Fui ontem assistir ao filme indicado ao Oscar, A garota dinamarquesa, uma história linda sobre a primeira trans a fazer cirurgia de mudança de sexo de que se tem história. Vários adjetivos podem ser usados para descrever o longa, inúmeros, mas, se tem uma coisa que o filme não é, é cômico. Claro que não é cômico. Se até hoje as questões de transexualidade e de identidade de gênero são debatidas e alvo de comentários carregados de preconceito e ignorância, imagina como eram as coisas na década de 1930.
A personagem passa por diversos problemas tanto de aceitação quanto de tratamentos mirabolantes, que vão de radiação a internação em clínica psiquiátrica, passando por cirurgia neurológica onde o médico literalmente fala que vai fazer perfurações no crânio da personagem para que ela seja “curada”. E sim, no cinema — onde alguns acham que estão protegidos, pelo escurinho, do “politicamente correto chato que acabou com toda a graça da humanidade” — várias pessoas simplesmente riam.
Uma das cenas mais grotescas que já vi na vida: no filme, a personagem tremia de medo e pavor enquanto um dito neurologista avisava que faria cirurgias em seu cérebro perfurando seu crânio para que ela voltasse a ser homem. E diversas pessoas rindo. Gargalhando. E não foi só nesse momento. Ouvi risos em diversas cenas que não tinham nada de engraçado. Há momentos divertidos no filme, sim. Mas não tantos. Não quando ela apanha na rua ao ser perseguida por dois homens que a insultavam gratuitamente (sim, também riram nessa parte).
Os risos me lembraram de uma situação parecida que vi também recentemente em uma sala de cinema. Após assistir a Que horas ela volta?, filme que conta a história de uma empregada doméstica, que é diminuída constantemente por sua patroa e nem se dá conta disso, estrelado por Regina Casé, ouvi duas pessoas conversando e dizendo uma à outra como o filme era “hilário”. Que horas ela volta? não é um filme de comédia. Não mesmo. E, mesmo assim, ao ver uma empregada, que – ironicamente – provavelmente nunca tinha ido a uma sala de cinema na vida, na telona passando por perrengues diversos, várias pessoas gargalhavam.
Que horas ela volta? não é um filme de comédia. A garota dinamarquesa, muito menos. Mas deve ser realmente difícil assistir a um filme que mostra justamente o lado que não se quer enxergar, que mostra o que preferem que esteja bem escondido e à margem de tudo e de todos. Causa desconforto ver uma empregada entender, com sua filha, que o lugar dela não é na submissão à patroa. Causa desconforto ver um homem de maquiagem vestindo meia-calça e se sentindo inteiro por isso. Inteiro não. Inteira.
Chega a ser incrível como a ignorância transforma o desconforto de pessoas de mente pequena em graça. A mente pequena precisa ridicularizar aquilo com o que não se sente à vontade para que consiga engoli-lo mais facilmente.O ridículo sendo uma espécie de saliva que transforma a coisa bruta em algo deglutível.
Mas ó: eu aplaudo de pé iniciativas como esses dois filmes citados aqui. Tá pouco de desconforto nessa sociedade cheia de preconceitos enraizados, sejam eles de classe, de gênero, de orientação sexual, de cor, de tudo. Causa mais desconforto que, mesmo me estressando com um ou outro que teima em ridicularizar e rir do que não tem a menor graça, é assim que a gente vai ganhando espaço no mundo e derrubando esse tipo de preconceito!
Visto: Besteira Qualquer
Felizmente eu assisti ao filme e não ouvi nenhuma risada, talvez uns "ohhs" vindo de mulheres quando apareceu o ator nu.
ResponderExcluirEu assisti no Cine Belas Artes, que fica na Avenida Paulista, talvez por ser o coração da capital, as pessoas estão mais acostumadas a ver transexuais e travestis nas ruas, no dia a dia e há essa maior aceitação. Em cidades interioranas, pode ser que por ser mais incomum abordar o fato, o preconceito seja maior ainda. É uma pena que pessoas achem graça de um assunto tão sério e que traz tanto sofrimento às pessoas.