23 junho 2011

Paixão, sangue e mistério



Dor, comoção e sobressaltos iminentes. Tudo posto e temperado a traição, mistério, passionalidade e litros de sangue que jorram inesperadamente de personalidades públicas ou de figuras absolutamente anônimas. Os crimes bárbaros pintam roteiros repugnantes ao estampar as manchetes dos jornais diários. Mas adquirem ares de inspiração artística, quando reorganizados ao longo das páginas de uma obra literária, e conquistam atenção integral do leitor até a última letra. Não à toa, configuram um prato cheio para escritores, jornalistas, historiadores etc. Esses profissionais dedicam anos a fio a exumar e completar as lacunas dessas histórias obscuras, batizadas de maneira criativa e que atravessam gerações como testemunho vivo das sociedades, bem como das potencialidades trágicas que o ser humano carrega dentro de si.

É dessa forma que histórias como A fera da Penha, o Crime do Sacopã, Chico Picadinho e o Caso Kliemann integram o imaginário popular há décadas – algumas, há quase um século – e prosseguem como objetos de livros recentes. Trabalhos que adotam a narrativa comum dos romances policiais e que, na preocupação de reconstituir o fato em sua totalidade, acabam por lançar luz sobre os casos, com fatos e abordagens até então inéditas.



NA PEQUENA HOLCOMB

Um dos títulos mais célebres dessa linhagem foi também o primeiro a explorar uma tragédia de grande repercussão e, assim, chegar a fatos que nem a polícia, nem a justiça conseguiram alcançar. De quebra, o mundo ganhou uma de suas obras-primas literárias: A sangue frio, do escritor norte-americano Truman Capote. Ele era autor já consagrado pelo best-seller Bonequinha de luxo, mas nenhum outro trabalho realizado por Capote se aproximou do sucesso experimentado com este último, que consumiu a dedicação exclusiva do escritor por seis anos.

Entediado com o excesso de subjetividade a que tinha chegado a literatura de seu país, Capote procurava novidades. Em suas reflexões e debates sobre o tema, vislumbrou um caminho ao conciliar as técnicas habituais do romance ao que se fazia no jornalismo. Uma nova vertente estilística, por ele chamada de “romance de não ficção”.

A teoria já estava, portanto, pronta e digerida quando, numa manhã de novembro de 1959, ele deparou com uma chamada de capa no The New York Times que o faria respirar fundo: “H. W. Clutter, esposa e filhos encontrados mortos no Kansas”. Era uma notícia breve. Dava conta de um assassinato chocante, ocorrido no dia anterior num vilarejo do Meio-Oeste dos EUA. Um fazendeiro e toda a sua família tinham sido encontrados assassinados a tiros durante a noite; sem motivo aparente, já que não foram encontradas evidências de roubo, nem testemunhas. Era a pedra bruta que Capote procurava para lapidar seu novo diamante. Imediatamente, ele pegou o telefone e contatou William Shawn, um dos editores de maior prestígio na época, responsável pela revista The New Yorker. A proposta do escritor era viajar até o palco da tragédia e, assim, relatar como aquele assassinato afetava a cidade distante, com seus cowboys e campos de trigo.

Shawn comprou a sugestão na hora. E, sinalizando o potencial que via naquilo tudo, escalou Nelle Harper Lee, escritora talentosa que ganharia, em 1961, o prêmio Pulitzer por O sol é para todos, como assistente de pesquisa para a empreitada de Capote. No dia seguinte, a dupla desembarcava numa cidade erma, mas em ebulição, com moradores assustados se esquivando de jornalistas provenientes dos quatro cantos do país.

“A pequena cidade de Holcomb está situada nas altas planícies de trigo do oeste de Kansas, área desolada que os outros habitantes do estado chamam de ‘lá longe’”. Assim Capote dá início ao seu trabalho, que, antes de virar reportagem, foi alçado a livro, e que Shawn conseguiria editar e ver impresso em sua The New Yorker apenas seis anos depois. Ao longo desse período, Capote se envolveu com os assassinos – em especial Perry Edward Smith, por quem se especula que teria se apaixonado ­– e mergulhou em depressão profunda. Ele chegou a presenciar a cerimônia de execução por enforcamento dos criminosos – ambos foram condenados à pena de morte – para, assim, colocar um final na narrativa.

Morto em 1984, Truman Capote jamais se recuperou da série de acontecimentos por ele presenciados em virtude da produção de A sangue frio. Ele nunca mais conseguiu concluir outro livro. Em 2005, teve a sua história contada no filme Capote, dirigido por Bennett Miller e interpretado por Philip Seymour Hoffman.

