03 outubro 2013

Desarme a voz do preconceito - por Miguel Rios

                                             
É. Bem que se achou Edith homofóbica no momento em que ela sacou a palavra e a atirou na cara do marido. E foi. Bicha é palavra forjada para menosprezar. Feita sob medida para alguém se colocar vários (ou todos) degraus acima o outro e olhá-lo de cima ao pronunciá-la. Deixar claro que gay é ser menor.

“Vadia! Vadia!”

É. Félix também mandou com força. Nada mais usual para diminuir uma mulher que chamá-la de algo que a ligue à atividade sexual intensa. Quenga, rapariga, ou outra contrária a recato.

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Edith estava furiosa. Humilhada, golpeada, anos e anos na pressão. O sangue esquentou, ferveu, espumou. Estourou. Félix do mesmo jeito. E quando  a vista cega, quando o juízo ebule,  sabe-se bem, saia de baixo. Quem pode, com toda a certeza, afiançar não sair do prumo, não despejar o seguraria na tranquilidade?

Quem  garante que a suave e compreensiva Paloma vai poupar o irmão de outra metralhada de “Sua Bicha!  Bicha!” quando souber que ele lhe roubou a filha e a jogou na caçamba do lixo?

Fora de controle, as palavras voam como paralelepípedos das mãos de um manifestante agressivo. Alega-se que saem sem pensar. Falso. O dito na batalha é o pensado na paz. Pode haver arrependimento, pode se voltar atrás, pedir desculpas, choro sincero. Mas o dedo que puxou o gatilho sofreu reflexo condicionado. Aprende-se desde cedo como e com o que se pode magoar.

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Palavras dão ótimos resultados como estiletes. E quando ligadas a sexo, atingem índices altos de eficácia no xingamento. Corno, puta, veado, brocha, mulherzinha e afins guardam-se para aquele momento “quero te ferir muito, te dizer que você é inferior”.

Recebe as tais palavras quem foi treinado igual para reconhecer a ofensa, rejeitá-la e se melindrar. E revida com algo de patamar equivalente, que faça doer a mesma ou parecida dor, que traga o alento ofegante da vingança, que lhe suspenda a honra do chão.

Trata-se de guerra. Guerra é guerra e não debate. E até em debate, ninguém duvide, palavras deste naipe se encontram seguras nos gogós, enfileiradas. Desarquivadas pela mente, mas acalmadas pela diplomacia e pela finesse, que puxam as rédeas e fazem o dono do secreto arsenal parecer avesso a injúrias.

Palavras quase detonadas. Pulsando atrás de feições esculpidas e moderadas. Guardadas para desabafos mentais solitários ou para público mais íntimo, de confiança. Aí tome uma chuva de “aquele frango”, “aquela xamboqueira”, “aquele chifrudo”.

Palavras-bomba. Só à espera do dedo acionar o detonador. Um clímax como o na casa dos Khoury. Um casal 100% descontrolado, já puxando o pino das granadas, disposto cada um a mandar o da frente pelos ares.
Palavras-bomba. Só à espera do dedo acionar o detonador

Até mesmo palavras que deveriam ser menos rudes, se tornam mordida de pitbull quando ditas na hora certa para a pessoa certa. Consegue-se fácil.  “Marmiteiro não. Sou distribuidor de refeições”, respondeu um garoto, na mesma novela Amor à Vida, ao sentir o tom pejorativo sobre seu ganha-pão. Doeu. Ele quis aliviar. Piorou. Referendou o preconceito.

Qual o problema de em ser marmiteiro? Em ser veado? Em ser periguete? O problema foi criado por quem acha que pessoas que julgam menores precisam de palavras para serem feridas. O problema maior é que tanto se martelou que a semântica da depressão infectou  geral. Acreditam e praticam o opressor e o oprimido.

Gay não gosta de ser chamado de veado,  de bicha, coisas assim. Tem que ser identificado como homem. Lésbica teme levar sapatão pela cara. Tem que ser chamada de mulher. A crença: nada longe do hétero tem valor. 

Mulher gosta de ouvir que é  santa,  boa moça, que sexo para ela somente aquele bem familiar e respeitoso. Até um leve “e aí, biscate?” a insulta. Homem ama ser o garanhão, o pegador, o macho, o que exala masculinidade, o para quem todos batem palmas. Um “deixa de ser donzelo!” já tira do sério.

Para manter os privilégios conservadores-sexistas-intolerantes, o  engessamento linguístico  segue como se não houvesse amanhã, como se mudar lógicas e sentidos fosse proibido. E as palavras-bomba ficam lá para escarnecer os atrevidos a escapar.  Aguardando na prateleira. Assombrando. Qualquer movimento em falso e BUM! Uma nova vítima.

Errado modo de lidar com bombas. Temendo-as, deixando-as para lá, fazendo de conta que não pipocam em você e que se batem no outro tudo bem. É desarmando que as inutiliza. É preciso tirar delas a inhaca, o sebo, a crosta de lodo, as teias de aranha, o desfavorável e desaparelhar os artilheiros.

Desinfete-as e use veado, vadia, favelado, gordo, magrelo, tudo o que está na pilha do lixo. Recicle. Pare de achar que apenas homem tem valor. É uma palavra que define um gênero. Mulher idem. Acrescente em igual nível transhomem e transmulher. Sem problemas. Rico e pobre informam sobre a conta bancária, não sobre a alma da pessoa. Roqueiro e funkeiro, sobre o que há no pen drive, nos pôsteres do quarto e fim.

Negro foi  usado para ofender faz nem tanto tempo. Hoje é orgulho de coragem, de raça, de movimento. Ainda aparecem uns e outros embolorados no racismo (até muitos) com coisas do tipo “aquele neguinho é muito metido” ou “negro safado”. Bem menos a palavra, mais o contexto, o tom de voz. Responde-se com “Negro sim. Qual é?” Falta de inteligência, de informação, é de quem desnivela.

Ok! Palavra como baioneta, como bazuca, não se anula de uma hora para outra. Ainda vai bater, vai cortar, vai sangrar, fazer doer por dias. O significado-regra custa a ser excretado. Ok! Ela estará no coldre do outro, pronta para ser sacada, sabe-se lá até quando. Mas se a munição envelhecer, rarear,  passar de bomba a buscapé e a traque de massa, vai ser cada vez menos danosa a quem se blindou com um “Sou! É problema pra você? Para mim não”.
Visto no: NE10

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