Martha
Medeiros é um famosa cronista brasileira. De todos os seus escritos, a crônica
chamada “Não Pode Tocar” parece a mais adequada à discussão a seguir. O texto
fala da dificuldade que se tem de tratar de determinados temas, sem a proteção
assegurada pelo reducionismo eufêmico, do qual muitas questões acabam não sendo
devidamente problematizadas. Nele, dentre muitas passagens, destaca-se: “Não tocarei pra não estragar, pra não quebrar, pra
durar por muitos séculos”. Essa é, sem dúvidas, a mais apropriada para a
ocasião envolvendo a polêmica música da diva Pop americana Beyoncé, Formation.
Num claro discurso pró racial, a canção evidencia outro trecho da crônica de
Medeiros “Não se pode tocar no sagrado de cada um”. Essa violação foi realizada
pela cantora ao trazer à ribalta o racismo que vitima seus condescendentes
americanos, e que resultou em uma repercussão negativa ao redor do mundo contra
a cantora, num contexto em que artistas negros, ou integrantes de outras
minorias, dificilmente se manifestam politicamente em prol dos seus grupos, de
forma tão escancarada como foi feito por ela. Mesmo que tardiamente, a posição
de Beyoncé resgata conflitos sociais ligados a alteridade, bem como a
constatação de que o racismo está longe de ser superado.
Em
primeira estância, é preciso destacar a falta de posicionamento que há em torno
das temáticas minoritárias: negros, mulheres, gays, índios, deficientes
físicos, etc., não veem suas pautas sendo devidamente representadas pela grande
mídia internacional. Parece haver um acordo tácito, silencioso e corruptivo,
entre diversas esferas sociais, que não mergulham nas águas abissais do
descaso, para resgatar esses grupos da latente negligência a que foram
submetidos, e que os leva à morte. Quando alguém decide se colocar para
reverter tais realidades, vem ao jugo popular o rótulo de subversivo,
adjetificação que por si só denota um perigo para a sociedade, sobretudo quando
esta é despolitizada e desmilitarizada. Coube a Beyoncé tal emblema, visto que,
para muitos, ela transgrediu o intocado, o que na crônica de Medeiros não se
podia macular. Beyoncé não apenas maculou, como também pintou de preto,
literalmente falando, a visão daqueles que fingiam não acreditar na
sobrevivência do racismo americano no mundo, mesmo tendo diversos ícones
importantes mundiais, inclusive a própria cantora, visivelmente negros. Para
estes, o talento, a performance, a criatividade, a pirotecnia, tudo era válido
desde que o artista ali presente não se considerasse minoria, levantando
bandeiras das quais debates fossem inevitavelmente iniciados.
É
como se dissessem assim: “eu gosto do seu trabalho, mas não quero saber de suas
demandas”. Ora, os fãs alucinados, que discutem nas redes sociais acerca de quem
é a melhor diva pop do momento, os quais endeusavam principalmente a figura de
Beyoncé, não deveriam ter ficados contra a cantora. Isto porque, quem de fato
admira o trabalho de determinado artista, é porque se identifica com suas
causas, vestindo-as como mantos sagrados a serem perpetrados pela sociedade. Quando
isso não ocorre, é provável que o modismo hipnótico da indústria cultural tenha
levado legiões de pseudos fãs a adorarem um ídolo sem nem sequer conhecer suas
lutas pessoais e origens. Os amantes de Beyoncé, que não são tão fissurados na
cantora como dizem, parecem corroborar para esse fato. Por essa razão Formation
sacode as convicções em torno do negro, de que como ele é, vive e sobrevive
numa sociedade que o excluí deliberadamente. No vídeo, ancestralidade, repressão
policial, legado, reivindicações, lutas, religião, violência e esquecimento se
fundem para protestar contra o mundo que prefere acreditar numa diva talentosa
branca, no caso aloirada, do que encarar os fatos de que a cantora mais popular
da atualidade ser negra. Da mesma forma que os saudosos Mickael Jackson e
Whitney Houston também o foram e deixaram os seus respectivos legados.
