O
papa Bento XVI disse que o casamento homossexual “ameaça o futuro da
humanidade”.
Eu pensava que o que o ameaçava eram as
guerras (muitas delas étnicas ou religiosas), a fome, a miséria econômica, a
desigualdade e as injustiças sociais, a violência, o tráfico de drogas e de
armas, a corrupção, o crime organizado, as ditaduras de todo tipo, a supressão
das liberdades em diferentes países, os genocídios, a poluição ambiental, a
destruição das florestas, as epidemias… Porém o papa, mesmo ciente de todos
esses males e consciente de que sua instituição – a Igreja Católica Apostólica
Romana – contribuiu com muitos deles ao longo da história ocidental,
disse que a humanidade é ameaçada pelo fato de dois homens ou duas mulheres se
amarem e, por isso, decidirem construir um projeto de vida comum e obter o
reconhecimento legal dessa união para gozar de direitos já garantidos aos
heterossexuais.
O amor e a felicidade como ameaças contra a
humanidade: foi o que afirmou Bento XVI.
O amor, uma ameaça?!
Dentre todos os desatinos do papa, este foi o
que mais me chocou. Talvez porque sua afirmação estapafúrdia e anacrônica tenha
violado diretamente a minha dignidade humana de homossexual assumido e
orgulhoso de minha orientação sexual e de minha formação científica (sim,
porque a afirmação de Bento XVI parte da crença absurda de que o casamento
civil igualitário vai transformar todos os homens e mulheres em homossexuais e
vai impedir que todas as mulheres da Terra recorram às técnicas de reprodução
artificial
Ora, o amor, como a fé, é
inexplicável: sente-se ou não. Não há dicionário que possa defini-lo; só
o poeta pode dizer alguma coisa a respeito — fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente — mas para entendê-lo é preciso sentir
tudo aquilo que o papa, os cardeais, os bispos e os padres, pelas regras do
trabalho que escolheram desde jovens, são proibidos de sentir – seja por outro
homem, seja por uma mulher.
Talvez por isso eles não entendem.
Mas o amor nunca poderia ser uma ameaça para
a humanidade; antes, sim, uma salvação para os seus piores males, um antídoto
contra os venenos que a intoxicam, uma vacina contra as doenças que a afligem.
O papa está errado de cabo a rabo. Ele não entendeu nada mesmo.
Contudo, mesmo não entendendo, ele deveria
ter um pouco de responsabilidade. Suas palavras têm poder, influência, entram
na cabeça e no coração de milhões de pessoas no mundo inteiro. Ele poderia
usá-las para fazer o bem. Em vez de dedicar tanto tempo e esforço a injuriar os
homossexuais — eu confesso que não consigo entender o porquê dessa obsessão que
ele tem com a gente — o papa poderia se colocar na luta contra os verdadeiros
males que ameaçam, sim, a humanidade. Esses que matam milhões, que arruínam
vidas, que condenam povos inteiros.
Bento XVI não pode continuar difundindo o ódio e o
preconceito contra os gays. Ele não pode dizer que nós, só por amarmos, só por
reclamarmos que o nosso amor seja respeitado e reconhecido, somos “uma ameaça”.
Aliás, porque esse tipo de frases tem uma história. “Os judeus são a nossa
desgraça!” (“Die Juden sind unser Unglück!”), disse o historiador
Heinrich von Treitschke, e essa desgraçada expressão, publicada na revista
alemã Der Sturmer e
logo usada como lema pelos nazistas, deu no que deu. Nós, homossexuais, também
sabemos disso: o nosso destino na Alemanha nazista, onde Bento XVI passou sua
juventude, era o mesmo dos judeus, só que em vez da estrela de Davi, o que nos
identificava noscampos de concentração era o triângulo rosa.
A tragédia do nazismo deveria ter servido
para aprender que o outro, o diferente, não é uma ameaça, nem uma desgraça, nem
o inimigo. E nós, homossexuais, não ameaçamos ninguém. O nosso amor é tão belo
e saudável como o de qualquer um. E merecemos o mesmo respeito e os mesmos
direitos que qualquer um.
Da mesma maneira que acontece agora com o
“casamento gay”, o casamento entre negros e brancos — chamado, na época,
“casamento inter-racial” — já foi considerado “antinatural e contrário à lei de
Deus” e uma ameaça contra a civilização. Numa sentença de 1966, um tribunal de
Virgínia que convalidou sua proibição usou estas palavras: “Deus todo-poderoso
criou as raças branca, negra, amarela, malaia e vermelha e as colocou em
continentes separados. O fato de Ele tê-las separado demonstra que Ele não
tinha a intenção de que as raças se misturassem”. O casamento entre alemães “da
raça ária” e judeus também foi proibido por Hitler. Até os evangélicos tiveram
o direito ao casamento negado em muitos países durante muito tempo, porque
eram, também, uma ameaça para a Igreja católica. Parece que alguns pastores não
se lembram, mas foi assim.
