25 janeiro 2013



Por mais que se tente exprimir uma áurea libertária, falar de sexo, na sua forma bruta, é ainda um dos grandes tabus da sociedade moderna. Cria-se em torno desse tema um invólucro impenetrável, salvo quando o sexo é discutido sobre o prisma do ato procriativo. É por isso que palavras como anal, oral, vaginal soam, para muitos, como algo imoral, já que o habitual é entrincheirar tais assuntos ao ambiente conjugal, geralmente entre aqueles que praticam o sexo considerado como “natural”. Não falo de amplificar as intimidades feitas em quatro paredes, mas de explorar essa questão antes de encapsulá-la em quartos de casas ou de motéis, para que as pessoas sejam guiadas pela naturalidade desse tema e não por meros discursos dogmáticos que só servem para anular nossos desejos mais humanos.


A polêmica começa quando o foco da questão toca na prática do sexo oral. A boca não pode servir para outros fins, além daqueles convencionais como cantar, comer, falar e articular palavras. Então, quando lhe é facultado o direito de subverter esse sistema, as pessoas criam uma atmosfera de ojeriza, repugnando aqueles que ousam usar a boca como instrumento sexual. Nesse sentido, o preconceito obscurece mais do que um possível recato de alguns indivíduos. A pressão exercida por uma educação, limitada quanto ao sexo, também impede que se conheçam outras formas sexuais prazerosas. Ou seja, se em casa, na escola, o sexo fosse tratado de forma plural, sem limitações, naturalizava-se essas e outras questões sobre ele e, possivelmente haveria menos desconhecimento e aversão a sua prática.



Logo, o sexo oral é sem dúvidas uma das sensações mais saborosas, no sentido lato da palavra, que um casal pode desfrutar nas preliminares. A boca, então, desnuda-se do convencional e percorre o corpo do outro, degustando-o, como se a língua se personificasse numa bússola em busca do elo perdido, de uma ilha onde tudo é permitido, inclusive sentir prazer; e não há nada de desonroso nisso, pelo contrário. Também não é pecaminoso querer dar prazer à pessoa de quem tanto gostamos, ou receber dela reciprocamente. Tanto o homem quanto a mulher devem e merecem se despir de qualquer bloqueio que os impeçam de se sentirem bem sexualmente. Nessas horas, a frase de Lulu Santos, “vamos nos permitir”, é a mais apropriada.

Limitado também é o debate em torno do sexo anal. Visto de forma pejorativa, ele é usado como ferramenta de ofensa, frequentemente em palavrões, para inferiorizar determinadas pessoas ou simplesmente desqualificá-las. Acontece que a sua prática é uma das mais prazerosas do ato sexual. Quem praticou, ou pratica, sabe muito bem disso, e quem ainda não o fez tem uma imensa vontade de violar essa parte do corpo, de conhecer a sensação que ela pode oferecer. Infelizmente, o preconceito ainda é o principal obstáculo para que o prazer nessa região se concretize. Isto porque alguns nutrem um certo nojo em torno do ânus, geralmente pautado no argumento de que ele é apenas uma via de saída. 

De fato, é incontestável essa afirmação biológica, mas para os prazeres humanos, os limites do corpo podem ser ultrapassados, ou, no mínimo adaptados, claro que com os devidos cuidados e com as pessoas certas. Devido a sua popularidade, o sexo anal tem sido praticado amplamente nas relações sexuais. Homens héteros, convictos da sua sexualidade, já se permitem acariciar nessa região, possibilitando conhecer sensações novas na cama. As mulheres também são adeptas, ora por curiosidade, ora para fantasiar junto a seu companheiro (a). Evidentemente que a prática maior ainda é dos homossexuais masculinos e, por isso, o preconceito acaba impedindo que outras pessoas desfrutem desse prazer. Portanto, a sexualidade de ninguém será maculada por causa de um toque, uma carícia ou qualquer coisa do gênero. Para se realizar sexualmente devemos abandonar a palavra preconceito e abraçar outra chamada entrega.


Entrega esta que não precisa necessariamente do outro para que se realizem as nossas fantasias. Às vezes, nós mesmos conseguimos nos realizar apenas conhecendo o próprio corpo, desvendando seus mistérios, suas zonas erógenas. Para isso, dar-se o nome de masturbação, a qual também não escapa do crivo dos moralistas e preservadores das “boas condutas sexuais”. Muito comum entre os homens, seja por uma questão biológica, seja por uma imposição machista-social, ela vem aos poucos se popularizando entre as mulheres. Sim, elas também se masturbam, não com a mesma popularidade, acredito, mas com a mesma intensidade de prazer, quiçá maior. Mesmo com toda a discriminação em torno delas sobre tal liberdade, seria ignorância da nossa parte coibir delas o direito de buscar o prazer através dessa prática. Masturbar-se é saudável para eles e para elas e ainda oferece, na dose certa, os alívios necessários para aqueles que não possuem parceiros (as) fixos (as).

O problema é que, nesse sentido, a masturbação, o sexo oral, anal e até mesmo o vaginal descompromissado, causam o repúdio de muitos conservadores, sobretudo daqueles ligados a segmentos religiosos Cristãos. É tradicional, então, perpetuar a ideia antagônica do sexo com fim meramente reprodutivo, como se o prazer em torno dele se condensasse a gerar uma nova vida. É inegável que fecundar um novo ser está entre os prazeres das relações sexuais, porém, não engloba a totalidade desse ato. As pessoas anseiam por sexo, necessitam dele e mesmo não sendo de importância vital, já que existem alguns que se intitulam como assexuados, praticá-lo é essencial, sobretudo para que o ser humano se sinta bem, e possa desempenhar o seu papel como animal de sua espécie, independente se irá ou não perpetuar uma nova vida. Essa visão reducionista nutrida por muitos é, infelizmente, resultado de uma cultura anacrônica, a qual insiste em reduzir o prazer humano na procriação, como se fôssemos seres autômatos.


                             
O que acontece, na verdade, é que o sexo é muito mais do que apenas um instrumento de fabricação de novas espécies humanas. As pessoas buscam na cópula as sensações que só o outro pode proporcionar. O cheiro, o beijo, o toque, a penetração, a boca naquilo e aquilo na boca. Labaredas humanas a queimar seus desejos, sem medos nem pudores. Pessoas livres, ou vivendo momentos de liberdade, instantes únicos onde às convenções, os dogmas e os princípios desocupam seus corpos e dão lugar a paixão, em todo o seu esplendor. E mesmo que muitos encarem isso de forma desonrosa, desavergonhada ou imoralizada, nada mais é do que o humano que habita em cada um de nós em busca de uma liberdade que é possível, basta apenas se desprender das garras do preconceito e se entregar ao sexo, este que é, indubitavelmente, um dos mais intensos prazeres das nossas vidas. 




Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim – plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito eis-me no patamar. E aos meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal no pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. É um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas.

Com grande esforço, acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonho-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem... Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves, acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.

Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens. Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu.

Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve no meu alcance, talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado, e tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas por ter ocupado um lugar que não era o seu. Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há o dono da casa e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.


“Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões da independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua. 
Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa, como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias. 
Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:
- Não há nada a fazer, Dona Colo. Este menino é mesmo um caso de poesia.”
(Fonte: ANDRADE, Carlos Drummond de. A incapacidade de ser verdadeiro. Em: Poesia e prosa. Rio de janeiro: Nova Aguilar, 1988.)




Como Eu Quero
Diz prá eu ficar muda
Faz cara de mistério
Tira essa bermuda
Que eu quero você sério...
Tramas do sucesso
Mundo particular
Solos de guitarra
Não vão me conquistar...
Uh! eu quero você
Como eu quero!
Uh! eu quero você
Como eu quero!...(x2)
O que você precisa
É de um retoque total
Vou transformar o seu rascunho
Em arte final...
Agora não tem jeito
Cê tá numa cilada
Cada um por si
Você por mim e mais nada...
Uh! eu quero você
Como eu quero!
Uh! eu quero você
Como eu quero!...
Longe do meu domínio
Cê vai de mal a pior
Vem que eu te ensino
Como ser bem melhor...
Longe do meu domínio
Cê vai de mal a pior
Vem que eu te ensino
Como ser bem melhor...
(Bem melhor!)...
Uh! eu quero você
Como eu quero!
Uh! eu quero você
Como eu quero!...(2x)
Uh! eu quero você
Como eu quero!
Uuuuuuuuuuhhh!
Uuuuuuuuuuhhh!...

 




De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Vinicius de Moraes


Beatriz Preciado

Os católicos, os judeus e muçulmanos integralistas, os copeístas* desinibidos, os psicanalistas edipianos, os socialistas naturalistas à la Jospin, os esquerdistas heteronormativos e o rebanho crescente dos modernos reacionários se juntaram para fazer do direito das crianças a ter pai e mãe o argumento central que justifica a limitação dos direitos dos homossexuais. Foi o dia deles de sair, um gigantesco “sair do armário” dos heterócratas. Eles defendem uma ideologia naturalista e religiosa que conhecemos muito bem. A sua hegemonia heterossexual sempre esteve baseada no direito de oprimir as minorias sexuais e de gênero. Eles têm o hábito de levantar o facão. Mas o que é problemático é que forçam as crianças a carregar esse facão patriarcal.

A criança que Frigide Barjot diz que protege não existe. Os defensores da infância e da família fazem um chamado à família política que eles mesmos constroem, e a uma criança que se considera de antemão heterossexual e submetida à norma de gênero. Uma criança que privam de qualquer forma de resistência, de qualquer possibilidade de usar seu corpo livre e coletivamente, usar seus órgãos e seus fluidos sexuais. Essa infância que eles afirmam proteger exige o terror, a opressão e a morte.

Frigide Barjot, a musa deles, aproveita que é impossível para uma criança se rebelar politicamente contra o discurso dos adultos: a criança é sempre um corpo ao qual não se reconhece o direito de governar. Permitam-me inventar, retrospectivamente, uma cena de enunciação, de dar um direito de réplica em nome da criança governada que eu fui, de defender outra “forma de governo” das crianças que não são como as outras.

Em algum momento fui a criança que Frigide Barjot se orgulha de proteger. E me revolto hoje em nome das crianças que esses discursos falaciosos esperam preservar. Quem defende o direito das crianças diferentes? Os direitos do menino que adora se vestir de rosa? Da menina que sonha em se casar com a sua melhor amiga? Os direitos da criança queer, bicha, sapatão, transexual ou transgênero? Quem defende o direito da criança a mudar de gênero, se for da vontade dela? Os direitos das crianças à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade? Quem defende os direitos da criança a crescer num mundo sem violência sexual ou de gênero?

O discurso onipresente de Frigide Barjot e dos protetores dos “direitos da criança a ter um pai e uma mãe” me faz lembrar a linguagem do catolicismo nacional da minha infância. Nasci na Espanha franquista, onde cresci com uma família heterossexual católica de direita. Uma família exemplar, para quem os copeístas poderiam erigir uma estátua como emblema da virtude moral. Tive um pai, e uma mãe, que cumpriram escrupulosamente a sua função de garantir domesticamente a ordem heterossexual.

No discurso francês atual contra o matrimônio e a Procriação com Acompanhamento Médico (PMA) / Inseminação Artificial para todos, reconheço as idéias e os argumentos do meu pai. Na intimidade do lar, ele usava um silogismo que evocava a natureza e a lei moral com a intenção de justificar a exclusão, a violência e inclusive o assassinato dos homossexuais, travestis e transexuais. Começava com “um homem deve ser um homem e uma mulher, uma mulher, como Deus quis”, continuava com “o que é natural é a união entre um homem e uma mulher, é por isso que os homossexuais são estéreis”, até a conclusão, implacável, “se o meu filho é homossexual prefiro matar ele”. E esse filho, era eu.

A criança a ser protegida da Frigide Barjot é o resultado de um dispositivo pedagógico terrível, o lugar onde se projetam todos os fantasmas, a justificativa que permite que o adulto naturalize a norma. A biopolítica** é vivípara e pedófila. A reprodução nacional depende disso. A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto. A polícia de gênero vigia o berço dos seres que estão por nascer, para transformá-los em crianças heterossexuais  A norma ronda os corpos meigos. Se você não é heterossexual, é a morte o que te espera. A polícia de gênero exige qualidades diferentes do menino e da menina. Dá forma aos corpos com o objetivo de desenhar órgãos sexuais complementares. Prepara a reprodução da norma, da escola até o Congresso, transformando isso numa questão industrial. A criança que a Frigide Barjot deseja proteger é a criatura de uma máquina despótica: um copeísta diminuído que faz campanha para a morte em nome da proteção da vida.