É
inegável a jogada de marketing em torno de toda essa polêmica, uma vez que é
sabido que a indústria do entretenimento sobrevive de polêmicas para manter
artistas em evidência. Embora seja impossível confirmar tal suposição, isso não
deslegitima a sua importância para a questão do emponderamento negro da
sociedade, sobretudo na brasileira, onde falar de racismo, suas implicações e
lacunas sociais, ainda é um tema nebuloso. Por isso, quando um artista do porte
de Beyoncé trata com alteridade essa temática, ela nos repassa a seguinte
mensagem: “Ei, você? Você que sempre curtiu minhas músicas. Você que adora a
minha voz. Repete as minhas coreografias em casa. Você que copiou o meu
penteado. Gostou das roupas que uso. Você que me viu em preto e branco cantando
“Single Ladies”, ou cinzenta em “Halo”. Você sabia que eu sou negra?” E outra
pergunta se impõe após isso: o que mais importa para a sociedade é ter alguém
talentoso e com potencial para fazer uma carreira brilhante ou saber qual é a
casta social desfavorecida que esse artista faz parte, defende ou pretende
defender, e se isso interfere negativamente na qualidade de sua arte? Na crônica
de Martha Medeiros, há outra frase pertinente a esse contexto: “É proibido
tocar no sagrado de cada um”.
Porém,
Beyoncé preferiu cometer o sacrilégio de tocar no proibido. A subversão aqui
foi deixar claro para todo o planeta a necessidade de se enxergar a minoria
dentro de si e no outrem também. O sentimento de alteridade que falta em muitos
na sociedade, americana e brasileira. Por essa razão, Formation toca na
necessidade das pessoas de se enxergarem como negros, independentemente da cor
ou textura do cabelo, de classe social ou religião, já que há negros que não se
veem parte integrantes desse nicho. Se isso veio à tona, é porque infelizmente
há lacunas a serem preenchidas por uma sociedade claramente embranquecida pela
mídia e, principalmente, pela indústria da moda. Além disso, o negro não
encontra espaço para difundir sua ancestralidade religiosa, sem que não haja
alguém disposto a caracterizar seus cultos afrodescendentes como satânicos. A
demonização de suas tradições serve mais uma vez para obscurecer a presença
desse grupo na sociedade. Tolera-se, apenas, aquele negro adequado ao sistema
vigente, que não invade espaços já delimitados pela soberania branca, a qual
mesmo silenciosa, dita suas regras. O que Beyoncé fez, semelhante a tantos outros
negros, foi cruzar a linha amarela, aquela que proibia o avanço da comunicação,
do diálogo para lá de pertinente sobre quem é privilegiado socialmente e quem
não é. Aliás, discussão deveras adiada, pois não há um esforço coletivo para
entender a realidade do negro no mundo.
Baseado
nisso, a música em voga incomodou muita gente, porque não economizou discurso
para retratar algo que já era conhecido por muitos, o racismo. Preconceito que
excluí, escraviza e mata, mesmo após as leis abolicionistas terem sido
sancionadas ao redor do globo. A canção de Beyoncé foi criticada
por autoridades americanas, por atacar claramente a polícia de lá; fãs deixaram
de ser fãs após a divulgação do vídeo clipe Formation; essas entre outras
censuras foram direcionadas a tal artista apenas porque ela usou sua imagem
para fazer um levante, mais que emergencial, a favor de um grupo aplaudido pela
sua arte, porém vaiado, ou no caso dela boicotado, todas as vezes que a sua
cor, herança e tradições são violados. Esse antagonismo evidente só ressurge
quando a defesa do ponto de vista é clara, contundente e irrefutável. Porém,
nem todos os artistas/celebridades utilizam da sua imagem em prol de lutas como
essas, temendo perderem os créditos conquistados ao longo de suas carreiras. O
nosso internacionalmente famoso Neymar é um exemplo disso. Recentemente, o
jogador afirmou que não se considerava negro e, por isso, talvez acredite ser
imune aos preconceitos que vitimizam tal grupo. Pelé, outra celebridade da
bola, também fez um discurso semelhante anos atrás, porém, em ambos a
repercussão negativa não chegou nem de longe ao que Beyoncé vem sofrendo.
