10 novembro 2013

Corpo Fechado


Mesmo sabendo que a única certeza que temos é a da morte, passamos a existência inteira achando que estamos imunes às intempéries que a vida pode nos proporcionar.  São tantos caminhos possíveis, tantos perigos em cada um deles, que a melhor escolha é sempre aquela que irá afugentar as coisas más, ruins, que tragam desgraças para nossas vidas. De fato, institivamente buscamos nos proteger dos males que criamos, para manter uma vida longa e, se possível, bem vivida. Para isso, muitas vezes a religião serve de bussola, nos guiando para os caminhos mais viáveis, nos afastando de todo o mal a que estamos expostos aqui na terra. Contudo, penso que a nossa sensação de imunidade é puramente uma mentira reconfortante criada sobre vários pilares para ludibriar a dolorosa verdade que circunda a nossa existência: a de que não estamos e nem somos imunes a nada. Pelo contrário, pois nos momentos mais distintos do nosso dia a dia, a mortalidade do nosso ser se manifesta para desconstruir a nossa pretensa ideia de superioridade.

Por mais que exista uma crença cultural de que “tudo só acontece com os outros”, nada pode justifica-la, a não ser a prepotência humana de querer ser superior aos outros da sua própria espécie. E essa superioridade se manifesta dentro de grupos sociais distintos, em culturas também distintas, mas sempre com a mesma idealização de blindagem. Explico do que se trata isso. Acredito que somos educados erroneamente a não esperar pelo pior, a não acreditar que alguns fatos podem nos acontecer e que devemos estar preparados para eles. Ao invés disso, preferimos a ideia romântica de que nada irá nos atingir, de que não podemos nos machucar, nos ferir, matar ou sermos mortos. De que é sempre o outro que deve sofrer por essa ou aquela razão. Com isso, crescemos e passamos a vida inteira achando que um raio não pode nos atingir, de que o avião que estamos não pode cair, ou a pessoa que amamos não pode nos decepcionar. Com esses enganos, buscamos de inúmeras formas o corpo fechado, uma verdadeira muralha que impedirá a entrada dos periculosos obstáculos que a vida pode nos proporcionar. Porém, do que temos tanto medo?

Tememos, a priori, uma vida miserável, financeiramente falando. Por isso que o dinheiro é tão valorizado entre nós. Não se trata apenas de uma vida de pompa e riqueza, mas sim uma existência onde possamos comprar a segurança e o conforto desejados, capazes de nos afastar dos males da pobreza. Tememos a inveja alheia, o mau agouro, o olho gordo, pois estas manifestações nefastas podem interferir na realização dos sonhos que tanto lutamos para realizar. Temos medo também da morte. Numa cultura tão apegada a vida, morrer significa o apagar da luz, o fechamento das cortinas, o encerramento do espetáculo do qual protagonizamos. Por isso nos apegamos a religiões diversas, seja para encontrar conforto em rituais ou amuletos da sorte que nos afastem do fim, seja para garantir que a nossa passagem para o outro plano seja feita da melhor forma possível e que do outro lado exista um local acolhedor, ou não, dependendo das nossas ações feitas aqui na terra. Em todas elas, o mesmo ideal: o corpo fechado.

Tal ideia de fechar o corpo, ou de possuir uma massa corpórea imbatível, faz com que muitos acreditem que nada de ruim possa lhes acontecer. Recentemente, por exemplo, li no jornal local a noticia de que num determinado bairro aumentou os índices de assalto à mão armada. Aparentemente, algo comum nas grandes cidades brasileiras, onde a desigualdade social leva muitos indivíduos a cometerem atos animalescos para sobreviver. Acontece que, na ocasião, uma colega proferiu o seguinte comentário: “nunca fui assaltada e nem serei. Desde sempre tenho o corpo fechado para essas coisas”. Imediatamente, a indaguei sobre o porquê de tamanha certeza. Ela, no entanto, não soube responder, apenas disse que tinha o corpo fechado e ponto. Nesse momento, minha mente tentou investigar se ela fazia parte de algum segmento religioso, o qual fortalecia a sua certeza de imunidade, mas não encontrei respostas. O caso da minha colega, como o de muitas outras pessoas, é bem parecido. Trata-se da inconsciente sensação de que nada de ruim pode nos acontecer.

Por causa desta sensação, acreditamos cegamente que nunca sofreremos de algo grave, como um câncer, ou outra doença terminal. De que jamais seremos vítimas de um assalto, um estupro, um sequestro relâmpago, uma bala perdida. Não acreditamos na possibilidade de abortar um feto, mesmo que esse tenha sido concebido através das mais sórdidas relações humanas. Classificamos como fatalidades, o fato de um poste repleto de fios de alta tensão desabar em cima de transeuntes, ou desses mesmos passantes serem vítimas de um buraco que surgiu do nada numa rua. Nem cogitamos a possibilidade de sofrer algum acidente no trânsito, por que faltou freio, ou por que as condições da pista não eram favoráveis. Ignoramos as inúmeras chances dos acidentes domésticos acontecerem conosco, pois aprendemos que incidentes nesses locais dificilmente aconteceriam com nós mesmos. Tentamos inesgotavelmente sermos precavidos, porém a fragilidade de nossa existência a todo o momento nos prova o contrário.


Esses “perigos” aos quais estamos sujeitos são pequenos e poderiam ser encarados com maior naturalidade, se a idealização do perigo fosse colocada em nossas vidas também de forma natural. Atrelado a isso, a desconstrução de ideia de que só o outro pode sofrer ou passar por mais bocados, nos ajudaria a perceber que somos todos iguais, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, na riqueza ou na pobreza e, sobretudo, na vida e na morte. Evidentemente que isso não extingue a fé individual de possuir ou não uma blindagem religiosa. Se você acha que possui o corpo fechado, parabéns. Aproveite essa barreira para se proteger e, quem sabe, os demais a sua volta. Entretanto, tente encontrar dentro de si essa crença como algo real, caso contrário estará apenas se enganando, ao passo que passa a vida toda acreditando que os perigos acontecem apenas com quem “merece”. Quem determina esse merecimento? Se ele existe, porque uns merecem mais e outros menos? Existe uma vida sem perigos? Para as primeiras perguntas, as respostas residem dentro de cada um de nós. Já para a última, me atrevo a dizer que não, pois é o perigo que nos faz crescer e nos dar força para continuar, tendo o corpo fechado ou não.

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