TERRENO FÉRTIL

No Brasil, a experiência artística iniciada por Capote encontrou terreno fértil para sua continuidade. Influenciada pela escola norte-americana e pela dinâmica dos contos policiais capitaneada por Rubem Fonseca e seguida com sucesso, por exemplo, por Patrícia Melo, algumas obras recuperam e retratam com maestria os assassinatos famosos do país, extensamente explorados pela imprensa desde o século passado.

Que o digam os jornalistas Marcelo Faria de Barros e Wilson Aquino, autores de Crimes que abalaram o Brasil, lançado em 2007. Ex-integrantes da equipe de reportagem do programa global Linha Direta/Justiça, que reconstituía os grandes casos julgados e sentenciados pela justiça, eles contaram com a ajuda de George Moura e Flavio Araujo para compilar sete das histórias que mais repercutiram ao longo dos anos em que o programa esteve no ar. Como resultado, há assassinatos que vão do “Crime da Mala”, ocorrido na década de 1920, à saga do vendedor de consórcio e esquartejador Francisco Costa Rocha, o “Chico Picadinho”, nos anos 1960.

“A história que mais me emociona e surpreende é a vivida pelos Irmãos Naves”, diz Wilson Aquino. Desenvolvida em pleno Estado Novo de Getúlio Vargas, no final da década de 1930, a saga dos irmãos Sebastião e Joaquim Naves passa pela condenação por um crime que eles não cometeram, pela perseverança de um dos envolvidos, que lutou o resto da vida para provar sua inocência e, finalmente, chega à redenção, quando a vítima do homicídio que os irmãos teriam cometido aparece viva. Isso muitos anos depois. “A história de tortura e humilhação que os irmãos e seus parentes sofreram é de causar arrepios”, destaca Aquino.

PASSIONALIDADE

Outra que também foi atrás de um apanhado de crimes famosos para colocar em livro foi Luiza Nagib Eluf. Procuradora de justiça e especializada na área criminal, ela assina A paixão no banco dos réus. São, ao todo, 15 homicídios protagonizados por homens e mulheres. O mais antigo deles remonta a 1873 – e envolve o então desembargador pelo estado do Maranhão, José Cândido de Pontes Visgueiro, que aos 62 anos de idade executou, com requintes de crueldade, sua amante de 17 anos, motivado pela impossibilidade de conquistar a fidelidade da moça, que era prostituta. “O ponto comum em todas as histórias, do desembargador Visgueiro ao caso do jornalista Pimenta Neves, é a passionalidade”, afirma Luiza Eluf. “Trata-se de um livro destinado tanto ao leitor comum quanto à comunidade jurídica. Nele, além de reproduzir essas histórias, faço uma análise de nossa cultura e do trabalho do tribunal de júri.” Como destacado no prefácio da obra, assinado pelo jurista Damásio de Jesus, o argumento de Luiza é de que a passionalidade que vai até o homicídio muito pouco tem a ver com amor.

TRAGÉDIA NO SUL

Acrescida das disputas políticas, a paixão e o sexo também são pano de fundo de O caso Kliemann, escrito por Celito De Grandi. Nele, o autor se debruça sobre uma tragédia gaúcha, que ganhou dimensões por envolver o deputado estadual Euclydes Kliemann, acusado de assassinar sua esposa, Margit.

No dia em que o casal comemorava 18 anos de matrimônio, Euclydes encontrou a esposa morta dentro de casa, caída numa poça de sangue, assassinada a tiros. Opositor do então governador Leonel Brizola e em franca ascensão no estado, o político foi logo apontado como suspeito pelo crime. Contra ele, pesava o fato de que não havia sinais evidentes de arrombamento na casa – a porta estava trancada quando ele encontrou a esposa –, nem objetos de valor tinham sido roubados.

“Foi uma comoção no Rio Grande do Sul, onde não se falava em outra coisa. A imprensa revirava a história de cima a baixo”, lembra o escritor, que trabalhava no Diário de Notícias, um dos principais jornais do estado, quando foi destacado para entrevistar o delegado Julio Moraes, responsável pelo inquérito. Na ocasião, o jornalista já observava algumas incongruências na condução do processo. “O clima estava muito politizado, com especulações e notícias plantadas em todos os lados. Além disso, a polícia e a mídia insistiam em trabalhar com apenas uma linha de investigação: colocando o deputado como autor do assassinato.”


