Entenda
como construir, apesar do medo, uma nova história, a partir dos tropeços, da
desesperança ou simplesmente pela vontade de mudar tudo de novo e de novo.
Era julho de 1999. Eu estava casada havia pouco mais de dois
anos, de um relacionamento que já se estendia por quase uma década. Um dia ele
chegou em casa, pediu para conversar e anunciou que tinha acabado. Ele já dava
sinais de que algo não estava bem, mas eu não achava que era assim tão sério —
tampouco que a insatisfação era com a nossa relação. E então ele se foi, sem
muita conversa, sem me dar a chance de tentar entender por que tudo aquilo
estava acontecendo. E eu, que acreditava tanto naquele amor, morri pela
primeira vez, aos 27 anos. Os meses seguintes foram de escuridão. Havia
momentos em que não sabia se conseguiria levantar da cama. Existia um buraco
dentro de mim que eu não tinha ideia de como preencher ou como fazer para parar
de doer. Poucas foram as pessoas com quem consegui chorar, expor a minha dor.
Eu me sentia um fracasso — e era difícil falar sobre isso. Eu me fechava em
casa. E isso, definitivamente, não me ajudava. Então comecei a me obrigar a
sair. Eu respirava fundo e ia — e isso demandava uma boa dose de coragem. A dor
ia comigo sempre, mas eu já havia me acostumado a ela. Percebi que, apesar
dela, eu precisava seguir em frente. Seguir respirando fundo e seguindo em
frente. Foi assim que eu também renasci pela primeira vez.
Ao longo desses quase 20 anos, eu morri mais algumas vezes e voltei a renascer
outras tantas. Histórias (ou ciclos) que começam e se findam. Para esta
reportagem, o objetivo é falar sobre o momento em que a gente está no fundo do
poço existencial e não faz a menor ideia de como sair dali sem que alguém nos
atire uma corda. Então... ninguém vai atirar essa corda. O primeiro movimento
de saída é primordialmente nosso, porque, basicamente, a gente tem que querer
sair dali — caso contrário talvez nem enxerguemos a tal da corda, da escada ou
alguém que desceu lá embaixo para nos ajudar.
Muitos são os motivos que nos levam a recomeçar uma nova história, um novo
ciclo. Eles podem ser mais profundos, como a morte de alguém querido, o fim de
um relacionamento, uma demissão, uma falência. E podem ser mais rasos — mas não
por isso menos importantes —, como a mudança de cidade, de país, de endereço, o
pontapé inicial para um novo negócio, uma nova carreira ou profissão, ou até
mesmo estilo de vida. Em todos eles existe o fim e o começo de algo. Então
respire fundo, porque vamos percorrer esse caminho juntos.
Que sentimento é esse?
O mais difícil, no início, é lidar com o desconforto, esse sentimento estranho
que surge dentro da gente, gerado pela mudança. Lutar contra isso é o primeiro
passo para se encrencar. Algo aconteceu na sua vida e mudou tudo, não é mais
como antes. Você sai da posição de “vida que segue” para “ei, onde estou, que
lugar é esse?”. Aceitar, perceber o que você está sentindo é essencial — e
talvez isso não seja lá muito fácil. É como deixar a poeira baixar para, dessa
maneira, entender ou enxergar melhor o novo horizonte que surge logo ali, na
sua frente. “Quando existe um recomeço é porque algo acabou, e tudo que termina
exige de nós um trabalho de luto. Até as coisas ruins, quando acabam, deixam um
rastro de perda, pois eram nosso modo de vida, nosso jeito de estar nela, e
ainda desconhecemos o que virá”, explica delicadamente a psicanalista gaúcha
Diana Corso, que assina também a coluna Em Análise, de vida simples.
A empresária americana Sheryl Sandberg fala muito bem sobre a dureza que é esse
recomeçar e como a aceitação da perda é essencial. Sheryl é chefe de operações
do Facebook e já foi considerada uma das mulheres mais influentes do mundo. Em
2015, ela e o marido, David, viajaram para comemorar os 50 anos de um amigo do
casal. E, no meio da viagem, Sheryl o encontrou morto, no chão da academia do
hotel. A morte repentina de David foi devastadora para a executiva. As certezas
de antes já não cabiam mais. Os meses seguintes foram de escuridão para ela. E
foi a partir da construção de uma nova história — agora sem o marido — que
Sheryl escreveu um livro que trata sobre como se levantar e recomeçar, ou
quando é preciso seguir um plano B, porque o A, literalmente, não existe mais:
Plano B — Como Encarar Adversidades, Desenvolver Resiliência e Encontrar
Felicidade (Fontanar), escrito em parceria com Adam Grant, psicólogo e amigo.
