De suas interpretações nas tramas da Tupi e depois, na Rede Globo, é impossível esquecer figuras emblemáticas como o matador Zeca Diabo em O Bem Amado (1973); o empresário Salviano Lisboa, da primeira versão de Pecado Capital (1975); e principalmente o Sinhozinho Malta, que lançou o famoso bordão “Tô certo ou tô errado?”, de Roque Santeiro (1985).
E se foi a televisão a responsável por projetar o seu nome aos quatro cantos do país, foi no cinema que Lima viveu os mais elaborados papéis da carreira. É também na sétima arte que o ator mais poderá ser visto neste ano. Em junho e julho estreiam dois dos filmes em que trabalhou: a comédia Família Vende Tudo, de Alan Fresnot, e Assalto ao Banco Central, de Marcos Paulo. No segundo semestre, é a vez de Colegas, o Filme, de Marcelo Galvão, e o E a Vida Continua, de Paulo Figueiredo, isso sem contar a participação especial no filme Cadeira do Pai, de Luciano Moura. Nesta entrevista, o ator fala sobre sua chegada a São Paulo, em 1946, literatura, faz críticas à maneira como as novelas são produzidas atualmente e dispara: “a cultura de massa é uma tragédia no Brasil de hoje”.
Você nasceu no lugarejo mineiro de Desemboque, morou no início da adolescência em Ribeirão Preto e voltou para Minas antes de se mudar de vez para São Paulo. É isso mesmo? Foi. Lembro que cheguei em São Paulo em 1946, depois que briguei com meu pai e disse que ia embora de casa. No outro dia, já tinha esquecido o que havia lhe dito, mas meu pai não. Ele chegou e disse: “Vatimbora”. Era assim que falávamos lá em Minas Gerais. Ele falou com um amigo que estava vindo para São Paulo com um caminhão cheio de mangas. Vim então em cima da boleia, envolvido pelo cheiro das mangas rosa. Fomos para o Mercado Central e ajudei o amigo do meu pai a descarregar a mercadoria, em gratidão pela carona. Foram três dias de viagem, mas, apesar do cansaço, o meu olhar de adolescente, sedento de tudo, veio se deslumbrando com as passagens, as paragens e as pessoas.
Como foram os primeiros dias na capital paulista? Fiquei dormindo debaixo dos caminhões e, durante o dia, me oferecia para ajudar a descarregar as mercadorias. Foi assim que me iniciei nessa cidade de pedra, cantada lindamente por Caetano Veloso na música Sampa.
Sei que nessa época a literatura já fazia parte de sua vida. Como se deu o seu primeiro contato com um livro? Um dia, quando já morava em Ribeirão Preto e trabalhava numa loja de materiais de construção, estava fazendo uma entrega de um vaso sanitário, levando-o na cabeça, sob um calor infernal. Estava descalço, e a quentura do chão machucando meus pés. Então, antes de chegar ao destino, parei para descansar, encostei-me numa árvore que dava uma sombra gostosa e, sem mais nem menos, olhei para cima e vi num letreiro a palavra “biblioteca”. Nunca havia entrado numa. Como estava descalço, tinha vergonha de entrar nos lugares, mas deixei o vaso escondido, tomei coragem e entrei assim mesmo.
Qual foi sua primeira impressão diante desse cenário novo? Para um moleque, era tudo enorme. Fiquei ali desconfiado e me sentei com medo de alguém vir reclamar da minha presença. Uma mulher, que trabalhava na biblioteca, veio na minha direção. Então fui logo pegando o primeiro livro que estava na minha frente e fingi que o estava lendo. Ela perguntou se eu queria alguma coisa, mas balancei a cabeça dizendo que não. Quando ela saiu, comecei a ler de verdade e fui me apaixonando imediatamente por aquela história.
E que livro era esse? Era Grandes Esperanças, do [Charles] Dickens. A Inglaterra vitoriana de Dickens era muito parecida com Ribeirão [Preto] daquela época, pelo menos na minha mente, que sempre foi delirante (risos). Eu era muito parecido com o pequenino Pip [o personagem principal do livro] a procurar a minha miss Havischam por aí. Não a encontrei naqueles tempos de menino, mas, quando cheguei em São Paulo, a minha miss se materializou em Madame Paulette [senhora judia que Lima conheceu quando foi para a “zona”. Ela o “adotou” e foi muito importante na sua vida e no início de sua carreira].