Lembro do dia em que, na minha escola de freiras, Irmãs Reconstituidoras do Sagrado Coração de Jesus, a madre Pilar nos pediu para desenhar a nossa futura família. Eu tinha sete anos. Desenhei eu casada com a minha melhor amiga, Marta, três crianças e vários cachorros e gatas. Eu tinha imaginado uma utopia sexual, na qual existia casamento para todos, adoção, PMA… Alguns dias depois a escola enviou uma carta à minha casa, aconselhando os meus pais a me levarem a um psiquiatra, afim de consertar o mais rápido possível o problema de identificação sexual. Depois dessa visita, vieram várias represálias. Na escola foi espalhado o rumor de que eu era lésbica. Uma manifestação de copeístas e frigide-barjotianos era organizada todos os dias na frente da minha sala de aula. “Sai daí sapatão, diziam, você vai ser violada para aprender a beijar como Deus ensinou.”  Eu tinha um pai e uma mãe, mas eles foram incapazes de me proteger da depressão, da exclusão, da violência.

O que o meu pai e minha mãe protegiam não eram os meus direitos de criança, mas as normas sexuais e de gênero que dolorosamente eles mesmos tinham internalizado, através de um sistema educativo e social que castigava todas as formas de dissidência com a ameaça, a intimidação, o castigo, e a morte. Eu tinha um pai e uma mãe, mas nenhum dos dois pôde proteger o meu direito à livre autodeterminação de gênero e sexualidade.

Eu fugi desse pai e dessa mãe que Frigide Barjot exige para mim, a minha sobrevivência dependia disso. Assim, ainda que tivesse um pai e uma mãe, a ideologia da diferença sexual e a heterossexualidade normativa roubaram eles de mim. O meu pai foi reduzido ao papel de representante repressivo da lei de gênero. A minha mãe foi privada de tudo o que podia ir além da sua função de útero, de reprodutora da norma sexual. A ideologia de Frigide Barjot (que estava ligada na época com o franquismo católico nacional) impediu àquela criança que eu era ter um pai e uma mãe que poderiam me amar e cuidar de mim.
Levou muito tempo, conflitos e cicatrizes superar essa violência. Quando o governo socialista do Zapatero propôs, em 2005, a lei do casamento homossexual na Espanha, meus pais, sempre católicos praticantes de direita, se manifestaram a favor dessa lei. Eles votaram a favor do partido socialista pela primeira vez na vida deles. Eles não se manifestaram só a favor da defesa dos meus direitos, mas também para reivindicar o próprio direito deles de serem pai e mãe de uma criança não-heterossexual. Votaram pelo direito à paternidade de todas as crianças, independentemente do gênero, sexo ou orientação sexual. A minha mãe me contou que teve que convencer o meu pai, mais reacionário. Ela me disse “nós também, nós também temos o direito de ser os seus pais”.

Os manifestantes do dia 13 de janeiro em Paris não defenderam o direito das crianças. Eles defendem o poder de educar os filhos dentro da norma sexual e de gênero, como princípios heterossexuais. Eles desfilam para conservar o direito de discriminar, castigar e corrigir qualquer forma de dissidência ou desvio, mas também para lembrar aos pais dos filhos não-heterossexuais que o seu dever é ter vergonha deles, rejeitá-los e corregi-los. Nós defendemos o direito das crianças a não serem educadas exclusivamente como força de trabalho e de reprodução. Defendemos o direito das crianças e adolescentes a não serem considerados futuros produtores de esperma e futuros úteros. Defendemos o direito das crianças e dos adolescentes a serem subjetividades políticas que não se reduzem à identidade de gênero, sexo ou raça.

* Seguidor de Jean-François Copé, político francês.
** Conceito de Michel Foucault que designa um poder exercido sobre o corpo e as populações.


Beatriz Preciado é filósofa, diretora do Programa de Estudos Independentes do Museu d’Art Contemporani de Barcelona (MACBA). Autora dos livros El manifiesto contra-sexual (2002), Testo Yonqui (2008) e Pornotopía. Arquitectura y sexualidad en “Playboy” durante la Guerra Fría(2010).

Qui défend l’enfant queer?” foi originalmente publicado em francês em:http://www.liberation.fr/societe/2013/01/14/qui-defend-l-enfant-queer_873947


Tradução: Fernanda Nogueira




23 janeiro 2013



Eu não sou mais como antes. Na verdade ninguém é. O tempo se encarrega de nos mudar, mas não nos prepara para tal mudança. Lembro-me vagamente da minha tenra idade. Recordo muito pouco do fulgor da minha maioridade e esqueço constantemente da minha idade atual. Esse desconcerto indica alguma coisa, porque eu sou velho...

Meu corpo costumava ser ágil, com movimentos rápidos e precisos. Agora ele anda devagar, calculado, cauteloso e impreciso, contando sempre com a participação alheia para ajudá-lo e auxiliá-lo a fazer até as mais íntimas necessidades humanas. Preciso de amparo, porque eu sou velho...

Minha visão era tão aguçada como a das aves de rapina. Conseguia ver a minha presa a léguas de distância, geralmente moças faceiras a passear pelas praças no fim do dia, enfeitiçando homens astutos como eu com seu charme e simpatia. Porém, já não consigo enxergar grandes nem pequenas presas. O rosto dos meus parentes e amigos também me parece estranho, deformado, como se suas faces tivessem perdido as formas originais. Até as minhas vistas não são mais como eram, porque eu sou velho...

Minha voz também está diferente. Antes, arriscava cantarolar algumas liras. Às vezes Jobim, outras Vinícius, mas sempre o que havia de melhor no meu Brasil. Infelizmente, ela também me deixou e em seu lugar ficou essa voz trêmula, como se fossem trilhos descarrilados, e que só me serve hoje para articular palavras, poucas e confusas palavras. Perdi o direito de me expressar, porque eu sou velho...

Meus cabelos me envaideciam de orgulho. Cheios, lisos e luminosos, eles adornavam minha cabeça e fortaleciam o Sansão que havia em mim. Hoje no seu lugar restou uma límpida careca que de tão lisa é capaz de reluzir o azul do céu. Sinto falta da minha cabeleira robusta, e sem ela fui perdendo as poucas faíscas de vaidade que me restavam. Sem capilar, acabei enfraquecendo, porque eu sou velho...

Minha pele viçosa esbanjava sensualidade. Meus músculos, de tão simétricos que eram, poderiam ser capazes de matar de inveja os modelos parnasianos. Homens se inspiravam neles, mulheres sonhavam em tocá-los, possuí-los. Sempre dizia que Caetano Veloso se inspirou em mim para compor “Menino do Rio”. Não era pretensão de minha parte, mas orgulho da virilidade do meu corpo, mas agora tudo desapareceu e no lugar deles ficou essa pele flácida, dominada pela gravidade e enfeitada de manchas e rugas, porque eu sou velho...

