“E daí, você quer que eu faça o quê “. A pergunta
defensiva entra no verbete raso das falas dantescas daquele que deveria ser o
responsável pelo país. Ao assistir a declaração, meu maxilar titubeou,
ensaiando uma resposta que não veio de imediato. Dei de ombros, então,
acreditando que não seria válido gastar meu palavreado com quem pouco sabe do
peso e do poder da retórica na comunicação humana -algo que se estende a muitos
dos seus fãs. Porém, ao silenciar-me, percebi que estava incorrendo pelo mesmo
erro do “e daí” presidencial: banalizar o fim desumano de centenas de
conterrâneos do meu país mortos aos montes pelo coronavírus, mas também pela
bizarrice da presidência. Assim, após oxigenar minhas ideias, nessa atmosfera
rarefeita que se tornou o Brasil, disse a mim mesmo: não posso achar normal
alguém no papel que ele ocupa, em uma nação com o potencial como o nosso,
tratar a vida humana com desdém, e me calar diante disso, quando na verdade, o
meu papel, assim como o de muitos de nós diante disso, é de, no mínimo, se
indignar. Se você, contudo, ainda não enxerga o fosso do qual a postura
presidência tem sentenciado a nação, esse texto não te ajudará, mas, quiçá, uma
intervenção psiquiátrica.
Vamos aos fatos, o governo Bolsonaro tem implantado
uma necropolitica, ou seja, o Estado tem decidido quem vive ou morre na nação.
Os resistentes ao debate dirão que tal postura é antiga, atravessa governos e
se materializa na desigualdade social da qual marginaliza grupos sociais há
eras; levando-os à morte. Há verdade nisso, como também é verídico que nessas
governanças pregressas poucos foram os líderes que se colocaram tão abertamente
contra a integridade física dos seus cidadãos. Havia um cinismo instaurado na
política que, pelo menos, velava o desrespeito de seus integrantes com aqueles
que os elegeram. Bolsonaro não se dá a esse trabalho. Seu discurso não
economiza barbaridades e deixa claro o que interessa: o dinheiro, os
empresários e os religiosos políticos, todos ávidos pela verticalização do
isolamento social para engordar seus lucros. Nisso, precisamos aplaudi-lo,
Bolsonaro é leal aos seus ideais toscos e comprometido com quem financiou a
fábrica de Fake News que o empurrou ao poder. Logo, após alçar o platô mais
alto, alguns milhares de mortos por sua incompetência em legislar não significa
nada, para quem nada faz, nada fará e nada é.
Sobre essa questão, o presidente do Brasil segue à
risca condutas feitas à exaustão pelo Estado para exterminar quem não contribui
para a máquina financeira estatal, ou, impede que ela esteja nas mãos de
sempre. Na Segunda Guerra Mundial, o nazismo fez isso com seu processo de
eugenia ao limpar da Europa judeus, indesejados, sob o subterfúgio da fé,
quando na verdade o holocausto tem profundas conotações financeiras. 6 milhões
de vidas foram ceifadas com tal higienização. Por aqui, o país faz isso em
proporções similares, mas diluídas pela mídia policialesca: vai da Cracolândia
ao extermínio dos jovens negros, pobres e periféricos, avança pelas
penitenciárias, ganha terreno na ineficácia dos três poderes, ampara-se no
parasitismo religioso na política, afeta minorias como mulheres, gays e índios,
impacta na educação e, agora, desgasta ainda mais a saúde pública. A tática é a
mesma, porém, diferente dos alemães, Bolsonaro não tem um inimigo apenas, seu
foco é no coletivo que não coadunar com suas ordens tirânicas, inconsequentes e
genocidas. Na base do “quem manda aqui sou eu”, exonera-se Mandetta em
detrimento de um que às vistas parece adentrar na saúde, doente. Tudo por um
capricho de um caricato presidente que não aceita o fato de alguém ganhar mais
destaque que ele.
