Artigo de Eliseu Neto*
“Mami poderosa! “É com essa frase que temos visto o vilão Félix (personagem de Mateus Solano) brilhar na novela das oito “Amor à Vida”, da Rede Globo. Acredito ser impossível um gay assistir essa trama e não refletir sobre sua própria saída ou expulsão do armário (na maioria das vezes, uma cristaleira, já que, sendo esta de vidro, todo mundo já saberia sobre a sexualidade que está presa lá dentro). Está no horário nobre tudo o que muitos de nós vivemos ou ouvimos falar que viveram nossos amigos: o pai que prefere “filho bandido” a “filho gay”, o desespero de “ter que estar no armário” (pra não perder tudo o que foi conquistado até hoje como “hétero”), o fato de usarem sua sexualidade para te ofender, chantagear ou diminuir e, pior, você ser leniente com isso e até “ter” que contar piadas pejorativas sobre gays por achar que assim seu lugar está assegurado no “grupo dos machos”
No Facebook eu, assumido fã da novela, falei que tinha nojo da Edith (personagem da Barbara Paz) por seus atos e depois me apavorei com as cenas de nojo do pai, César (Antônio Fagundes) por seu filho Félix. Logicamente, fui lembrado por meus amigos de todos os atos monstruosos do vilão e, por um momento, pensei: por que gosto dele?
São diversos fatores. É evidente que, além das caras e bocas do ator, me agrada o humor do personagem, maravilhosamente cruel, típico de quem passou por todo tipo de bullying e aprendeu a se defender dele da forma mais inteligente possível: rindo.
Gosto também porque sinto a dor palpável do personagem: vimos em muitos capítulos o total desprezo de César por seu filho e a rivalidade (ou mesmo ódio, emoção gêmea do amor) que Félix sente desse “não pai”. A função paterna é importante para criar segurança afetiva, estabilidade e a “lei”, as regras que devem ser obedecidas. Talvez, se esse pai odiasse o filho (que ele vê como “não homem”), teria sido melhor (para o filho) que o desprezo e a insignificância que foi relegada a esta criança. A raiva é uma forma de afeto, já o desprezo pelo outro o reduz a nada, é ele não existir; e o resultado é pura angústia. O psicanalista austríaco Sigmund Freud é claro quando escreve que “amor e ódio são a mesma coisa, odiamos aquilo que não podemos amar”. O pai despreza o filho que não pertence ao grupo dos machos, e a mãe, confusa sobre o que sentir, mima-o numa relação quase incestuosa.
Organizar a criança nas regras da nossa sociedade faz parte da função paterna, aquele (a) que desperta amor na mãe e que ocupa nossos sonhos de desejo e rivalidade. Félix não teve isso, teve uma mãe, Pilar (Suzana Vieira) que percebia o desprezo que o pai nutria por ele e que talvez soubesse que este era resultado da morte por afogamento de um outro filho, hétero e predileto. Essa mãe, então, provavelmente, tentou compensar Félix, mimando-o; e chamou isso de amor.
Podemos entender o sofrimento de Félix. Qual gay não conhece o medo de perder o amor dos seus pais? O pavor de ser largado por todos os seus amigos? A sensação de crescer cercado de religiões que apontam seus primeiros desejos como algo sujo, errado e feio?
Pior, ser gay, no imaginário popular, é ser “não homem”. Quando queremos ofender um sujeito do sexo masculino, tenha ele fechado o trânsito, esteja ele com medo da roda gigante, ou na festa com vergonha de falar com uma garota, na hora saem os xingamentos: “viado”, “gayzão”, “bichinha”.
Somos estigmatizados o tempo todo, a tal ponto, que quando escolhemos um padrão de beleza gay, escolhemos o “não gay”. Achamos lindo o cara “hétero”, discreto, sem trejeitos.
Voltando à trama da novela, Félix odeia a irmã porque ela é feliz, amada e aceita pelo seu “papi” (é a predileta), mesmo sendo “a intrusa” (não é filha da “mami”). Já ele sente que necessita fingir tudo, segurar trejeitos, estar com uma esposa, ter filho, somente para (conseguir) ter aquilo que é mais básico, o amor do pai. Quando exposto, o vilão cruel, mau, aparece na novela em toda sua outra face: frágil, morrendo de medo de não ser amado pelo próprio filho Jonathan (personagem de Thalles Cabral) quando se assume gay, pela mãe e pelo pai.
Vimos nos capítulos dessa semana uma maravilhosa cena na qual Félix precisou pôr para fora toda a sua raiva, inveja e desamparo, como uma criança que grita: “Eu precisava desse amor do meu pai e odiei da pior forma quem teve o que eu não tive”. A bebê, filha de sua irmã Paloma (Paolla Oliveira), que Félix roubou e deixou pra morrer numa caçamba de lixo, significava reviver esse terror: mais uma vez ser preterido. (Ele inclusive chama a criança de “outra intrusa”).
