Nutro há certo tempo um
desconforto com obras focadas especificamente em espetacularizar o sexo,
sobretudo quando a intenção explícita é usar este tema como subterfúgio para
angariar mais leitores. Digo isso sem resvalar no pecado do conservadorismo,
responsável por nos privar de muitas problematizações necessárias sobre
questões urgentes como o prazer sexual. Pode soar ambivalente, mas não penso
que o sexo não mereça ser o mote central de muitas obras literárias. Em
absoluto, ele é um assunto demasiadamente improtelável frente aos borrões de
cretinice impregnados em nossa cultura. Entretanto, para ganhar o status quo de relevância, é preciso ir
as entranhas da nossa lascividade, vasculhar suas incoerências, revelar toda a
hipocrisia acumulada e trazer à luz a nossa visceral vontade de gozar, esta
fisiológica exigência do corpo sordidamente impedida de ser realizada, e
discutida, como se deve. A Casa dos Budas Ditosos não apenas desvenda esses
paradigmas, como também arruína todas as tentativas imperiosas de encaixotar o
ato sexual dentro de uma forma binária, da qual fomos acostumados a ouvir o que
pode ou não ser feito na cama, ou bem longe dela.
A Casa dos Budas
Ditosos faz parte da coletânea Plenos Pecados, na qual cada obra enfoca a respeito
de um dos pecados capitais. O da luxúria foi a incumbência dada a João Ubaldo
Ribeiro. Entretanto, como bem sinaliza o autor antes de iniciar a narrativa, a
história em questão lhe foi entregue no prédio onde trabalhava em um pacote
contendo a transcrição datilografada de várias fitas, gravadas por uma
misteriosa mulher intitulada apenas como CLB, nascida na Bahia e residente no
Rio de Janeiro. A história é narrada por essa senhora de 68 anos contando em
detalhes as suas inúmeras aventuras sexuais ao longo da vida. Todas verídicas,
segundo ela. Porém, ao ler o livro, é impraticável por sobre seus relatos o
artifício da dúvida, por se tratar de acontecimentos possíveis de serem
realizados. Seu depoimento, porém, é, na mesma medida, delicioso e chocante,
principalmente para aqueles mais puritanos no quesito sexo. Surpreende também a
naturalidade como ela aborda subtemas sexuais ligados ao incesto,
homossexualidade, bestialidade, intercâmbio sexual, pansexualidade, temáticas vistas
com ojeriza pela maioria de nós, que apenas reproduzimos discursos vazios sem problematizá-los.
A linguagem chula da
obra é o primeiro ponto que precisa ser mencionado. É um recurso comum em
muitas outras ditas eróticas, geralmente para apropriar a narrativa ao que
destina ser feito: ambientar uma atmosfera livre de pudores, quando na verdade,
em muitos livros, serve apenas de mera artimanha linguística. Em A Casa dos
Budas Ditosos não. Por ser uma obra de relatos, falar despudoradamente sobre
sexo é inquisitivo, faz parte de tantas outras carências análogas. Trata-se de
reproduzir as sentenças que mais representem os anseios de todas as
experiências vividas pela narradora, as quais costumam vir encobertas em outras
histórias sob o manto de eufemismos, construídos muitas vezes para agradar aos
ouvidos. Aqui não é só proposital proferir um discurso lascivo, é crucial para
se fazer ouvir, sobretudo quando aquele que diz foi/é emudecido historicamente
de viver/praticar/sentir prazer. É a retórica da palavra em sua extensão mais
política. Dá sentido ao que se lê, pois a intenção não é vulgarizar o enredo,
mas justificá-lo através da verossimilhança do que está sendo contado.
A própria literatura
definida como erótica enclausurou durante muito tempo a maneira de se dizer o
ato sexual entre os preciosismos metafóricos ou a enxurrada de escrotices
pseudolibertárias. Faltava uma discussão sexual assim, voluptuosa, destemida e
acessível, que se for capaz de nos assustar, como vai, é porque empreende toda
uma significância imbuída de verdades inconversáveis a muitos de nós. Esta
limitação pudica que se elaborou em torno da fala do sexo, em suas múltiplas
variantes, é uma forma celibatária, careta, que nos aprisiona de avançar nesse
quesito. A Casa dos Budas Ditosos quer que avancemos nessa questão. Seus
relatos suscitam incomodo por retirar de nossas gargantas anseios
inconfessáveis de nossas zonas erógenas mais remotas. Então, é preciso
naturalizar nosso prazer, sem ruborizar a face diante de certas práticas sexuais
ou dissimular suas existências. É de tanto fazermos isso que o sexo foi
encapsulado aos guetos: motéis, sexy shops, saunas, clubs, recategorizando uma
prática natural dentro do que é visto como desnaturezas humanas, como se quem
infligisse as regras estivesse cometendo um ato ilícito.
