07 janeiro 2014

Quando a vida é reduzida a pó



Considerado como uma verdadeira bomba relógio, o sistema prisional brasileiro é conhecido nacional e mundialmente pela sua precariedade em todos os aspectos. Pavilhões lotados, celas com detentos além da capacidade, falta de carcereiros e pessoal habilitado para vigiar os presos, condições insalubres de higienização e, por isso, de saúde. Tudo isso constantemente é noticiado na mídia e nada foi feito até agora para mudar tal realidade. Sabendo disso, muitos presos encontram meios de viver confortavelmente dentro desses ambientes, através de ameaças, subornos e outras corruptelas típicas da cultura brasileira. O resultado disso é a binária divisão dos que nestes locais habitam: muitos vivendo amontoados como selvagens e outros desfrutando de regalias, como se estivessem hospedados em hotéis cinco estrelas.

Diante desse quadro, é de se esperar que, no caso do primeiro grupo, ocorram manifestações violentas, mas conhecidas como rebeliões. Motivadas por inúmeras razões, seja para melhorias da permanência deles nos presídios, seja para buscar formas de sair de lá, essas incendiárias ocorrências da brutalidade nas cadeias denota o quão frágil é a nossa segurança pública. Fragilidade esta que frequentemente é evidenciada quando os detentos resolvem confrontar a barreira policial. E tal embate independe se o preso está ou não encarcerado, visto que, muitos são aqueles que dentro do sistema penitenciário emitem ordem de comando, muitas vezes até através de aparelhagem eletrônica, para que atrocidades ocorram fora dos limites prisionais. Frente a essa falta de limites, no Maranhão, detentos emitiram uma ordem para incendiarem um ônibus na principal avenida da cidade, em retaliação a ação da polícia carcerária de lá. Resultado, gente inocente morta e alguns ainda feridos.

Entre as vítimas desse comando, estava a maranhense Ana Clara Santos Souza. Ela que lamentavelmente faleceu, depois de não suportar as queimaduras que estavam alastradas em 95% do seu corpo. Essa atrocidade, cometida por seres que já perderam a humanidade há muito tempo, chocou o país. Ficar chocado, porém, não trará a vida dessa garota de volta. Nem tão pouco do seu bisavô, que morreu ao saber do estado da menina. Essas vidas perdidas trazem à tona outra discussão pertinente: a falta de estrutura da segurança pública daquele Estado e do restante do país, tanto dentro quanto fora das unidades prisionais. Enquanto a nação se concentra social e midiaticamente falando, com a chegada da copa, mal podemos assegurar que fatalidades como essas continuem acontecendo. Ao invés disso, continuamos a direcionar o dinheiro público para fins hedonistas, enquanto vidas infanto-juvenis e adultas são ceifadas e nada é feito para reverter essa situação.

Não tem como não sentir um misto de indignação e revolta ao saber que uma menina de seis anos de idade teve sua vida interrompida abruptamente. Vergonha por ver que essa vida poderia ter sido poupada, se o nosso voto fosse mais bem direcionado e, se os governantes escolhidos tivessem um real compromisso com as prioridades existentes no país, as quais sempre se apresentam através da violência urbana, como no caso da falecida maranhense. Ou seja, se o sistema prisional brasileiro passasse por um processo digno de melhorias, talvez a ordem emitida para incinerar o ônibus, que reduziu a vida daquela garota a pó, não tivesse sido enviada. Também não tem como não sentir vergonha de um país que não investe no que, de fato, é essencial. Mesmo que o presídio não deva ser um local de luxo. Ele também não pode ser um ambiente onde homens entram humanos e se tornam verdadeiras bestas. No mínimo, um lugar onde a ressocialização seja capaz de dar uma nova chance àqueles que estiverem dispostos a mudar.