“Todos temos que lidar com perdas: perda de um emprego, perda do amor, perda da
vida. A questão não é se essas coisas vão acontecer. Elas vão, e precisamos
encará-las. A resiliência vem do âmago, de dentro, e do apoio que recebemos, de
fora. Vem da gratidão por aquilo que há de bom em nossa vida e vem da
aceitação. Vem da análise de como processamos o luto e da simples vivência
desse luto. Às vezes, estamos menos no controle do que imaginamos. Outras
vezes, mais. Aprendi que, quando a vida te põe para baixo, você pode quicar no
fundo do poço, voltar à superfície e respirar de novo”, escreve.
A boa notícia é que esse recomeço nunca é exatamente a partir do zero. Quando
algo inesperado acontece, não nos esvaziamos completamente. Seguimos sendo quem
somos, com nossos aprendizados, erros e acertos. Já temos uma história, que é
nossa, que tem a ver com a pessoa que somos, e ela segue com a gente,
independentemente das dificuldades que possam surgir. E é para isso que
precisamos olhar com carinho. Você perde o emprego, o companheiro(a), o crédito
do banco, mas segue com tudo o que acumulou dentro de si. A questão é que,
quando estamos passando por momentos difíceis, a primeira armadilha em que
caímos é a de deixar de acreditar em nós. Foi isso o que me explicou Diana Corso.
“Mudar (ou recomeçar) não é zerar, renascer, é seguir em frente questionando os
pactos nos quais havíamos nos acomodado anteriormente. Isto é o que há em comum
em todas as mudanças: mesmo que a decisão seja seguir adiante mais leves,
precisamos olhar para os pesos que vínhamos carregando para decidir o que e
como descartar.”
Isso pode ser especialmente útil para quem passa por uma mudança profissional,
foi demitido ou viu o negócio dos sonhos desmoronar (algo relativamente comum
de acontecer). Como seguir em frente depois de errar?
Sobre erros e acertos
A skatista profissional Karen Jonz tem um TEDx do qual gosto muito: Que Bom Que
Você Caiu, disponível no YouTube. Karen é tetracampeã mundial de skate
vertical. No dia a dia da profissão, aprendeu que vai cair muito e vai errar na
mesma proporção. Foi se machucando, muitas vezes bem feio, que entendeu o
quanto cair é mais importante do que ficar em pé. Isso vale também para a vida.
Coisas desagradáveis, reveses, vão acontecer. É inevitável. Você pode perder a
promoção que tanto almejava, não passar no vestibular ou na seleção para o
mestrado ou doutorado, levar um fora do namorado(a), não conseguir realizar
aquela viagem que tanto planejou ou ter o carro roubado (que não tinha nem
seguro). Ou seja, as quedas são inerentes à vida. Como seguir depois disso?
Esse foi outro aprendizado, que Karen divide: cada um precisa
saber o que o motiva a levantar. “Fiz um gráfico informal e percebi que, quando
vou tentar uma manobra desafiadora, passo 89% do tempo caindo, 10% descansando
e 1% acertando. Entendi que as coisas costumam acontecer quando a gente sai da
nossa zona de conforto. É isso que gera a evolução e esse é o motivo para
continuar. Assim, a minha motivação é buscar a evolução e ser melhor do que fui
ontem. Isso faz com que eu aprenda com meus erros e me ajuda a me abrir para as
pessoas (ou situações) que têm algo para me ensinar”, diz Jonz. E continua:
“Ser melhor num esporte predominantemente masculino poderia ser uma limitação,
mas essa é a minha força. As pessoas vivem me perguntando se eu não tenho medo.
É óbvio que eu tenho, eu não sou louca. Só que não fico pensando no medo, e
então toda vez que coloco meu pé no skate não fico pensando se vou cair. Penso
que vou ficar em cima, que vou acertar. Aprendi com cada erro e percebi que,
cada vez que errava, estava mais perto do acerto”, ressalta.
A skatista Karen Jonz aprendeu com o esporte algo essencial para a vida de
todos nós, ou melhor, para os tombos e nossas tentativas de começar de novo e
de novo: nada dura para sempre. Esse desconforto, essa dor, sensação de perda
ou inadequação um dia vai passar. Centenas de estudos já demonstraram que as
pessoas se recuperam mais rapidamente quando se dão conta de que as
dificuldades não são totalmente culpa delas, não afetam todo e qualquer aspecto
da vida, nem vão acompanhá-las por toda parte para sempre. Reconhecer que os
acontecimentos negativos não são pessoais ou permanentes as torna menos
propensas a ter depressão e mais capazes de suportar as adversidades.
Monja Coen, do zen-budismo, costuma dizer isso com a suavidade que sua fala
sempre gera na gente: “Sair da nossa área de conforto nos modifica, a meditação
faz isso. Ela nos provoca, não é para ser confortável e gostosa. Mas o final é
bom. Ou seja, a travessia pode ser desagradável porque ela toca em aspectos
nossos que não conhecemos nem queremos olhar. Tiram da estabilidade. Mas,
depois, você se recupera e volta à essência do seu ser”.