Inegavelmente, é o peso
imposto pela moral que nos impede de burlar este cenário antiquado sobre o
sexo. Nem mesmo a arte, esta instância de liberdades ilimitadas, escapou dessa
censura. Por isso que, em termos de acessibilidade, obras mais idealizadas
sobre o sexo chegam mais facilmente ao grande público, porque o sexo palpável,
aquele animalesco contido em cada um de nós, não chega ao patamar de
protagonismo. O que é vendido é a fantasia da fantasia sexual, o ato higienizado,
por vezes teatralizado, entre um casal que finge quebrar todos os protocolos na
cama, utilizando-se de apetrechos, uma música de fundo, lingeries refinadas,
caras e bocas ensaiadas de tesão, mas, na verdade, são meros fantoches
estrelando uma cópula tão sem graça quanto aquela que levou Adão a comer do
fruto proibido. 50 Tons de Cinza é o fiel representante desse modelo sexual de
quinta. Em A Casa dos Budas Ditosos tais penduricalhos, como são enfatizados no
livro, são inúteis justamente por nos tolher de viver enlouquecidamente ou
breves instantes de tesão que nos forem possíveis, apenas para manter um script démodé numa ocasião da qual não
requer roteiros.
O livro também é um
convite ao prazer. O leitor dificilmente não passará por breves momentos de
excitação ao ler os relatos daquela senhora. São tão minuciosos em suas
descrições que passamos a fazer parte daquela narrativa, como um adepto de
voyeurismo inexperiente, dividido entre a mera contemplação e a monstruosa
vontade de reproduzir aquilo que leu. Independentemente de suas preferências
sexuais, em várias partes da obra você sentirá seu desejo posto à prova, em
cenas onde práticas bissexuais, homossexuais, incestuosas, promíscuas e até
alusões a sexo com animais, atordoem o que você imaginava estar consolidado.
Esse é um dos grandes lances desse livro, sacudir as certezas impostas em nós
sobre as nossas exclusividades sexuais, como se preferir certas práticas
anulassem outras tantas possibilidades prazerosas, que nem por isso maculariam
o todo de nossas predileções. É um convite a clandestinidade, mas sem
necessariamente incutir o rótulo de criminoso. Apenas pessoas aventureiras
dispostas a se permitir deleitar-se, ignorando o julgo da moral.
Por mais proibições que
se criem em torno do sexo, nada é capaz de domar a natureza humana nesse
sentido. É este instinto natural de copular que nos aproxima da face
animalesca, justamente aquela tolhida por tantas e tantas instâncias culturais
voltadas a higienizar nosso prazer. Porém, a bem da verdade, todas as
tentativas se mostraram falhas, incapazes de reverter esse anseio humano pelo
prazer sexual. O que ocorre é elaborar perfis humanos fracassados em suas
práticas sexuais, frustrados em casulos de moralidade incapazes de proteger
quem quer que seja. Seres indefesos em suas teorias regulatórias sobre como o
sexo deve ser realizado, desperdiçando tempo com censuras incontestavelmente
inúteis. Então, politicamente, este livro é um convite à luxúria trancafiada,
porém, nunca eternamente aprisionada, em cada um de nós, não como pecado
capital, dentro da áurea negativa que se criou, mas como prática humana
emergencial, a qual eliminaria por completo diversos preconceitos sexuais que aglomeram
as nossas vidas de limitações, restritas ao campo da tese, não da prática.
Mais que provocativo, A
Casa dos Budas Ditosos é uma pequena amostra de uma vida sexual levada ao
limite, ao passo que do outro lado - talvez escandalizados pelos relatos
indiscutivelmente perturbadores aos olhos mais puritanos de quem foi educado a fazer
o sexo equacional papai e/mais mamãe - há leitores malogrados em suas vidinhas
sexuais insossas; ora desejosos de protagonizar aquelas páginas, ora
demonizando-as hipocritamente. Há também aqueles representados pela narrativa.
Faço parte sutilmente desse time. Mesmo me considerando na vanguarda desse
tema, cheguei a subestimar a obra antes de lê-la em completude. Atitudes
arbitrárias como essas são típicas de quem se vê a frente do sexo, quando nesse
território, somos todos amadores. Quem dita as regras é o prazer. O Que há são
participantes um pouco mais permissivos que outros. Autodidatas, talvez, mas
sempre inexperientes. Seja qual for o perfil do leitor, a obra é um tratado
educacional sobre sexo sem necessariamente se prestar a este serviço. Nos causa
sensações diversas, mas nenhuma inverdade há naquelas histórias, por mais
inventadas que fossem. Apenas as nossas vaidades, limitações e carências em
sofreguidão, clamando para serem saciadas.
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