos problemas alheios. Não há espaço para aprofundamentos
nessa modernidade líquida em que estamos inseridos. Tudo é muito fugidio,
inclusive os sentimentos humanos, suas dores e necessidades. É como se o que
sentíssemos não fosse importante para assumir um caráter de urgência. Logo,
ilhados em nossas crises existenciais, não compreendemos esse fenômeno maior:
estamos todos doentes, depressivos, carentes de diálogo, perdidos em nossos
dilemas mais profundos, sem ao menos ter a quem recorrer, porque o outro,
patologicamente se encontra na mesma situação que nós. Todos temos nossos
temores e lidamos com eles a partir de nossas experiências de vida. Dessa
forma, é natural quando o outro nos pede alguma orientação, acionarmos nossas
convicções de vida como parâmetro a ser seguido. Porém, nem sempre elas suprem
a lacuna do outrem. Assim, a autorreflexão ajuda.
Para a minha surpresa,
tem dado certo. Nos instantes em que consigo ficar sozinho, procuro o único
instrumento que uso nessas conversações, o espelho. Ao me ver nesse reflexo,
começo paulatinamente a dizer as primeiras palavras aquele que vive dentro de
mim, mas que desconheço em completude. Os primeiros enunciados saem tímidos,
como se temessem ferir aquele que vejo. Não demora muito quando uma enxurrada
de versos penetra o diálogo. Mudanças bruscas de humor constituem essa linha
tênue. Da timidez, passo a rir do que sou/fiz, então me vejo gargalhando e do
nada caio em prantos copiosos, ao mesmo tempo em que falo ainda mais com o meu eu
refletido. É estranho, ensandecido, mas, ao mesmo tempo, é intenso, verdadeiro,
chega ao ponto de me tranquilizar e me traz respostas das quais não seria capaz
de extrair se estivesse num diálogo com alguém. É perturbador confidenciar a
nós mesmos os nossos problemas e se surpreender ao encontrar as soluções deles
dentro de nós. Além disso, nos confere a oportunidade de aos poucos conhecer nossos
alter egos em constante confronto.
A familiaridade com
algumas pessoas, todavia, pode ser um empecilho para o nosso crescimento
interior. Por questões de afinidade, laços consanguíneos e outras parentelas,
esperamos que o outro nos diga o que queremos ouvir, saciando nossas dores.
Então, quando o outro se mostra inapto a isso, nos causa uma frustração enorme,
pois percebemos que aqueles de que nutrimos certos sentimentos não são capazes
de nos dar uma palavra de conforto quando mais precisamos de amparo. Nesse
momento, quando o diálogo consigo mesmo não é posto à prova, muitos indivíduos
buscam outras alternativas, nem sempre seguras, de se comunicar com o mundo.
Não é à toa que muitos encontrem nas drogas, lícitas ou não, na boemia, às
vezes até na criminalidade, a chance de chamarem atenção para si. Há quem
busque consolo na fé, inserindo-se em práticas religiosas para desatar os nós
da garganta, numa conexão com o divino. Não nos cabe julgar qual é o caminho
mais sensato, porque a individualidade humana é tão ou mais complexa do que a sua
coletividade. Penso, porém, que temos que exercitar essa conversa com o eu
antes que aquelas alternativas se façam necessárias.
Vistas de relance,
atitudes assim parecem sem valor. Contudo, é impressionante a experiência de
falar consigo mesmo. Temos a sensação de que há vários nós naquela imagem que
criamos. Possivelmente, há. Nenhum de nós estamos sós encarcerados dentro de
nossos corpos. Há outros coabitando nossa existência, buscando uma chance de se
revelar para o mundo. O problema é que somos tão tolhidos de sermos quem somos
que acabamos aprisionando outras faces nossas por medo de desagradar aqueles
que nos circundam. Então, quando os problemas vêm, nem sempre dizem respeito ao
que aparentamos ser, mas justamente aquilo que tememos ser. Por isso, não
conseguimos encontrar muitas vezes respostas para as nossas dores dialogando
com nossas parelhas, porque nem eles conhecem todos os nossos eus. Parece
confuso, e é. Talvez eu esteja viajando demais ao falar sobre algo tão simples,
mas temo que essa inquietação pode se tornar loucura se não for levada mais a
sério. Precisamos aprender a falar com nós mesmos em alto e bom som, buscar nos
conhecer e preparar um mapa pessoal para que os outros consigam trafegar melhor
por nossas complexas rotas. Vai funcionar. Os diálogos futuros serão mais
recíprocos, ao passo que nossas dores serão melhor compreendidas.
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