Meus ossos doem, meus dentes não mastigam como antes, dos poucos que restaram. Tenho problemas cardíacos e pulmonares herdados de uma má alimentação, cigarros e bebidas, consumidos deliberadamente durante anos a fil. Tudo isso tem sentenciado a minha existência a implacável morte. Ela que tarda, mas não falha, e no meu caso não haverá margem de erro, porque eu sou velho...

Minha vida, mesmo estando no fim, não foi ruim. Vi lindas coisas. Conheci pessoas queridas que passaram rápidas ou de forma marcante pela minha história. Tenho uma família linda que sempre esteve comigo e nunca pensou em me abandonar. Tive as paixões que quis. Amei e fui amado, quis e fui querido, realizei e fui realizado e posso desfrutar de tudo isso com uma nostálgica alegria, porque eu sou velho...

Minha experiência de vida me garantiu esse presente. O de olhar para trás sem arrependimentos, amarguras ou tristezas. Nada foi errado, nada foi em vão. Tudo tinha que ser como foi e por isso estou aqui para contar tudo, sem vergonha e sem medo. De todas as coisas que vivenciei posso hoje aconselhar os mais novos, mostrar-lhes os melhores caminhos e servir de modelo para eles, porque eu sou velho...

Meus sentidos também mudaram. Mesmo com as deficiências da idade, sou capaz de contemplar coisas bem simples como o dia, o doce orvalho da manhã, o voo dos pássaros. Sentir prazer com o vento no rosto, com a salinidade refrescante da brisa do mar. Tudo isso me comove, chama a minha atenção e me faz bem, mais tão bem que eu mal consigo acreditar que não fui capaz de perceber isso antes, mas isso é porque eu sou velho...

Minha pressa de antes deu lugar ao delicado devagar de hoje. Não corro, caminho. Não avanço, espero. Não ultrapasso, passo. A lentidão do meu caminhar me deixa ver tudo, fazer, captar cada sutileza, cada feição, mesmo que a minha visão tente aos poucos me abandonar. Deixei de ser a lebre para virar a tartaruga. E, com isso, deixei de perder e comecei a ganhar, porque eu sou velho...

Minha velhice me ensinou que o tempo é capaz de tirar muitas coisas de nós: saúde, juventude e até mesmo a vida. Porém, os nossos sonhos permanecem, a vontade de viver intensamente resiste, e o desejo de amar continua mais vivo do que nunca. Posso não ter mais o vigor dos meus vinte e poucos anos, mas continuo com a mesma garra de antes. A minha necessidade de fazer a vida valer a pena ser vivida só aumentou e mesmo que a morte encontre a minha porta, neste dia eu direi a ela que pode esperar um pouco mais, até que meu recado seja plenamente dado, porque eu sou velho...mas ainda estou vivo.


Esse era um dos cartazes, empunhados com orgulho hétero, na manifestação gigante de Paris no dia 13: Un enfant = un papa + une maman. Centenas de milhares de franceses saíram do armário para dizer “não” ao projeto de lei do governo socialista de François Hollande de “mariage pour tous” (casamento para todos). No país da “liberté, égalité et fraternité”, os homossexuais ainda não têm direito ao casamento civil – e avós, papais, mamães, jovens e criancinhas defenderam nas ruas uma versão idealizada e romântica da família contra “a ameaça gay”.

A crise econômica e o desemprego atingem seriamente a Europa, mas o que leva uma imensa multidão a marchar no inverno parisiense não é a exigência de “trabalho para todos” – eles só querem impedir que homossexuais casem nos cartórios. Segundo as autoridades, foram 340 mil manifestantes. Segundo os organizadores, de 800 mil a 1 milhão. A disparidade dos números é um indício da irracionalidade do debate. La France n’est pas un pays sérieux.

Por que esse pânico, que beira a histeria? O que muda realmente na vida de um casal heterossexual se outro casal, homossexual, decide transformar sua união estável em casamento? Qual o resultado pernicioso dessa lei? Que significado teria, além de celebrar a igualdade de direitos civis numa democracia republicana laica, e não numa teocracia?

O que está em jogo não é o ritual da cerimônia, nem os papéis assinados ou os direitos à pensão ou herança. O que apavora os homofóbicos costuma vir logo depois do casamento: os filhos, a família. Os héteros mais fanáticos surtam só de pensar que um casal gay, de homens ou mulheres, tenha direito à paternidade ou à maternidade. Aí é demais. Contraria a natureza. O que será desses meninos e meninas, meu Deus?

Como se tivéssemos produzido gerações de crianças e adultos “normais”, livres de neuroses e traumas. Como se a heterossexualidade de pai e mãe assegurasse um vínculo afetivo sadio, um ambiente familiar exemplar. O argumento de que gays, por gostarem de pessoas do mesmo sexo, criarão filhos infelizes ou desajustados é de uma prepotência difícil de engolir.

“É natural o receio de que essas crianças sofram alguma discriminação na escola”, afirma a psicanalista e terapeuta familiar Junia de Vilhena. “Atendo no consultório um casal de mães homossexuais que se preocupam com a filha de 10 anos na escola. Mas a menina está muito bem integrada num meio liberal. As amiguinhas não questionam. Normalmente, quando existe preconceito, vem dos pais dos alunos, mesmo nas escolas mais avançadas. Sou esperançosa. A sociedade aos poucos aceitará. Pior e mais cruel é o preconceito contra crianças gordas. Elas enfrentam barbaridades.”

Mesmo nos países com leis progressistas, como o Brasil, desconfio que a maioria silenciosa da população seja contra o direito de um casal gay de educar uma criança como seu filho. Não importa o método: adoção, inseminação, fertilização in vitro ou acordos domésticos com amigos ou amigas. Há uma turma que considera a criança mais bem assistida num orfanato do que na casa de pais ou mães homossexuais.

“Dificilmente, hoje, encontramos essa família idealizada de um filho, um papai e uma mamãe, uma visão ligada à ideia do amor romântico e eterno”, diz Junia. A família de núcleo patriarcal é hoje minoria. Crianças vivem só com a mãe solteira, separada e provedora. Ou com padrastos, madrastas e meio-irmãos. “A classe alta não está nem aí para as regras. A classe baixa está fora desse sistema – em vez de sonhar com o casamento ideal, foca na sobrevivência. Quantos pais nem sequer reconhecem seus filhos. Ou têm amantes. Essa família arrumadinha e feliz nunca existiu, mas ainda é uma aspiração da classe média. Muitos homens e mulheres ficam juntos e infelizes até morrer.”

