24 abril 2013

"Quero salvar os filhos que ainda não morreram" - por Eliane Brum

 
 
 
"Mataram meu filho em 11 de dezembro de 2005. Ele tinha 20 anos. Ao meio-dia, ele tinha feito um assalto para comprar droga. O tiro pegou na camisa dele, deixou um buraco. À noite, saiu para cheirar loló no trilho do trem. A polícia viu meu filho e atirou. Uma das balas pegou no pescoço. Eu estava em casa, senti na hora. Disse para o meu outro filho: 'Ele morreu'. Senti uma coisa da cabeça aos pés. Uma dor tão grande que não sei explicar. Uma dor de doer. É uma dor no peito que vai fechando. A gente quer falar e não fala mais. Desmaiei na calçada e não vi mais nada.
 
Quando esse menino chegou, um dia, com um tiro no peito, sangrando em cima da bicicleta, comecei a pagar o caixão dele. Vejo muita mãe aqui onde moro tendo de pedir esmola pra comprar o caixão. Eu não queria isso pro meu menino. Quando ele foi assassinado, fazia quase cinco anos que eu pagava. Mas estava com duas prestações atrasadas. O pai dele tinha ganhado o décimo-terceiro na padaria, porque era perto do Natal. A gente estava guardando para aumentar a casa, que não cabe todo mundo na hora de dormir. Mas quando meu filho foi morto, peguei esse dinheirinho e mandei pagar o carnê atrasado logo cedo.
 
Agora, estou pagando o caixão do meu outro filho, de 19 anos. Ele está no tráfico. Ele diz: 'Mãe, eu não vou ser que nem o meu irmão, que morreu de graça'. Mas sei que ele vai morrer. A pedra [crack] está matando os meninos novos tudinho. É terrível comprar caixão para filho vivo, mas meus meninos vão morrer honestamente.

Tive sete filhos, agora só tem quatro vivos. Crio também uma menina que botaram na minha porta com sete dias de vida. Dois morreram de doença quando eram pequenos e esse morreu de morte matada. Desses que morreram de doença, eu não sinto falta. Acho que porque eram pequenos. O que morreu de morte matada dói o dia todo.

Esse meu menino que morreu foi bom até os 12 anos. Ele era vendedor de coco. Era pequeno e tinha mão com calo de tanto trabalhar. Vendia coco numa carrocinha que o pai deu pra ele. De um dia pro outro, virou a cabeça. Começou a usar toda a droga que há no mundo. A gente segura até os 11, 12 anos. Bota pra dentro de casa no fim da tarde e só abre no dia seguinte. Mas quando crescem, não segura mais. Eles vão pra rua e o que encontram? Não tem nada, lazer, trabalho, coisa nenhuma. Tem o tráfico.
 
Na primeira vez que ele chegou com os olhos apertados, cheirei a boca do meu menino. Senti na hora o bafo da maconha misturado com loló. O pai bateu nele. Na segunda, eu mesma bati. Não adiantou nada. Nem conversa, nem conselho. Ele não ouvia a gente. Então soube que o fim dele era a morte. Nunca aceitei nada dele aqui em casa. Nenhuma arrumação. Aceitava quando era dinheiro suado, que ganhava vendendo coco. Depois, não. Porque se aceitasse, ele ia querer trazer toda vida. Um dia encontrei a droga aqui e dei descarga nela. Sempre abri a porta para a polícia, nunca acobertei. Mas não agüentava mais ver a polícia batendo nele na minha frente, ele ficava com a cara toda arrebentada. Meu filho tinha até hérnia nos testículos de tanto levar chute. Esse menino tinha 20 anos e passou mais tempo preso do que solto.
 
A polícia me trata mal. Diz que sou mãe de vagabundo. Mas eles não sabem como a vida é na verdade. Eu e meu marido somos casados há 28 anos. Ele acorda às 3h da manhã para fazer pão na padaria. Ganha R$ 70, às vezes R$ 80 num mês. Quando meus filhos eram pequenos, eles diziam que queriam ser padeiro como o pai. Mas depois que cresceram, não quiseram mais saber disso, não. Eles riem da profissão de padeiro. Eu lavo duas trouxas de roupa por semana, cada uma com mais de 70 peças. Lavo, engomo, passo. Tudo na mão. Me pagam R$ 25 reais por trouxa. Queria ter mais para lavar, mas ainda não consegui mais freguesas.
 
A gente trabalha pra dar de comer aos nossos filhos, nunca faltou comida a eles. Mas eles querem roupa de marca. Eu tento comprar, uma vez pra cada um. Tem uma mulher que vende aqui na porta e a gente paga por semana. Quando acabo de pagar a roupa de um, começo a pagar a do outro, até chegar no último e começar tudo de novo.

Toda a minha família dorme num quarto só, mesmo o menino que já tem mulher. Somos oito num quarto só, sem janelas. Depois tem mais uma pecinha e a cozinha. Por isso eu queria aumentar a casa. Porque a gente só cabe um por cima do outro. Bota uma rede em cima da outra. E um ventilador, pra agüentar um pouco o calor. Todo ano aqui tem enchente. Alaga tudo, fica a marca da água no meio da parede. Eu pego os meninos e a gente vai dormir lá fora até a água baixar. Botamos um colchão lá onde eu lavo roupa. Quando a água baixa, a gente volta. Ficamos todos doentes, porque fica cheio de ratos. O pouquinho de móveis que a gente tem apodrece.
 
Queria salvar os meus filhos que ainda não morreram, mas não sei como. Digo que o irmão morto é o espelho deles, que nessa vida de tráfico vão morrer de uma hora pra outra. Digo também que quem entrar para o crime eu entrego, porque não protejo sem-vergonhice. Mas eles não escutam. Saem de casa e dizem que voltam quando eu ficar mais calma. Não bebo, não fumo. Meu vício só é novela. Vejo todas. Boto as crianças pra dentro e vejo da primeira à última novela, em todos os canais. Aí durmo. De noite eu acordo. Ouço o meu filho me chamando na porta. 'Mãeeee', ele diz. Eu me levanto, vou até a porta, abro e ele não está lá. Meu marido fica bravo, diz que um dia vão me matar quando eu abrir a porta. Mas ouço meu filho me chamando, e não consigo não abrir. Só que ele nunca está lá. Não tem ninguém lá. Então fico chorando atrás da porta."
 
Visto: marie claire

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