Mesmo sabendo que a
única certeza que temos é a da morte, passamos a existência inteira achando que
estamos imunes às intempéries que a vida pode nos proporcionar. São tantos caminhos possíveis, tantos perigos
em cada um deles, que a melhor escolha é sempre aquela que irá afugentar as
coisas más, ruins, que tragam desgraças para nossas vidas. De fato,
institivamente buscamos nos proteger dos males que criamos, para manter uma
vida longa e, se possível, bem vivida. Para isso, muitas vezes a religião serve
de bussola, nos guiando para os caminhos mais viáveis, nos afastando de todo o
mal a que estamos expostos aqui na terra. Contudo, penso que a nossa sensação
de imunidade é puramente uma mentira reconfortante criada sobre vários pilares
para ludibriar a dolorosa verdade que circunda a nossa existência: a de que não
estamos e nem somos imunes a nada. Pelo contrário, pois nos momentos mais
distintos do nosso dia a dia, a mortalidade do nosso ser se manifesta para
desconstruir a nossa pretensa ideia de superioridade.
Por mais que exista uma
crença cultural de que “tudo só acontece com os outros”, nada pode
justifica-la, a não ser a prepotência humana de querer ser superior aos outros
da sua própria espécie. E essa superioridade se manifesta dentro de grupos
sociais distintos, em culturas também distintas, mas sempre com a mesma
idealização de blindagem. Explico do que se trata isso. Acredito que somos
educados erroneamente a não esperar pelo pior, a não acreditar que alguns fatos
podem nos acontecer e que devemos estar preparados para eles. Ao invés disso,
preferimos a ideia romântica de que nada irá nos atingir, de que não podemos
nos machucar, nos ferir, matar ou sermos mortos. De que é sempre o outro que
deve sofrer por essa ou aquela razão. Com isso, crescemos e passamos a vida
inteira achando que um raio não pode nos atingir, de que o avião que estamos
não pode cair, ou a pessoa que amamos não pode nos decepcionar. Com esses
enganos, buscamos de inúmeras formas o corpo fechado, uma verdadeira muralha
que impedirá a entrada dos periculosos obstáculos que a vida pode nos
proporcionar. Porém, do que temos tanto medo?
Tememos, a priori, uma
vida miserável, financeiramente falando. Por isso que o dinheiro é tão
valorizado entre nós. Não se trata apenas de uma vida de pompa e riqueza, mas
sim uma existência onde possamos comprar a segurança e o conforto desejados,
capazes de nos afastar dos males da pobreza. Tememos a inveja alheia, o mau
agouro, o olho gordo, pois estas manifestações nefastas podem interferir na
realização dos sonhos que tanto lutamos para realizar. Temos medo também da
morte. Numa cultura tão apegada a vida, morrer significa o apagar da luz, o
fechamento das cortinas, o encerramento do espetáculo do qual protagonizamos.
Por isso nos apegamos a religiões diversas, seja para encontrar conforto em
rituais ou amuletos da sorte que nos afastem do fim, seja para garantir que a
nossa passagem para o outro plano seja feita da melhor forma possível e que do
outro lado exista um local acolhedor, ou não, dependendo das nossas ações feitas
aqui na terra. Em todas elas, o mesmo ideal: o corpo fechado.
Tal ideia de fechar o
corpo, ou de possuir uma massa corpórea imbatível, faz com que muitos acreditem
que nada de ruim possa lhes acontecer. Recentemente, por exemplo, li no jornal
local a noticia de que num determinado bairro aumentou os índices de assalto à
mão armada. Aparentemente, algo comum nas grandes cidades brasileiras, onde a
desigualdade social leva muitos indivíduos a cometerem atos animalescos para
sobreviver. Acontece que, na ocasião, uma colega proferiu o seguinte
comentário: “nunca fui assaltada e nem
serei. Desde sempre tenho o corpo fechado para essas coisas”.
Imediatamente, a indaguei sobre o porquê de tamanha certeza. Ela, no entanto,
não soube responder, apenas disse que tinha o corpo fechado e ponto. Nesse
momento, minha mente tentou investigar se ela fazia parte de algum segmento
religioso, o qual fortalecia a sua certeza de imunidade, mas não encontrei
respostas. O caso da minha colega, como o de muitas outras pessoas, é bem
parecido. Trata-se da inconsciente sensação de que nada de ruim pode nos
acontecer.
Por causa desta
sensação, acreditamos cegamente que nunca sofreremos de algo grave, como um
câncer, ou outra doença terminal. De que jamais seremos vítimas de um assalto,
um estupro, um sequestro relâmpago, uma bala perdida. Não acreditamos na
possibilidade de abortar um feto, mesmo que esse tenha sido concebido através
das mais sórdidas relações humanas. Classificamos como fatalidades, o fato de
um poste repleto de fios de alta tensão desabar em cima de transeuntes, ou
desses mesmos passantes serem vítimas de um buraco que surgiu do nada numa rua.
Nem cogitamos a possibilidade de sofrer algum acidente no trânsito, por que
faltou freio, ou por que as condições da pista não eram favoráveis. Ignoramos
as inúmeras chances dos acidentes domésticos acontecerem conosco, pois
aprendemos que incidentes nesses locais dificilmente aconteceriam com nós
mesmos. Tentamos inesgotavelmente sermos precavidos, porém a fragilidade de
nossa existência a todo o momento nos prova o contrário.
Esses “perigos” aos
quais estamos sujeitos são pequenos e poderiam ser encarados com maior
naturalidade, se a idealização do perigo fosse colocada em nossas vidas também
de forma natural. Atrelado a isso, a desconstrução de ideia de que só o outro
pode sofrer ou passar por mais bocados, nos ajudaria a perceber que somos todos
iguais, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, na riqueza ou na
pobreza e, sobretudo, na vida e na morte. Evidentemente que isso não extingue a
fé individual de possuir ou não uma blindagem religiosa. Se você acha que
possui o corpo fechado, parabéns. Aproveite essa barreira para se proteger e,
quem sabe, os demais a sua volta. Entretanto, tente encontrar dentro de si essa
crença como algo real, caso contrário estará apenas se enganando, ao passo que
passa a vida toda acreditando que os perigos acontecem apenas com quem
“merece”. Quem determina esse merecimento? Se ele existe, porque uns merecem
mais e outros menos? Existe uma vida sem perigos? Para as primeiras perguntas,
as respostas residem dentro de cada um de nós. Já para a última, me atrevo a
dizer que não, pois é o perigo que nos faz crescer e nos dar força para
continuar, tendo o corpo fechado ou não.
Aplaudindo de pé!!!
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