A revolta que o personagem causa no espectador vem do fato de que estamos vendo que um sujeito “normal”, sofrido, que passa por muito do que passamos como humanos, pode, pela sua forma de sentir, “enlouquecer” (não confundir com psicose ou psicopatia) e fazer coisas terríveis. Temos reações completamente diferentes em relação a situações similares, é o que deveria pensar o crítico do personagem que diz que “passou por acontecimentos terríveis e não se tornou mau”.
Quando a mãe manifesta em relação a ele indiferença, Félix se desespera, chora, lembra que é humano e o quanto ama a mãe; arranha a porta, pedindo para que ela somente o olhe e o escute; segundo o psicanalista francês Jacques Lacan pulsões básicas de um recém nascido: ser visto, que percebam que ele existe. (A primeira vez que um bebê se percebe é através do olhar da mãe.)
Note que quando o filho Jonathan (que, alguns capítulos atrás, quando Félix “sai do armário” o aceita e o ama “mesmo sendo gay”, como já mencionei acima) chama o personagem de Mateus Solano de “pai” (mesmo este não sendo biologicamente), cria-se um laço que, a meu ver, é o mais verdadeiro de toda a novela: filho diz para pai “te amo apesar de tudo, eu te amo gay e te respeito” e pai diz em resposta ao filho “eu te amo ‘não sendo médico’ (sonho do avô carrasco para o adolescente) e acredito que será um ótimo arquiteto”. Félix vislumbra que o amor existe, ele foi aceito por Jonathan como realmente é, sem ter que dar nada em troca, como os sapatos e roupas que comprou pra mãe, o relógio que deu ao Anjinho e os elogios exagerados ao pai e à irmã. Ele vê que pode haver um amor usufruído sem violência, medo ou brigas de poder. Mas como funciona isso? O quanto ele pode ficar dependente (desse amor)? Como pode garantir tê-lo, se não o controla de forma alguma?
O amor de Jonathan comove Félix (mesmo que este não perceba exatamente o que é o sentimento, ficando confuso por, novamente, não ter que dar nada de volta); e talvez ele pense nas más escolhas que fez, talvez se dê conta que não era o poder que iria lhe garantir afeto, não era casar na marra, não era fingir uma vida. Isso tudo só trouxe dor, desespero e um crime.
Todos podemos ser como Félix, levado à “loucura” pela vida, mas não queremos saber que essa possibilidade existe. (É importante ressaltar que ser amado nos mantém sãos; e que são diversos os tipos de amor.)
Félix não consegue se amar. E quem não se ama, consegue amar os outros? Ele não faz vínculos, não tem amigos, compra o personagem Anjinho (Lucas Malvacini)… Como ele pode acreditar em amor, se não teve essas referências determinadas pelos pais? O que teve foi um pai indiferente e uma mãe culpada por ter dado ao filho um progenitor como esse.
Félix é um personagem que muda nossa relação com a televisão, não é mais o gay palatável, bonzinho, nosso “pedido de aceitação”, tão comum até hoje. Ele é um ser humano possível, que, infelizmente, fez (e faz) más escolhas e é criminoso. Mas sofre e tem sentimentos como todo mundo.
Assumir-se gay é algo, na vida das pessoas, que pode ser libertador, divertido, alegre e te apresentar grandes amigos, mas, infelizmente, também é algo que pode trazer dor, preconceito, sofrimento, tristeza e muito perigo. No fim, quando saímos do armário, cada pessoa nova que conhecemos significa reviver o dilema que tivemos com os pais: será que (essa pessoa nova) ainda vai me amar “quando souber”?
Para terminar esse texto sobre Félix, mais alguns eventos do futuro do personagem (são spoilers, fuja se não gosta):
Meu herói será expulso de casa pelas suas vilanias e sua ex-babá, a chacrete, falará como quem conhece o poder do amor real de uma mãe: “Você nunca teria se tornado um homem capaz de jogar uma criança numa caçamba… Você nunca ia achar que a sua irmã era uma intrusa, porque eu ia te ensinar a gostar dela. Mas eu fui embora e te deixei sozinho. Tão sozinho que você cresceu cheio de ódio”, acredita Márcia.
Parece que a chacrete entende mais de gente que toda a milionária família de médicos Khoury. “Não me cabe conceber nenhuma necessidade tão importante durante a infância de uma pessoa que a necessidade de sentir-se protegido por um pai.” disse Sigmund Freud
* Eliseu Neto é psicólogo, psicanalista, gestor de carreiras, professor de Pós gradução, membro do Comite LGBT carioca e membro do núcleo LGBT do PPS
Visto no: SuperPride
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