Estranho pensar que muitas de nós lutaram pelo direito de não casar de papel passado nem na igreja. Tive dois filhos, de dois homens, jamais casei oficialmente por ser contra associar o amor a qualquer contrato ou rito perante um juiz ou um padre. Há 40 anos, num mundo ainda com utopias, era uma transgressão. Formei minha família com erros e acertos.

Ser pai ou mãe, mais que uma possibilidade biológica, é um aprendizado. “Podemos encarar a família como uma prisão ou um lugar de abrigo. Um espaço de trocas ou de isolamento coletivo. Um agente de mudanças ou um dispositivo de alienação. De qual família estamos falando?”, diz Junia.

Alguns heterossexuais convictos alegam que gays só formam um casal, e não uma família. Um homem e uma mulher sem filhos tampouco são uma família. Mas conviver com filhos biológicos ou adotados, exercer a paternidade e a maternidade, deveria ser, sim, um direito de todos. O mundo caminha nessa direção. É irreversível. Nenhuma “parada hétero” reverterá esse processo.

Visto na: Época


Não é preciso ser moderno para perceber que a nossa vida comporta amores simultâneos. Podem ser paixões dilacerantes e sombrias, como nos filmes, ou pode ser algo mais suave – um sentimento de atração que, mesmo não consumado, faz da vida um lugar melhor para os envolvidos. 

Todos conhecem esse tipo de sentimento. 

Há gente que nós temos vontade de ver todos os dias, cuja presença nos deixa naturalmente mais alegres. Temos prazer enorme em abraçar gente assim e a conversa com elas é mais íntima, mais fácil, mais interessante. Uma alma destituída de malícia diria que isso é amizade, mas eu tenho certeza que se trata de uma forma de erotismo – sem posse, sem dor, sem pressa, mas é desejo que resiste ao tempo. Essa não é uma forma de definir o amor? 

A principal qualidade dessa sensação é ser plural. 

Não nos sentimos enamorados de todo mundo, mas tampouco temos esse tipo de apego por uma única pessoa. São várias. Pode ser a ex-namorada do colégio, a amiga da faculdade, a prima. Pode ser a garota da livraria ou a moça do bandejão que virou sua amiga. A lista não será grande, mas é uma pena, porque se trata de um sentimento bom. Não é gostoso ficar feliz quando toca o telefone? 

Você não sai transando com essas pessoas, embora pudesse fazê-lo. Você não sofre por essas pessoas, embora possa ter acontecido. Essa relação navega entre o encantamento e a amizade, tem um pouco das duas, e fica a centímetros de se tornar inteiramente uma delas. Movemo-nos entre sutilezas.

O que você faz com alguém que ama difusamente é ter momentos de troca e carinho, que carregam uma ponta secreta de expectativa. Se um dia você bebe demais e diz sinceridades comovidas, ela pode rir, beijar você ou ficar brava e mandar que se comporte – mas tudo seguirá como antes. Nessa relação há espaço para ser você mesmo. 

Os amores difusos fazem parte da esfera de sentimentos que começa na pessoa que você escolheu e vai se expandindo num círculo para incluir outras pessoas de quem você precisa. Família, amigos, amores. Nenhum casal é uma ilha. Ao redor do compromisso que mantém duas pessoas ligadas há uma vasta teia de ligações, com diferentes graus de densidade, que vinculam o casal ao mundo. Os amores difusos são uma parte especialmente delicada dessa teia. 

Isso nada tem a ver com relações abertas, porém. 

Admitir a existência de carinho e desejo fora da sua relação amorosa é apenas uma manifestação de sanidade. Tentar viver todas essas sensações é uma besteira. Criar arranjos matrimoniais que acomodem esses múltiplos sentimentos é ainda mais fútil. A melhor solução para quem deseja correr atrás de todos os seus desejos não é um namoro ou um casamento aberto. É estar sozinho. Assim se conquista total liberdade, sem culpas ou constrangimentos. 

Ando convencido que a nossa vida afetiva tem uma espécie de centro e que nele só cabe uma pessoa de cada vez. As nossas grandes aventura emocionais, a nossa verdadeira história íntima, são escritas ao redor dessa exclusividade. Pode ser uma paixão que não deu certo ou um casamento fabuloso de 20 anos, mas continua sendo uma narrativa entre duas pessoas. O resto é tumulto.

Os amores difusos pertencem à outra esfera, e por isso não colidem.

Eles são menos viscerais, mais leves, nos lembram que podemos experimentar diferentes alegrias na mesma existência. Sugerem que o grande amor romântico – esse que nos devora vivos, ou nos envolve suave como um lençol de linho – é apenas uma das experiências do afeto. Há outras, essenciais. Elas preenchem a existência com outra espécie de luz, igualmente necessária para mostrar nosso caminho.

Visto na: Época

Tema: Viver em rede no século XXI: os limites entre o público e o privado.


Viver em rede no século XXI: os limites entre o público e o privado.

Os diversos avanços tecnológicos ocorridos atualmente facilitaram o aumento do uso da internet pelos brasileiros. O acesso à rede passou a ter preços mais acessíveis e a ser utilizado em plataformas portáteis, como em celulares. Isso fez com que as pessoas usassem a internet diariamente, criando nelas uma necessidade de compartilhar um alto número de informações pessoais.

A criação dos perfis individuais nas redes sociais fez com que diversos internautas, algumas vezes de forma inconsciente, mostrassem detalhes de suas vidas, tentando causar uma melhor impressão em seus contatos. As pessoas costumam publicar textos e fotografias que destaquem características que elas gostariam de mostrar. Com isso, informações de locais frequentados ou aquisições recentes, por exemplo, passaram a ser divulgadas publicamente.

O alto número de dados pessoais fornecidos pelos internautas em suas contas, como endereços, telefones e nomes de familiares, facilita a ação de criminosos na falsificação de documentos, no acesso a contas bancárias e em sequestros. Além disso, informações sobre lugares frequentados em tempo real também podem ser prejudiciais ao usuário, que pode ser abordado propositalmente nesses ambientes por pessoas perigosas.

A internet e as redes sociais podem trazer diversos benefícios à população, se forem utilizados de forma sensata. O internauta deve selecionar os dados que podem trazer consequências negativas caso sejam divulgados, evitando publicá-los, e controlar a exposição de sua vida pessoal. As postagens de determinadas situações não devem ser mais importantes que as vivenciar.