Esse
é um dos lados perversos do racismo: introjetar a ideia de que não se
autodenominar negro vai minimizar o preconceito entre as pessoas. É a tentativa
mais ingênua daqueles que, entre lutar pelas causas de um movimento, preferem a
falsa ideia de que não fazer parte dele. Essa ausência de senso militante não
se restringe ao segmento negro. Muitas mulheres, eivadas de um machismo social,
atacam outras vítimas da cultura do estupro, do raso debate entorno do aborto
ou da postura sexual de mulheres mais resolvidas. Muitos gays, pressionados
pelo mesmo machismo, preferem segregar outros homossexuais mais afeminados,
travestis, transexuais, acreditando que o ideal é não parecer gay. Da mesma
forma, há negros, e muitos, contrários às cotas raciais, geralmente repetindo
as mesmas retóricas brancas sem uma análise aprofundada da condição negra na
sociedade; são também preconceituosos com a religião/cultura/tradições desse
grupo e, infelizmente, muitos nem se veem como negros, mesmo que estes sejam
tão visivelmente afrodescendentes quanto Neymar e Pelé. A mensagem da música
Formation trouxe a esse contexto a necessidade dos indivíduos se verem como
minorias e nem por isso se anularem.
Foi
o que Viola Davis, ao discursar no Emmy 2015, fez: não se anular diante do
racismo, refletir sobre ele num espaço nitidamente segregacionista (Hollywood) e
mesmo assim permanecer firme diante dos seus ideais. Além dela, Mather Luther
King, Nelson Mandela, Harriet Tubman, Castro Alves, e agora Beyoncé, guardadas
as devidas proporções, deram suas caras a tapa para a sociedade, ao dialogar a
respeito desse tema, inquietando aqueles que praticam a política da boa
vizinha, da qual o negro pode existir, só não pode se manifestar a favor dos
seus direitos. Felizmente, há sempre alguém que resgata esse tema sempre que a
problemática racial ressurge para deixar claro o quanto tal preconceito é
latente no seio das relações sociais. Geralmente, ele se manifesta em ações
contributivas ao senso comum do qual o negro é excluído, vitimado e
marginalizado. Poucos são, e foram, as manifestações em prol de um levante, que
alheio ao espetáculo da indústria de consumo, fosse capaz de capitular um
debate maduro, producente, sobre as demandas vividas pelos negros. Talvez tenha
sido essa a atitude da diva Pop Beyoncé: trazer à luz as cicatrizes negras,
herdadas da escravidão, que são maquiadas pelo conformismo, pela conduta
apolítica da sociedade, pela falta de conhecimento e reconhecimento de causa,
ou ainda a ausência de um discurso de alteridade, este que possivelmente foi o
elemento incendiário da polêmica envolta no descoberta cômica da cor daquela
cantora.
“Todas
as relações do mundo possuem sua prateleira de cristais”, enfatiza Martha
Medeiros. Pelo visto, Beyoncé estilhaçou a dela ao servir de espelho para um
grupo ainda esquecido, hostilizado, que vive à margem social, tendo toda a sua
carga antropológica obscurecida por um sistema discriminatório quanto aqueles
que devem ou não existir. A música dela mexeu com as raízes do preconceito
desse tema, que parece superado, mas revive nas práticas sociais mais cotidianas.