Na Argentina, que em 2010 aprovou o casamento
igualitário, a primeira grande reforma ao Código Civil, no século XIX, foi
impulsionada pela demanda dos protestantes, que reclamavam o direito a se
casar. Vários casais não católicos se apresentaram na Justiça, como agora fazem
os homossexuais. Quando o país aprovou a lei de criação do Registro Civil e,
depois, o matrimônio civil, em 1888, houve graves enfrentamentos entre o
governo argentino e a Igreja Católica, que incluíram a quebra das relações
diplomáticas com o Vaticano. No Senado, um dos opositores ao matrimônio civil
disse que, a partir de sua aprovação, perdida a “santidade” do matrimônio, a
família deixaria de existir. A lei foi chamada de “obra-mestra da sabedoria
satânica” por monsenhor Mamerto Esquiú, quem disse sobre os governantes
argentinos da época que “amamentam-se dos peitos da grande prostituta, a
Revolução Francesa”. Todas as predições apocalípticas que foram feitas contra a
lei de matrimônio civil, no entanto, não se cumpriram. Anunciaram, garantiram
que o mundo ia se acabar… mas o mundo não se acabou.
Passou-se mais de um século, mas as
discussões são as mesmas. Os argumentos são os mesmos. E o papa Bento XVI
continua sem entender. Não entende, tampouco, que o casamento civil e o
casamento religioso são duas instituições diferentes. O casamento civil está
regulamentado pelo Código Civil, que pode ser modificado pelo Congresso, já o
casamento religioso depende das leis de cada igreja: por exemplo, o casamento
católico é diferente do casamento judeu.
O casamento religioso é feito na igreja,
templo, mesquita ou terreiro; o civil, no cartório. Para celebrar o casamento
religioso na Igreja católica, os noivos devem ser batizados ou fazer um
juramento supletório do batismo e devem realizar um curso prévio na igreja – o
que não é necessário para o casamento civil, que pode ser celebrado por pessoas
de qualquer religião ou por ateus. O casamento religioso, na maioria das
igrejas cristãs, é indissolúvel – já o civil admite o divórcio.
Em consequência, uma pessoa pode se casar na
Igreja apenas uma vez na vida, mas pode casar quantas vezes quiser no cartório,
desde que seja divorciada. O casamento religioso, para que produza efeitos
jurídicos, deve ser registrado no cartório – os efeitos jurídicos do casamento
civil são imediatos. E essas são apenas algumas das muitas diferenças que
existem entre o casamento civil e o religioso…
O que nós, homossexuais, reclamamos é o direito ao casamento civil. O projeto
de emenda constitucional (PEC) que estou impulsionando no Congresso não mexe em
nada com casamento religioso, cujos efeitos jurídicos são reconhecidos no art.
226 § 2 da Constituição, que se manterá inalterado. Meu projeto legaliza o
casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, mas nada diz sobre o casamento
religioso. Da mesma maneira que o Estado não deve interferir na liberdade
religiosa, as religiões não devem interferir no direito civil. Este último é
uma instituição laica, que deve atender por igual as necessidades daqueles e
daquelas que acreditam em Deus — em qualquer Deus ou em vários Deuses — e
também daqueles e daquelas que não acreditam.
Chegará o dia no qual uma criança irá à
biblioteca da escola para procurar, nos livros de história, alguma explicação
sobre um fato surpreendente que o professor comentou em sala de aula: “Até o
início do século 21, o casamento entre dois homens ou duas mulheres não era
permitido”. Para o nosso pequeno cidadão, essa antiga proibição resultará tão
absurda como hoje nos resulta a proibição do casamento entre negros e brancos,
ou do voto feminino. E se ele descobrir, na biblioteca, que houve um dia em que
um papa disse que o casamento gay ameaçava a humanidade, provavelmente sentirá
a mesma repulsa que nós sentimos ao lermos a desgraçada frase de von
Treitschke.
Bento XVI deveria pensar se ele quer passar à
história dessa maneira. Ainda está em tempo.
Tomara que algum dia ele seja capaz de
entender e aceitar o amor — qualquer maneira de amor e de amar — e fazer aquilo
que Jesus Cristo pregava: “Amarás ao próximo como a ti mesmo”.
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