Mas, certa vez, você declarou que o seu livro preferido era o Grande Sertão: Veredas... Pode parecer Grande Sertão: Veredas, mas é Grandes Esperanças, do Dickens. Eu tinha até recentemente todas as edições do Grandes Esperanças, em francês, inglês, italiano e espanhol. Sei trechos dele em inglês [começa a falar a parte em que o personagem Pip fala de sua miss Havischam]. É tão bonito isso, é tão da época. As relações humanas e as relações do meio social eram parecidas com o Brasil dos meus tempos de menino. Mas claro que o Grande Sertão: Veredas é um dos meus livros de cabeceira, desde que ele foi publicado. Tenho um que gosto muito também. Chama-se Viagem na irrealidade cotidiana (esgotado), é um livro de crônicas do escritor Umberto Eco e muito bonito.
Como você define a importância das palavras para o ator? São fundamentais – o que escondem, o que representam em si, sua beleza gráfica. Algumas são tão bonitas que nos abrem o mundo. O ator tem que saber penetrar no coração delas, no âmago. Tem de buscar o que são, significam e dizem como uma coisa viva. Afinal de contas, a palavra é orgânica e, inclusive, uma arma de guerra.
Nessas últimas seis décadas, você fez muitas novelas, começando na primeira de todas: Sua vida me pertence, de 1951. O que mudou nesse fazer? Agora, a novela é muito diferente daquela época. Com o advento da internet, tudo ficou frenético, cortado e extremamente gritado. Os primeiros diretores da televisão vinham do rádio, onde também comecei minha carreira em 1946 [Lima começou de fato em 1947, quando foi trabalhar na rádio Tupi,ligando as válvulas de transmissão dos programas]. Agora não, eles vêm da própria televisão e também da internet. Hoje, as novelas não dão mais espaço para reflexão, e o ator não tem mais tempo para pensar no que foi dito e no que ele tem que falar depois.
O que são as novelas então nos dias de hoje? Tudo é um espetáculo frenético e torna impossível o raciocinar, fica esquemático. Não são mais personagens que sentem a vida. O espectador acompanha tudo olhando “bovinamente” as figuras que se movem. Antigamente, os personagens penetravam nos corações do espectador que se identificavam com eles. Agora, ficou imediato, superficial e o espectador não quer mais mergulhar de cabeça na imaginação, no sonho e na reflexão que uma boa dramaturgia proporciona.
Uma das novelas de maior sucesso da Rede Globo foi Roque Santeiro, de 1985, na qual você dava vida ao Sinhozinho Malta e que será reprisada pela primeira vez na íntegra, a partir de julho, no Canal Viva. Como será que o novo telespectador absorverá a novela? Difícil responder. Eu estou até com um pouco de receio. Estão falando tanto dessa reprise, há tanta expectativa, que me faz refletir: “Será que o novo telespectador vai achá-la chata, lenta?”. Aqueles personagens foram feitos para se comunicar, se identificar com o público da época. Não sei se eles vão falar ao coração desse de hoje, mas tomara que sim.
Curiosamente, apesar do sucesso de público e de crítica do seu personagem Sinhozinho Malta, você costuma preferir o Sassá Mutema de O Salvador da Pátria. A novela foi ao ar em 1989, em plenas eleições para presidente, vencida por Fernando Collor de Mello, mas a trama não fez tanto sucesso... É também por isso que gosto tanto dela. A concepção era primorosa e extremamente humana. A novela foi imaginada para terminar no dia das eleições e conta a história de uma pessoa que vai do nada ao entendimento. Tinha uma metáfora muito bonita por trás da construção do personagem Sassá Mutema. Ele era um jardineiro sem instrução nenhuma, mas, quando pegava as flores, elas vicejavam. Mas aí ele tem que aprender as outras coisas, como saber ler, se relacionar socialmente, amar. Quando ele aprende tudo e sabe tudo, as flores não vicejam mais em suas mãos. Ele pega nelas e elas morrem. Isso é um momento terrível para Sassá Mutema, que termina a novela como senador da República, embora fosse para terminar presidente.