Por isso que alguns opositores classificaram a canção como de péssima
qualidade, tanto na melodia e, sobretudo na letra. “Palavras incomodam o
suficiente”, é uma das passagens da crônica de Medeiros. Certamente, o discurso
de Formation se enquadra nisso, porque é mais fácil para quem discorda da
música desqualificar a sua letra, do que analisar as metáforas dela e sua representatividade
em uma porção social considerável nitidamente mal representada. E o incomodo
resultou em mais debate, mais reflexão, mas também em muita mais preconceito,
perseguição e, no caso de cantora, até boicote. Analisando tais polos, é
inegável os pontos positivos em torno dessa polêmica, sobretudo a sátira feita
na internet num vídeo bem extrovertido, mas crítico, do qual ironiza
inteligentemente a descoberta do mundo, da real cor de Beyoncé. A cantora negra
de cabelos loiros parece não se abalar com as críticas que recebeu. Isso é bom,
pois não se deve titubear quando se defende um ideal. Pelo contrário, ideais
precisam ser herdados, copiados, perpetuados, principalmente quando se referem
a lutas justas, pendentes na história e aparentemente insolucionáveis.
”Beyoncé,
não pode tocar nesse assunto!”. Essa também foi a mensagem implícita proferida
por aqueles contrários ao discurso da música Formation. Porém, a diva americana
ultrapassou a linha amarela, saiu da sua zona de conforto, ousou, transgrediu,
subverteu, tudo isso numa era onde a minoria só é vista na invisibilidade. No
período do conformismo tolerável, que determina a ordem das coisas, assim como
a posição de todos nas camadas sociais, o permitível é não ser. Empreende-se
disso todas aquelas pessoas anuladas pelo sistema, obrigadas a se adequar a
realidade hegemônica da sociedade, para fazer parte desta sem muita barulho,
uma vez que o emudecimento do indivíduo garante aos poderes supremos (mídia,
política, religião, etc.) o controle sobre ele. Disso, entende-se que a mais
nova polêmica racial jogou luz ao obscurantismo em torno desse tema, semelhante
ao que aconteceu por aqui com personalidades brasileiras como Taís Araújo,
Lázaro Ramos e a Apresentadora do Tempo, Maria Júlia Coutinho (Majú). A cada
novo caso, embora aja muita boçalidade e falta de empatia, há grandes avanços
para a formação de uma sociedade, que se não seja capaz de eliminar os próprios
preconceitos, que pelo menos seja capaz de reconhecer a existência deles e
encontre artifícios para corrigi-los. Em contrapartida, para que isso ocorra,
novas personalidades devem copiar o exemplo de Beyoncé, Jean Willys, Doroth
Stang, Chico Mendes, e dentre outros, anônimos e notáveis, os quais dedicam as
suas vidas, direta ou indiretamente para violar o inviolável, transpor o
intransponível, desconstruir para reconstruir uma sociedade onde todos possam
enxergar sua existência e, a partir disso, a do outro.
“Só
não vê o que o outro é, quando o que não se vê é aquilo que não se deseja para
si”.
Digitando com os pés, pois as mãos estão aplaudindo.
ResponderExcluirEsperando o momento onde você citavava a rainha negra Viola Davis,texto maravilhoso!!! E seguindo o discurso da Viola onde ela diz: Por um mundo com mais Beyoncé,Kerry Washington,Taraji P. ,e eu adiciono mais uma pessoa neste grupo:Diogo Didier
ResponderExcluirVerdade! kkk.
ExcluirAmei, parabéns!!! Sempre acompanho suas postagem nesse blogger.
ResponderExcluirTexto esplêndido!
ResponderExcluirApenas refletiu uma ideia que estava na minha mente! “Só não vê o que o outro é, quando o que não se vê é aquilo que não se deseja para si”. Parabéns Didier, espero aprender muito contigo.
ResponderExcluirA primeira vez que vi o vídeo sabia que viriam críticas a respeito desse tema. Mesmo em passos lentos a luta pela igualdade está sobrevivendo.
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