O cenário ficou ainda mais claustrofóbico, mas não
menos interessante, quando é antecedido de mais incoerências de seu governo. A
saída de Sérgio Moro, o pupilo mais querido que seu próprio benfeitor, sufocou
a câmera de gás que se tornou o governo Bolsonaro. A Direita, de verdade e
amarela, ficou literalmente vermelha, não de raiva, mas de confusão. Viu-se na
rede apoiadores da presidência tagarelando frases soltas, desconexas,
provavelmente aprendidas com seu ídolo, porém perdidas, jogadas ao vento da
rede onde prontamente foram vilipendiadas, com razão, por quem de fato já
alertava que a casa estava desmoronando. Eu cheguei a ver em júbilo um
bolsominio ferrenho incapaz de conjecturar qualquer argumento plausível para o
despautério daquele que ele elegeu. Era uma pandemia de Glória Pires na sua
icônica menção: “não sou capaz de opinar”. Na realidade, a capacidade cognitiva
de muitos deles não lhes permitia grandes avanços dialéticos, salvo aqueles
reproduzidos pelos clichês enunciados viralizados por Bolsonaro via Twitter.
Então, não restava outra escolha: de herói, moro se tornou comunista para
muitos. Contudo, outros tantos estão decepcionados com o presidente Messias,
personificado na figura salvadora responsável por resgatar o país da
iniquidade. Tontos, não apenas foram enganados, como não possuem artifícios
suficientes para colocar panos quentes na zona feita pelo seu iconoclasta.
Depois do litígio da aliança aparentemente “feliz
para sempre” entre Moro e Bolsonaro, nada é improvável na novela política cujo
enredo nem Walcyr Carrasco conseguiria elaborar com perfeição. Há muitos pontos
nevrálgicos: filhos envolvidos em crimes, milícias inseridas nas transações políticas,
máquina de Fake News, a morte inexplicável de Marielle Franco, a destruição da
Amazônia, nepotismo, e uma série de improbidades realizadas por quem defende o
slogan “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos”. Lamento pela mediocridade
de parcela da sociedade que se deixou contaminar pelo moralismo cego,
travestido de verde e amarelo, mas vê um rastro de sangue se construindo por
trás de uma política que fez de tudo para abolir o vermelho de seu arco-íris,
só não fez o mesmo com o pote de ouro. Muito pelo contrário, no panorama
pandêmico atual, a presidência negligencia as acusações sobre si e ou seus
atacando governos estaduais focados em salvar sua população de um iminente
colapso na saúde pública. Expert em fazer barulho, ele desfoca a atenção de si
para desferir barbaridades contra quem está fazendo um trabalho que deveria ser
do chefe de Estado. Funciona! Há quem concorde em abolir o isolamento social,
mesmo com os crescentes dados, embora subnotificados, do coronavírus no país.
Mas, não importa. A premissa é reter o mísero benefício para alimentar o
cidadão e fazê-lo voltar a produzir para os bolsos de Bolsonaro e de suas
alianças controversas.
Diante disso, quando ele responde a pergunta sobre
o avanço da morte de milhares de vidas com “e daí, quer que eu faça o que?”,
ele não está esperando uma resposta óbvia, porque, simplesmente, não há o que
pedir de alguém que nada fez de substancial para o país. Bolsonaro é uma
alegoria, um protótipo mal projetado pela direita, que se aproveitou da vilania
midiática contra Lula para introjetar a pior versão brasileira na presidência,
a qual vivia escondida sob a alcunha do perfil cortês vendido do país no
exterior. Assim, por mais que se formulem respostas claras para mais esse
vilipêndio governamental, estaremos direcionando esforços ao vazio, de alguém
que está no limbo de suas faculdades mentais, transitando do nada para o lugar
nenhum. Os dizeres precisam ser proferidos para a mídia, grande culpada pela
chegada tosca dele na presidência, assim como as redes sociais, através da
revelação das incongruências presidenciais, seus excessos, sua incapacidade,
para não apenas ridicularizá-lo, mas também os seus fies seguidores, muitos tão
truculentos quanto, que deverão ser culpabilizados por coadunar com àquele questionamento
e serão marcados na história como participes de um genocídio sem precedentes
oriundo de uma política fascista incansável. Aí, para os que sobreviverem,
perguntaremos, na esperança que a resposta seja negativista: e daí, valeu a
pena votar 17 na última eleição?!
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