Aluna: Mª Laura Lima.
Professor: Diogo Didier



Estamos no ano de 2070. Acabo de completar os 50, mas a minha aparência é de alguém de 85. Tenho sérios problemas renais porque bebo muito pouca água. Creio que me resta pouco tempo. Hoje sou uma das pessoas mais idosas nesta sociedade. Recordo quando tinha cinco anos. Tudo era muito diferente. Havia muitas árvores nos parques, as casas tinham bonitos jardins e eu podia desfrutar de um banho de chuveiro por cerca de uma hora.

Agora usamos toalhas em azeite mineral para limpar a pele. Antes todas as mulheres mostravam a sua formosa cabeleira. Agora devemos rapar a cabeça para a manter limpa sem água. Antes o meu pai lavava o carro com a água que saia de uma mangueira. Hoje os meninos não acreditam que a água se utilizava dessa forma.

Recordo que havia muitos anúncios que diziam CUIDA DA ÁGUA, só que ninguém lhes ligava; pensávamos que a água jamais se podia terminar. Agora, todos os rios, barragens, lagoas e mantos aquíferos estão irreversivelmente contaminados ou esgotados. Antes a quantidade de água indicada como  ideal para beber era oito copos por dia por pessoa adulta. Hoje só posso beber meio copo. A roupa é descartável, o que aumenta grandemente a quantidade de lixo; tivemos que voltar a usar poços sépticos (fossas) como no século passado porque as redes de esgotos não se usam por falta de água.

A aparência da população é horrorosa; corpos desfalecidos, enrugados pela desidratação, cheios de chagas na pele pelos raios ultravioletas que já não têm a capa de ozono que os filtrava na atmosfera. Imensos desertos constituem a paisagem que nos rodeia por todos os lados. As infecções gastrointestinais, enfermidades da pele e das vias urinárias são as principais causas de morte. A indústria está paralisada e o desemprego é dramático. As fábricas dessalinizadoras são a principal fonte de emprego e pagam-te com água potável em vez de salário. Os assaltos por um bidão de água são comuns nas ruas desertas. A comida é 80% sintética. Pela ressiquidade da pele, uma jovem de 20 anos está como se tivesse 40.

Os cientistas investigam, mas não há solução possível. Não se pode fabricar água, o oxigénio também está degradado por falta de árvores, o que diminui o coeficiente intelectual das novas gerações. Alterou-se a morfologia dos espermatozoides de muitos indivíduos e, como consequência, há muitos meninos com insuficiências, mutações e deformações. O governo até nos cobra pelo ar que respiramos: 137m3 por dia por habitante adulto. As pessoas que não podem pagar são retiradas das “zonas ventiladas”, que estão dotadas de gigantescos pulmões mecânicos que funcionam com energia solar, não são de boa qualidade, mas pode-se respirar.

A idade média é de 35 anos. Em alguns países ficaram manchas de vegetação com o seu respectivo rio, que é fortemente vigiado pelo exército; a água tornou-se um tesouro muito cobiçado, mais que o ouro ou os diamantes. Aqui em troca, não há arvores porque quase nunca chove, e quando chega a registar-se precipitação, é chuva ácida; as estações do ano têm sido severamente transformadas pelas provas atómicas e indústrias contaminantes do século XX. Advertia-se que havia que cuidar o meio ambiente e ninguém fez caso.

Quando a minha filha me pede que lhe fale de quando era jovem, descrevo o bonito que eram os bosques, falo-lhe da chuva, das flores, do agradável que era tomar banho e poder pescar nos rios e barragens, beber toda a água que quisesse, o saudável que era a gente. Ela pergunta-me: “Papá! Porque se acabou a água?” Então sinto um nó na garganta; não posso deixar de sentir-me culpado porque pertenço à geração que terminou destruindo o meio ambiente ou simplesmente não tomámos em conta tantos avisos. Agora os nossos filhos pagam um preço alto e sinceramente creio que a vida na Terra já não será possível dentro de muito pouco porque a destruição do meio ambiente chegou a um ponto irreversível.

Como gostaria de voltar atrás e fazer com que toda a humanidade compreendesse isto quando ainda podíamos fazer algo para salvar o nosso planeta!

Fonte: Extraído da revista biográfica “ Crónicas de los Tiempos” de Abril de 2002



Apesar de uma abertura das telenovelas a novas e produtivas representações da homossexualidade, a regra são tramas e conteúdos que recorrem aos estereótipos de homossexuais como forma de reafirmar e reproduzir as normas que sustentam a superioridade dos heterossexuais, bem como seus privilégios.

Mesmo sendo um dos produtos culturais mais consumidos (certamente é a forma de ficção mais consumida) num país com índices ainda alarmantes de analfabetismo e analfabetismo funcional; onde a educação formal de qualidade ainda é uma meta a ser alcançada; em que a ampla maioria da população não tem acesso às artes vivas nem a exposições de artes plásticas; e com poucos leitores de livros mesmo entre aqueles que estão no – ou concluíram o – ensino superior, a telenovela ainda é alvo do desprezo de parte expressiva da intelectualidade brasileira de esquerda (e, por extensão, alvo do desprezo ou do desinteresse de muitos políticos e lideranças de movimentos sociais orientados ou influenciados por essa parte da intelectualidade de esquerda). Alheios – voluntariamente ou não – às novas teorias sobre a comunicação de massa e ao conhecimento produzido pelos chamados estudos culturais, esses muitos políticos e lideranças acabam por descartar algo que é essencial ao entendimento da mentalidade do povo brasileiro e seus desdobramentos políticos e à disputa pela (re)construção dessa mentalidade: a telenovela. Esse desprezo tem, é preciso dizer, uma genealogia: ele é fruto da crítica marxista que os teóricos da Escola de Frankfurt – mais notadamente Adorno e Horkheimer – fizeram ao que chamaram de indústria cultural, ou seja, a conversão da cultura em mercadoria e o processo de subordinação da consciência à racionalidade capitalista, impulsionados sobretudo pelo advento do
s meios de comunicação de massa (o rádio, o cinema e a TV).