Sobre se expor
Os recomeços são também marcados pela vergonha, pela fragilidade e pelo receio
de se mostrar nesse momento delicado. Pior, o silêncio pode trazer isolamento,
criar um abismo entre você, o mundo e as pessoas que o amam e lhe querem bem
(ou vê-lo bem). É importante saber que se sentir dessa maneira é comum, como me
explicou a coach e especialista em comunicação não violenta Carolina Nalon:
todo recomeço tem a ver com vergonha. “Tentamos esconder algo porque não
sabemos lidar com aquilo. Então a gente não fala, e o outro também não”,
comenta. São aquelas fases em que você está se sentindo destruído por dentro,
como se houvesse um rombo no peito ou uma pedra presa no pé. Você encontra um
colega de trabalho, um vizinho próximo, um amigo ou parente e ele lhe pergunta:
“Como você está?”. E, então, você simplesmente responde: “Está tudo bem”. Não,
não está tudo bem. Mas a gente prefere não tocar no assunto para não voltar a
doer, para não se expor...
O antídoto para isso, acredite, é a compaixão. É ela que nos lembra que a dor,
a derrota, os fracassos, os desesperos existem na vida de todos. “O sofrimento
é o que nos iguala”, sentencia Carolina Nalon. Para quem está próximo de alguém
que está passando por uma fase mais dura, Carolina recomenda substituir a
pergunta “Você está bem?” por “Como você está lidando com isso?” ou “Eu sei o
que está acontecendo. Você quer conversar sobre isso ou quer falar sobre outro
assunto para dar um tempo?”. Mais uma sugestão é escolher algumas pessoas ou
procurar um terapeuta para ter essas conversas nas quais você se sente mais
exposto. Mas nunca deixar de falar, trocar, ouvir e ser ouvido.
Coragem!
Por fim, é importante saber que, para sair desse lugar em que você se encontra
e seguir em frente para recomeçar, é preciso ter coragem. A palavra coragem vem
do latim coraticum e significa agir com o coração. Então ter coragem é agir de
acordo com o que se sente verdadeiramente. Recomeços demandam isso porque você
precisa acreditar em si mesmo, na sua capacidade de seguir em frente, na sua
força e em tudo de bom que traz dentro de si. Coragem não é ausência de medo,
mas conseguir agir apesar do medo.
A psicanalista Diana Corso me contou algo lindo sobre a coragem. Eu estava na
dúvida se essa era uma boa palavra para estar ao lado de “recomeço”. E ela me
disse o seguinte: “Somos covardes mesmo para reconhecer o que já estávamos
desejando, aquilo que já entrevíamos, que já vínhamos até nos ensaiando, mas
não tínhamos percebido que tomaria um volume tão grande, a ponto de ser o novo
rumo. Quando mudamos não só não partimos do zero como tampouco nos encaminhamos
para um desconhecido total: sempre é algo que sem saber já queríamos, muito
mais do que estávamos em condições de admitir”. E segue: “Mudar é perceber que
o tempo de um desejo já chegou, que ele agora pode ser realizado. E é preciso
ter coragem, sim, para assumir nossos desejos, é do que nos acovardamos mais. É
uma boa palavra, pois as verdades inconscientes, do que queremos sem admitir,
são o mais próximo que temos de um coração, no sentido de um cerne de cada um
de nós”, finaliza ela.
Não satisfeita, ainda fui buscar com um poeta um sentido mais sutil para a
coragem de recomeçar. Foi assim que terminei minha última conversa antes de
escrever este texto. Falei com o poeta, escritor e amigo Zack Magiezi, autor
dos livros Nota Sobre Ela e Estranherismo, ambos da editora Bertrand Brasil, e
um sucesso nas redes sociais com suas poesias que falam muito em poucas linhas.
Ele me respondeu em forma de poesia, claro. E compartilho com você: “O que é
ter coragem? / É possível adquirir coragem? / Será que uma pessoa medrosa pode
acordar corajosa? / Acho que todos nós somos corajosos / Se olharmos para trás
/ Se enxergarmos a nossa história / Existe dor, derrota, choro e grito / Mas
coragem é isso / É saber que tudo isso pode ficar para trás / Coragem é o passo
seguinte / Coragem é apenas movimento / Caminhe / Recomece / Descubra um novo
caminho dentro do caminho / Recomece / Entenda que o passado quer se tornar
passado / Recomece / Coloque o corpo e a alma dentro do infinito chamado ‘Hoje’
/ Recomece / Jamais esqueça o passado, mas não dê o seu desejo para ele /
Recomece / Avance pelos capítulos da sua história, mas saiba que ela está
dentro do mesmo livro / Seu livro / Sua existência / Talvez recomeçar seja
apenas ter a coragem de acompanhar os passos do tempo”.
Então recomece, com coragem. Construa a nova história que está pedindo para
nascer. Olhe para cima, há luz. Respire fundo, renasça...
Visto no: Vida Simples
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