O caso, que já era imbricado o suficiente, ganhou contornos ainda mais dramáticos um ano depois, quando Euclydes teve seu assassinato transmitido ao vivo por uma rádio de Santa Cruz do Sul; colégio eleitoral do deputado. Ele participava de um debate com um vereador da base adversária. O clima esquentou, e o deputado foi alvejado por um único tiro que atravessou o pulmão e o matou na hora. “Você imagina a repercussão desse novo incidente. O vereador foi preso e, mais tarde, julgado. O júri tinha tanta importância que foi realizado num ginásio de esportes da cidade. A capacidade do local era de 2 mil pessoas. Estava lotado e, do lado de fora, havia fila de espera. As pessoas se revezavam para acompanhar o evento.”

Em 2006, 44 anos após a morte de Margit Kliemann, Celito conseguiu convencer as filhas do casal a dar, pela primeira vez, a versão da família para os fatos. As três mulheres concederam entrevistas e entregaram a Celito o diário de Euclydes, com os apontamentos do político desde a semana que antecedia o fatídico aniversário de 18 anos de casado até a tragédia ocorrida na rádio gaúcha. “Acho que com esse livro, coloco um ponto final nessa história”, diz ele. O grande trunfo, afirma, está justamente em alcançar fatos novos, que ajudam a ligar os pontos ainda eclipsados da tragédia.

MICRO-HISTÓRIA

De São Paulo, chama a atenção O crime do restaurante chinês, do historiador Boris Fausto. Em uma manhã de março de 1938, o cozinheiro de um restaurante chinês do centro de São Paulo chegou para abrir as portas e começar o trabalho: preparar o almoço do dia. Mas foi surpreendido pela cena que encontrou. Primeiro, os corpos de dois empregados, massacrados na cozinha onde costumavam dormir. Depois, restaurante adentro, os cadáveres do patrão Ho-Fung e o de sua mulher Maria Akiau.

A polícia logo encontrou na figura de um empregado antigo o principal suspeito. Tratava-se de Arias de Oliveira, que teria voltado ao restaurante com o intuito de roubar os ex-patrões. Para tanto, utilizara-se de um pilão com que exterminou os empregados e, fazendo barulho demais, teria acordado os donos chineses, que encontraram o mesmo fim.

Aos 22 anos, forte, pobre e negro, Arias preenchia perfeitamente o status quo de um ladrão-homicida para uma sociedade que não se preocupava em disfarçar seu racismo. Para piorar, preso, interrogado e assustado, Arias teria confessado o crime.

A história, que termina de maneira surpreendente, com o acusado enfrentando o tribunal de júri, foi acompanhada à distância pelo então garoto Boris Fausto. Aquele 1938 era, até então, o mais trágico de sua vida, com a morte súbita da mãe e todo o impacto e sofrimento familiar que veio na esteira do fato. Em meio a isso, as histórias e impressões do crime no restaurante chinês, relatados diariamente pela imprensa, eram como um pesadelo na vida do menino.

“As cenas estampadas nos jornais, os comentários que ouvia em fragmentos em casa e nas ruas provocaram terrores noturnos. Via sombras em meu quarto, prontas a se abater sobre mim, o ruído de portas que estalavam e se abriam para a passagem de monstros e assaltantes. Dentre as cenas que compuseram esses terrores noturnos, o crime do restaurante chinês ocupou um lugar privilegiado. Vivi, na quietude da noite, a entrada de Arias no restaurante, a visão dos corpos dilacerados, do sangue escorrendo pelas paredes, dos gritos que ecoavam no quarto; num penoso esforço, a consciência acabava por se sobrepor aos pesadelos”, afirma o autor, que recorre aos objetivos da chamada micro-história, de estudiosos como o italiano Carlo Ginzburg e o francês LeRoy Ladurie, para o livro. Ou seja, Boris reduz a escala de observação, concentrando-se no crime que por anos o assombrou, para retratar a sociedade toda no contexto da época.

“Quase setenta anos depois, examinei durante meses o processo criminal, folheei páginas e páginas dos jornais paulistanos, tentei explorar pistas, conhecer detalhes, aproximar-me de Arias, Pedro Adukas, Ho-Fung, Maria Akiau, Ho Det Men e extrair conclusões”, relata o historiador, para concluir que, a despeito de todo esforço, muitas dúvidas ainda ficaram no ar. Exatamente como em todos os crimes bárbaros famosos, são os pontos incompreendidos que alimentam a nossa curiosidade e transformam essas histórias em autênticos mitos urbanos.

Fonte: Revista Cultura

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