Mas, a despeito desse desprezo em relação à telenovela, é crescente o número de estudiosos e ativistas políticos interessados em seu papel na (re)construção da mentalidade do povo brasileiro e em seus impactos nas relações socioculturais; entre esses ativistas e estudiosos, eu e outros integrantes dos movimentos LGBTs nos incluímos. Nós entendemos que a telenovela faz parte das práticas de significação e dos sistemas simbólicos por meio dos quais os sentidos são produzidos e os sujeitos são posicionados, ou melhor, entendemos que a telenovela é representaçãoe, como toda representação, ela não apenas reproduza realidade, mas também a produz, isto é,desencadeia (re)ações entre os telespectadores. Por isso, não a descartamos.

A telenovela foi e ainda é meio de reprodução e de transmissão de preconceitos sociais de todos os tipos: de raça ou cor ou de origem étnica ou geográfica (racismo); de gênero (machismo); e também o preconceito relacionado à orientação sexual. Como bem explica o doutor em Filosofia e teórico da comunicação Wilson Gomes, o preconceito social é de natureza cognitiva: “Tem a ver com certezas compartilhadas por parte de grupos sociais; tem a ver com certezas às quais se adere irracionalmente, portanto, sem exame dos pressupostos e sem fundamentação racional; tem a ver com juízos – em geral negativos – sobre a natureza de ‘classes’ de pessoas; tem a ver com aplicar esses juízos a priori sobre classes de pessoas para decidir, sem as conhecer individualmente, o que são as pessoas encaixadas naquela classe, os seus comportamentos esperados, o seu caráter e o sentimento que elas nos merecem”. É seguro dizer, portanto, que boa parte das “certezas” que a ampla maioria das pessoas (incluindo aí muitos homossexuais) partilha acerca da homossexualidade, bem como seus “juízos negativos” sobre gays e lésbicas, vem da telenovela (e, por extensão, dos programas humorísticos e séries de TV). Aliás, o fato de boa parte das “certezas” e dos “juízos” acerca da homossexualidade vir da telenovela faz dela igualmente um meio importantíssimo na desconstrução ou erradicação dessas mesmas “certezas” e “juízos”, ou seja, faz da telenovela um meio privilegiado no enfrentamento do preconceito social anti-homossexual e seus estigmas.

Há quem possa dizer que representações de telenovelas são “abstrações” e, como tais, são inócuas. Não é a verdade. As representações são a matéria-prima do pensamento. E o pensamento é a ponte do corpo para o ato (no mínimo para o ato linguístico que é o insulto ou a injúria), para a ação. O preconceito social anti-homossexual e os discursos de ódio contra os homossexuais, bem como os crimes de ódio de que estes são vítimas, são complementares. A essa articulação e operação em conjunto damos o nome de homofobia (aqui esta palavra designa também os preconceitos, discursos e ações contra travestis e transexuais que são motivados menos pela orientação sexual e mais pela identidade de gênero). Milhões de lésbicas, gays, travestis e transexuais são, diariamente, vítimas da homofobia, que se manifesta de diversas maneiras: da piada sobre “bicha” contada nos corredores das empresas em intervalos de almoço ou para o cafezinho até sua manifestação mais grave, que é o assassinato com requintes de crueldade, passando pelos apelidos grosseiros e as humilhações em sala de aula ou em casa e pelas comparações com personagens estereotipados das telenovelas e dos programas humorísticos.

A primeira telenovela da Rede Globo (e eu me refiro mais a essa emissora não só por ser ela a campeã de audiência, mas por ter se especializado na produção de telenovelas, convertendo-as em carro-chefe de sua programação e em seu principal produto de exportação) a apresentar um personagem homossexual foi Orebu, de Bráulio Pedroso, exibida de 4 de novembro de 1974 a 11 de maio de 1975. Nela, Conrad Mahler (Ziembinski) tinha uma relação com o michê Cauê (Buza Ferraz) e assassinava a mulher por quem o namorado se apaixonara. Percebam que essa trama associa os homossexuais com a passionalidade extrema, o desequilíbrio psíquico e a criminalidade. Mais de dez anos depois de O rebu, outra novela da Globo – Roda de fogo, de Lauro César Muniz – reproduzia o mesmo estereótipo: Mário Liberato (Cecil Thiré) nutria uma paixão doentia por seu rival Renato Vilar (Tarcísio Meira) e, numa cena surpreendente para os dias de hoje, em que a representação do “beijo gay” não acontece porque a emissora alega que a audiência não estaria “preparada” para ela, chegou a se esfregar na cama de Renato e a beijar loucamente seu travesseiro, num surto de obsessão, misto de ódio e amor. De lá para cá, a representação dos homossexuais em telenovelas variou para o estereótipo da “bicha louca” ou da “sapatão” (aquele/aquela que deve fazer rir ou de quem se deve rir) e, mais recentemente, para personagens mais positivos e complexos. Essa abertura da telenovela para representações positivas (ou no mínimo produtivas) não é uma simples concessão dos autores e da emissora em que trabalham, mas resultado de uma batalha cultural que inclui as críticas e pressões políticas dos movimentos LGBTs, a conversão da comunidade LGBT em nicho de mercado consumidor, as reações da audiência medidas em pesquisas de opinião e/ou em grupos de discussões, a emergência das tecnologias da comunicação e da informação, em especial a internet, e os enfrentamentos dentro da própria emissora entre artistas e executivos – o que deve nos obrigar a fugir de maniqueísmos ou simplificações grosseiras quando formos tratar do tema.

Por outro lado, não existe uma forma “correta” de representar “o homossexual”. Primeiro porque existem homossexuais (assim, no plural) e, desse modo, uma diversidade de práticas e comportamentos homossexuais. O que acontecia até pouco tempo é que a telenovela se fixava apenas em determinadas características e comportamentos e os cristalizava, fazendo parecer que só existiam essas características e comportamentos. É isso que é o estereótipo: a redução da diversidade a um modelo cristalizado e imutável. Nos últimos anos, os estereótipos têm dado lugar a representações mais complexas, mas também – e infelizmente – à invisibilidade de pessoas LGBTs. Ante a perspectiva de uma nova batalha cultural em torno da representação da homossexualidade – batalha cada vez mais inevitável em razão do crescimento do número de evangélicos, coroado com a ocupação de muitas cadeiras nas casas legislativas por políticos forjados em Igrejas fundamentalistas neopentecostais contrárias à existência da homossexualidade, e da emergência da “classe C” nos doze anos da era Lula – e ante a perspectiva de enfrentar essas forças em oposição, a Globo tem optado algumas vezes por não representar os homossexuais em telenovelas, ou seja, optado por invisibilizá-los.