E porque modificaram o destino do personagem? Porque cismaram que era a história do Lula, pô. Não tinha nada a ver com o Lula. Inclusive, acho que o Lula não aprendeu até hoje o que ele é, o que ele significa. Ele não chegou ao entendimento (risos). Deve estar muito feliz agora com a divisão do PT, que fragmentado pode ser destruído. Mas, voltando ao personagem, a sua mudança foi apressada. Eles [da direção da Globo] achavam que Sassá era feio, sujo e pobre e, por isso, não vendia nada, nem adubo (risos). O que ele tinha de grandioso era o fato de as flores vicejarem.
O que você acha da cultura de massa no Brasil? A cultura de massa é uma tragédia no Brasil de hoje, quando se glamouriza a ignorância, o completo desinteresse pelo conhecimento e pela leitura. Não podemos estimular e aceitar uma sociedade que se molda pela falta de educação. Isso é um crime de lesa-pátria. O filme que fiz, Família Vende Tudo, fala dessa cultura por meio dos seus personagens. O longa tem um ódio visceral de tudo o que representa essa cultura de massa. No filme, a esperança, a fé e o amor destroem (risos). O meu personagem, Ariclenes, é muito engraçado, apesar do tempo que o diretor imprime ao filme. Dizem que sou muito crítico com o resultado dos personagens que fiz no cinema e na televisão. Elaboro esses personagens de forma quase insana. Quero ir à alma e à psicologia deles, inseri-los no mundo e na vida das pessoas. Esse entendimento e essa busca muitas vezes me frustram com o resultado, o que deixa os diretores e autores chateados. Foi assim com o meu último personagem Max Martinez [da novela Araguaia, de Walther Negrão, que estava no ar na rede Globo no horário das 18h]. Ele deixou de ter motivações próprias, ficou em função dos outros personagens, perdeu aprofundamento e nuances. Isso é o que me deixa frustrado.
Você fez muito teatro no início da carreira, primeiro os teleteatros na televisão, depois o Teatro de Arena, do qual participou por dez anos, de 1961 a 1971. Podemos destacar, por exemplo, o espetáculo Bonifácio Bilhões, ao lado do Armando Bogus. Mas, então, por que você não sobe no tablado há mais de 20 anos? Fico muito estimulado com o processo de criação do espetáculo, dos personagens, do texto, mas, quando a peça entra em cartaz, perco completamente o interesse. Não tenho paciência para ficar todo final de semana falando o mesmo texto.
É possível, no entanto, apontar algum personagem que você fez no teatro, no cinema ou na televisão que o tenha deixado plenamente satisfeito com o resultado? Olha, eu tinha uma ideia muito ousada mesmo. Ousada até para o João Ubaldo [Ribeiro, autor do livro Sargento Getúlio]. Ele falou para mim que estava querendo fazer com o Sargento Getúlio algo um pouco diferente do personagem que ele havia concebido para o livro. O Sargento Getúlio é um dos mais ricos e instigantes personagens da nossa literatura. Aquele homem que não entende as mudanças que vão acontecendo ao seu redor e luta para preservar o mundo que ele compreende. Lembro que, quando João Ubaldo viu o filme [Sargento Getúlio, de Hermano Penna, lançado nos cinemas em 1983], chegou para mim e disse: “Mas aquele [personagem] é um matador safado. Ele degola as pessoas e a gente fica torcendo para ele. O que você fez do meu sargento?” (risos). Eu adorei esse personagem, esse homem que não vai acompanhando e nem entendendo o avanço do progresso. É muito bonito. Mas não fiquei plenamente satisfeito, porque o filme foi feito de forma muito precária, o que atrapalhou o resultado. Mas é um grande filme, apesar da sua precariedade.
Fonte: Revista da Cultura
É um dos meus atores prediletos. De origem humilde, cresceu graças ao talento inquestionável.
ResponderExcluirBjs!