No entanto, infelizmente, esse processo de ressocialização dos presidiários está longe de ser concretizado. Convivendo com marginais de vários naipes, todos geralmente misturados, pois não há divisão para criminosos específicos, eles não encontram outra perspectiva a não ser potencializar a criminalidade que os levou até ali. Por isso que é comum o uso de drogas, muitas vezes até o tráfico destas. As armas também continuam sendo utilizadas, tanto entre os detentos quanto contra os agentes que cuidam da permanência desses indivíduos. Outras violências, como estupros, também são comuns nesses locais. Este último, por exemplo, chegou a ser ordenado no Maranhão por detentos, para que, fora da cadeia, seus emissários pudessem violentar as esposas dos seus rivais. Todo esse poder dos criminosos emana da falta de poder da segurança pública. Se os primeiros conseguem armas, drogas, munições, celulares e outros apetrechos, é porque o segundo, ou seja, a polícia, ou facilita a entrada disso, ou, mal aparelhada, não consegue conter a entrada. Talvez até as duas coisas.

Enquanto isso nas celas, os atos mais aborígenes do ser humano são despertados, visto que, como não foram condicionados a viver enjaulados, eles acabam despertando a fera oculta nesses locais, ou pior, ordenando crimes de dentro dos próprios presídios, onde se imaginavam que estariam e ficariam presos cumprindo as suas respectivas penas. O exemplo mais famoso do poderio desses criminosos está no lendário PCC (Primeiro Comando da Capital). Quem não recorda de nomes como Fernandinho Beira Mar, o qual já foi considerado como um dos homens mais procurados do país. Ele que, dentro dos presídios vivia como um marajá e continuava a praticar crimes, acionando seus compassas fora dos muros da cadeia. Impotente, a polícia teve que armar um verdadeiro projeto de guerra para desvencilhar o PCC, porém, volta e meia os criminosos se organizam a retornam a exercer seu poder e envergonhar a frágil segurança pública. Mais impotente ainda está à população, a qual, no meio desse fogo cruzado, paga as duras penas disso tudo, muitas vezes com a vida, como no caso da inocente Ana Clara.

Os caminhos para solucionar esse problema são antigos e bem conhecidos e se resumem em uma palavra: investimento. Investir numa polícia preparada dentro e fora do sistema prisional. Investir em cadeias seguras e, pelo menos, mais dignas onde o detento possa pagar pelos seus crimes como humano, não se tornando mais um dos muitos animais soltos por ai. Investir e assegurar que o dinheiro seja bem direcionado. Para isso, basta focar nas prioridades do país e não gastar milhões com futilidades passageiras que pouco trazem de benefício para a sociedade. Se, antes da copa do mundo deste ano, não conseguimos proteger os meros cidadãos brasileiros dos atos de violência que envergonham a nação, como protegeremos os turistas tão aguardados? É incoerente investi cifras milionárias para assegurar o bem estar de turistas, que passarão uma breve estada por aqui, enquanto o cidadão de fato brasileiro serve de alvo para criminosos inescrupulosos que a todo o momento estampam as manchetes policiais por mais um crime cometido.

Na realidade, no Brasil tudo se resumi a pó. O pó das drogas inaladas. O pó da pólvora engatilhada. O pó das vidas desperdiçadas. Reduzi o ser humano à poeira se tornou algo banal. É como fumar um cigarro e esperar que a nicotina vire cinzas. Tudo isso porque não somos capazes de combater, com ímpeto, essa criminalidade que ceifa vidas e desperdiça as verbas públicas a cada crime cometido, a cada rebelião, na qual camas, colchões, etc., são queimados e, com o dinheiro público, repostos. Seja como for, por causa desses descasos, livres ou não, os bandidos ainda tem voz e vez neste país, intimidando civis, ao ponto deles viverem à mercê da violência. Mesmo sabendo que a violência não vai acabar da noite para o dia, não podemos simplesmente chorar a morte daquela menina e de tantos outros inocentes e depois virá à página. Essa história só vai ter o final feliz quando a morte humana deixar de ser tirada abruptamente e continuar a ser como diz o famoso mandamento bíblico: “Viestes do pó e ao pó retornarás (Gênesis 3.19)”, e não reduzida a farelo humano por uma criminalidade que poderia ser contida, se houvesse mais empenho para isso.

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