De forma geral, tem prevalecido, nos últimos anos, a abertura das telenovelas para novas e produtivas representações da comunidade LGBT. Os principais autores da Globo têm sido ousados em criar personagens que, de forma tímida ou não, representam a diversidade dos comportamentos homossexuais. Digo “de forma tímida ou não” porque já houve representações muito mais ousadas antes de a batalha cultural em torno delas se acirrar, como, por exemplo, a que aconteceu em A próxima vítima, de Sílvio de Abreu, em que os adolescentes bonitos, honestos, inteligentes e nada afetados Sandrinho (André Gonçalves) e Jéferson (Lui Mendes) se apaixonaram e foram aceitos pelas famílias; sem falar que um deles era negro e o outro, branco. O casal caiu nas graças da audiência que, anos depois, rejeitaria o casal de lésbicas balzaquianas e bem-sucedidas interpretadas por Christiane Torloni e Sílvia Pfeiffer em Torre de Babel. Aguinaldo Silva também ousou bastante ao criar uma história de amor entre a médica Leonora (Milla Christie), que era competente, honesta e bonita, e a patricinha Jennifer (Bárbara Borges), quase a mocinha da novela Senhora do destino. De todos os autores da Globo, Aguinaldo Silva é aquele que seguramente mais representou homossexuais em suas telenovelas, talvez por ter sido, em sua juventude, ativista do então incipiente movimento homossexual no Brasil. Nessas representações, Silva jamais cedeu aos estereótipos pura e simplesmente: quando recorreu a eles, rasurou-os todos (como nos casos de Uálber, de Suave veneno, e, mais recentemente, de Crô, de Fina estampa, ambos afeminados e engraçados, mas dotados de virtudes que fariam deles os heróis das tramas não fossem os poucos vícios). Silva não quer saber quão madura está a comunidade LGBT para lidar com suas próprias contradições: ele simplesmente as desnuda por meio de personagens que despertam sentimentos ambíguos na audiência que ainda não se livrou do preconceito social anti-homossexual. Outro autor com muitas representações positivas da homossexualidade em suas telenovelas é Gilberto Braga. Embora apele mais à inteligência do telespectador para que este perceba a homossexualidade de seus personagens (um flerte não com os estereótipos, mas com a invisibilidade, também com o propósito de rasurá-la), Braga escreveu, com Ricardo Linhares, a novela Insensato coração, em que não só os personagens homossexuais eram facilmente identificados como tais mesmo sem qualquer vestígio de estereótipos, mas a própria homofobia era um dos temas principais da trama. Braga e Linhares representaram diferentes formas de ser homossexual e os conflitos no interior da própria comunidade LGBT por conta das diferentes identificações (de classe social; étnicas; culturais e religiosas) que interpelam gays e lésbicas. No que diz respeito à representação de homossexuais mais próxima da realidade dos fatos e a serviços prestados à cidadania LGBT, Insensato coração é a melhor novela já exibida pela Globo. Foi ela que sustentou, na esfera pública, a denúncia dos crimes de ódio contra homossexuais enquanto a presidente Dilma enterrava o projeto Escola sem Homofobia por pressão da bancada evangélica no Congresso Nacional e sob o silêncio constrangedor de lideranças dos movimentos LGBTs cooptadas pelo governo do PT.

Hegemonia heteronormativa

Contudo, apesar dessa abertura das telenovelas a novas e produtivas representações da homossexualidade, a regra são tramas e conteúdos que recorrem aos estereótipos de homossexuais como forma de reafirmar e reproduzir as normas que sustentam a superioridade dos heterossexuais, bem como seus privilégios – o que faz delas motores importantes da heteronormatividadeno Brasil. Esta aponta/constrói, como “natural”, a sexualidade para fins procriativos e faz uma correspondência entre sexo biológico e papel de gênero. Qualquer menino que escape, ainda que cedo, do papel de gênero que, segundo a perspectiva heteronormativa, corresponde ao sexo que a natureza lhe deu é imediatamente alvo de insulto. Este se apresenta antes e primeiramente como performance linguística (a língua é performativa: produz sentimentos e ações, afeta os corpos e as relações). Lacan diz que o inconsciente é produto das inscrições profundas da língua em nós, ou seja, as sensações de prazer e desprazer produzidas pela língua desde a mais tenra infância estruturam nosso inconsciente, logo, nossa relação mais íntima conosco além de nossa relação com o mundo. É a língua o primeiro veículo de reprodução e transmissão do preconceito social anti-homossexual por meio do insulto. Mas o insulto se apresenta também na forma da caricatura e dos estereótipos reproduzidos na telenovela, ou seja, ele se desdobra em outros sistemas de representações, como o audiovisual, que inclui o cinema, a televisão e a internet.

Os efeitos da heteronormatividade e do insulto anti-homossexual em LGBTs são a homofobia internalizada e uma inveja estrutural do lugar privilegiado e “superior” que o heterossexual (e em especial o homem heterossexual) ocupa na sociedade. Daí a vergonha de si, a necessidade de camuflar trejeitos, de se passar por hétero, viril, a excessiva polarização ativo × passivo; a aversão e o ódio aos afeminados, travestis e transexuais e a excessiva valorização dos que “são mas não parecem”; a prática clandestina e culpada da homossexualidade, disfarçada na ofensa e perseguição aos assumidos; e a inveja daqueles membros da comunidade difamada que conseguem vencer o estigma e chegar ao lugar privilegiado dos heterossexuais, ao lugar da estima. A homofobia não nos vitima, portanto, apenas exteriormente, mas antes interiormente. As consequências políticas disso são enormes: LGBTs não se identificam ao ponto de se converterem num grupo com objetivos comuns e força eleitoral; não conquistam espaço nas casas legislativas nem no Poder Executivo e, por isso, não conquistam os direitos que lhes são negados; o movimento não cresce e tende a ficar nas mãos de quem não representa a diversidade da comunidade LGBT.

Por isso, a telenovela não pode ser ignorada por intelectuais, por políticos nem por movimentos sociais que estejam seriamente comprometidos com a disputa dos corações e da mente dos brasileiros no sentido de (re)construir uma mentalidade caracterizada pelo respeito à dignidade humana de todos e todas, a despeito de suas diferenças e identificações. Alguns podem considerar as representações dos homossexuais em telenovelas meras “abstrações”. Porém, como bem lembrou Albert Camus em A peste, quando as abstrações se põem a fazer sofrer, humilhar e, por fim, matar, o melhor que fazemos é nos ocupar delas.

Jean Wyllys - Jornalista, escritor, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, professor de Teoria da Comunicação da Universidade Veiga da Almeida e deputado federal pelo Psol- RJ. 


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