15 outubro 2013

Todo dia é da criança, inclusive, a gay - por Miguel Rios

O que era inconsciente vira dúvida, que vira certeza, que vira recusa, que vira inferno
                             

Nem sabe o que é, mas já deduz que é errado. Tem de ser. As pessoas grandes falam que é. Aprende por osmose, pingo a pingo, de ouvido. Em frases largadas como  por descuido, mas cheias de  tons que traduzem o desprezo. “Isso é coisa de bicha”,  “Viu aquele bando de sapatão na TV?”, “Tem mais é que matar esse povo de Satanás”. Nem sabe que é um dos que eles querem matar. Nem de longe  se percebe uma criança gay.

A pouca idade embaça os gostos que terá, não dá margem a certezas. É ainda  um Lego, se encaixando involuntário, peça a peça, onde cada uma pode ser descartada e substituída. Mas não param de lhe enfiar as peças consideradas corretas, nem que seja a força.

Vai crescendo, correndo no parquinho, comendo banana amassada com aveia e ouvindo: “Casal é rapaz e moça”, “Amor é para namorado e namorada”, “Família é para marido e esposa”. Vai brincando de esconde-esconde e se acoplando: “Menina ganha boneca e joguinho de panelas”, “Menino joga bola e roda pião”, “Se menino gira bambolê, vira boiola. Não pode”, “Se menina puxa caminhão de lata, vira machão. Não pode”.Se insiste em teimar, fazer o contrário do que se manda, apanha, amarga castigo no quarto, para aprender o certo e a odiar o errado.

Vai crescendo e escutando histórias: o príncipe fica com a princesa. Final feliz. Vai vendo na novela: o galã fica com a mocinha. Eles se beijam. Final feliz. Se aparece galã com galã ou mocinha com mocinha pesa um clima, a respiração  coletiva fica suspensa. Final constrangedor. Pergunta: “Ele casou com ele, mamãe?” Resposta: “Não. É outra coisa... Arrume seus brinquedos e vá dormir”. Intromissão do pai: “Não pode mais assistir a isso. Vai influenciar”.

Vai crescendo, aprendendo a separar sílabas, a fracionar números e a se odiar no que há por vir. Os outros já percebem alguma coisa, insinuam, já pisam clara ou disfarçadamente. São os colegas de turma que, treinados para achar esquisito, lançam as primeiras chacotas, que só fazem aumentar, o bullying se monta. É a professora que chama os pais na escola para reclamar sobre o comportamento, em uma conversa camuflada de cuidado, que perde a máscara com “Não é uma criança normal. Não brinca com quem deveria brincar e como deveria”. São as brigas em casa para que se ajeite, que entre no modo perfeito de vida. São as lágrimas derramadas no desespero de se ter errado na criação, do que os outros dirão.

Vai crescendo, colecionando figurinhas em álbum, ganhando personalidade  e se achando a maior das vergonhas, se condenando pela sentença do mundo, que grita: “Era melhor que a morte tivesse levado”.
A pouca idade embaça os gostos que terá, não dá margem a certezas


Crescendo e se percebendo fora do ajuste. Os olhares começam a apontar para quem foi dito que nunca se deveria olhar. O desejo, gato arisco, arranha devagar, sempre e no mesmo lugar para que  o sentir lateje. Vão chegando as espinhas, os hormônios explodem, cada vez mais é difícil negar-se. O que era inconsciente vira dúvida, que vira certeza, que vira recusa, que vira inferno.

Não se queria, se luta contra. Aquele treinamento antigay passa a surtir efeito, o autodesprezo bate ponto  embaixo do travesseiro e traz consigo a convicção de que a vida lhe barrou a entrada, que a mentira é a melhor alternativa, que talvez uma cura por asfixia aconteça, que orar pelo milagre é vital. Vai crescendo, de mochila e  All Star, mascando chiclete e a angústia se torna parceira constante. Nenhuma fada-madrinha ou anjo da guarda apareceu com palavras mágicas de transformação. Bate a falta de cumplicidade, de autenticidade. Chega a culpa, o nojo  de ser o que se é. Os pensamentos de que realmente seria melhor não ter  nascido.

Nenhuma maturidade para lidar. A lenha vem quebrando no lombo de quem mal aprendeu como é a reprodução celular ou se deu a expansão do Império Romano, que dirá como são vastas as possibilidades sexuais e de afeto. Vai atravessando a puberdade. E a solidão tanto incomoda quanto já é de casa. Ela fica ali do lado, de cara fechada, e se vai barganhando dias de menor ou maior peso, quando pode haver sorrisos, se considerar membro da família, e de quando se taxar de condenado,  cair no inevitável choro.

Vai-se adiando o eu livre, evitando o renascer. O esconde-esconde é bem mais sério. Começam os encontros às encobertos. A vida subterrânea. Vêm as amizades fora do eixo, não apresentáveis à família. Vêm os guetos, a vergonha própria. Vêm  momentos de negação e de xingamento aos do mesmo barco para abafar o que se é. Vêm  instantes onde bate a vontade de escancarar tudo, mas o medo, rebocado pela dependência financeira e emocional, segura as rédeas.

Começam as cobranças alheias de namoro e as satisfações. Ou se  arruma uma saída qualquer pela esquerda e a vida dupla se agrava, ou se consegue alguém para encobrir e se acha mentir a solução ideal, que  tudo vai dar certo se souber enganar direito, ou a carga quintuplica e aí é botar para fora e seja o que Deus quiser. Coragem para a última escolha é que carece. Aí cala-se para prevenir o escárnio, vive-se no silêncio, na gastura. Acostuma-se à película fumê.

E vai crescendo, a infância passando, a adolescência passando, a fase adulta aporta e o preconceito  ainda é claramente ouvido. Os alvos agora são outros pequenos, mas se é como se não fossem. “Eles não percebem que o filho tá virando boiola”, “Aquela menina tá na cara que é. Melhor cuidar logo”, “Sempre digo a meu filho: ‘Não arrume confusão. Podem te xingar do que for, não sendo de veado...’” Engole-se seco, de cara dura.

O mundo continua opressor, ignorante, achando que em alguma fase do crescimento se mete o dedo em um interruptor  e se decide o futuro da criança: gay ou hétero. Continua rejeitando ouvir os que viveram, suportaram e que, calejados, disparam: “De algum jeito, na infância, eu já sabia”. Sabia porque sempre esteve lá. Ou mais encolhido ou mais exuberante, o íntimo se mostra,  vai adiante. Cresce. Independente de surra de pai, berro de mãe, ataques na escola, de ser ter mais trejeitos ou preencher todos os requisitos do gênero, de passar anos e anos sem despertar suspeitas ou logo cedo eclodir. Porque o tal interruptor é lenda urbana.
 
Visto no: NE10

Um comentário: