A complexidade de
certos conceitos reside em sua simplicidade. A pansexualidade faz jus a esta
máxima. No geral, quem se entende pansexual não se atrai apenas pelo gênero,
orientação ou identidade do outro, mas por tudo isso e muito mais. É como se as
categorias, que mais complicam a nossa vida do que facilitam, ruíssem, inúteis
em suas próprias concepções, perdendo sua relevância sexual. É a pessoa
revisitando sua humanidade através do desejo pelo outro que é apenas humano.
Esse reencontro, porém, esbarra no tradicionalismo operante do qual nos impõe
apenas o modelo heterossexual como sendo aprovável. Esse entrave veta outras
experimentações sexuais ao colocar nossa sexualidade dentro de blocos rígidos. É
por causa desse amontoamento de ideias castradoras que passamos a demonizar
quem prefere trazer a público uma visão mais ampla acerca de suas práticas
sexuais. Entretanto, ao não problematizar a pansexualidade, estamos impedindo
uma maior compreensão daquilo que atribuímos como critérios atrativos para
estar com alguém, para além dos impulsos sexuais.
Acima da questão
hormonal envolta na química entre duas pessoas, há, sobretudo, uma pressão
social latente, vigilante, exigindo de todos os encaixes voltados à procriação
da espécie. Nenhum problema até aí, quando levamos em conta a nossa condição
animalesca na natureza. Mas, estar sob este julgo natural não significa reduzir
nossos estímulos sexuais às exigências reprodutivas. Ao se difundir isso, além
de improdutivo, leva-nos ao fracasso de experimentações, que poderiam
engrandecer nossas vidas sexuais, como também ampliar nossa sensibilidade para
com aqueles que se permitem aventurar por outras águas, vistas por muitos de
nós como intranquilas. A pansexualidade navega por esses mares revoltos do
possível, permitindo aos seus adeptos não se tolher o direito de se aproximar,
mais do que qualquer outro, de provar o que há de mais humano em nós, a
diversidade. Por isso, ficamos assustados com essa prática, por medo de
encontrar em nós uma brecha do tamanho o suficiente para saciar nossa
curiosidade pelo outro.
Sem sombra de dúvidas,
tememos também questionar as certezas destinadas aos nossos sentimentos quando
encontramos a nossa “cara metade”. A regra social dita que ela tem a face
oposta da nossa, mas nem sempre essa norma é seguida à risca. Há pessoas que
são apaixonantes, atraentes, desejáveis, sensíveis ao nosso modo,
compreensíveis, moldadas com as características das quais mais valorizamos. São
quesitos interiores que ganham forma de gente e nos fazem ignorar aquele corpo
a nossa frente, mero receptáculo de carne e osso. Repensando, chegamos à
conclusão de que, ademais da representação visual, é o interior que nos
conquista. É ele que se revela num olhar, num toque, numa conversa, numa breve
respiração. Imperceptivelmente, somos seduzidos pela essência daquele outro,
porém, muitas vezes não levamos a cabo a intensidade desse encontro, porque há
toda uma pressão social observando nossas escolhas e punindo aquelas que
desagradam a maioria. Ora, se é o âmago que sustenta as relações, porque ele precisa
ser desse ou daquele gênero para ser legítimo?
Muito provavelmente porque
sem essa anulação do sentimento alheio não haveria justificativa para legitimar
o nosso, o qual, como já vimos, é regido mais pela regra do que pela emoção. Então,
a pansexualidade desmorona esse conceito e diz ser possível gostar de alguém
apenas porque é alguém, e não uma genitália ou um gênero determinado. Não somos
porções de carnes disponíveis ao consumo. Somos gostos, emoções, desejos,
marcas que podem, ou deveriam, estar sintonizadas a qualquer outro indivíduo,
desde que os olhares moralizantes não nos impedissem de fazer outros arranjos
sexuais. Limitados nesse âmbito, criamos a falsa ideia de que os pansexuais são
promíscuos, muitas vezes para desviar o olhar leigo da massa para a real falha
em voga: a de que estamos personificando os sentimentos dos nossos parceiros
(as) a partir das categorias em que eles (as) foram colocados (as), e não por
serem quem são, humanos. É o preconceito invalidando qualquer avanço discursivo
capaz de proporcionar a nós a mais ínfima chance de evolução.
Outra tentativa comum é
aproximar a pansexualidade da bissexualidade. Esta última, lamentavelmente,
configura na lista entre as práticas transgressoras na visão dos mais
conservadores, pois ainda é repercutido a ideia de que é impossível alguém se
atrair por ambos os gêneros. Entretanto, não só é possível como já acontece na
prática, mesmo que não assumidamente por muitos. Na fragilidade perfeita criada
em torno da heterossexualidade, muitos indivíduos, inseridos neste grupo de
privilegiados sociais, aventuram-se em transas, regulares ou ocasionais, com
pessoas do mesmo sexo às escondidas, seja através da prostituição ou da
manutenção de relacionamentos extraconjugais. São pessoas que se apresentam
socialmente dentro da norma, mas se permitem ao risco tentador de provar o “fruto
proibido”. A pansexualidade, além de distinta da bissexualidade, poderia ser a
aliada ideal para tais indivíduos, imersos na clandestinidade das próprias
pulsões sexuais, encontrassem as vias de fato dos seus desejos, sem percorrerem
caminhos tão tortuosos para viverem as suas humanidades.
O que quero dizer é que
não nos atraímos pelo o outro apenas porque suas características biológicas
destoam das nossas. É bem mais que isso. Em muitos momentos, o íntimo alheio
reflete em nosso interior, revelando sensações aprisionadas pelos preconceitos
incutidos metodicamente pela sociedade por eras em nós. Então, perdidos nesse
labirinto da sexualidade, só nos é apresentado um caminho, quando na verdade,
no quesito sexual, há encruzilhadas de possibilidades. Ser pansexual é isso.
Significa enveredar por essas trilhas onde no final qualquer forma de prazer
será válida. Não se trata de banalizar o outro, o sexo, ou coisa assim. Mas de
oportunizar a todos os envolvidos a chance de romper o casulo que nos impede de
voar livremente pela sexualidade. Trata-se do necessário encontro com nossa
humanidade, tão higienizada de mentiras consentidas e inverdades hipócritas,
que de nada contribuem para o nosso crescimento sexual, apenas difundem mais
intolerância. É a pansexualidade que sobreviverá quando todas as demais
categorias perderem o sentido.
Até lá, em um modelo heteronormativo
de relacionamento amoroso, qualquer enlace que fuja do tradicional homem +
mulher será visto como algo desviante à norma. De cara, a homossexualidade será
rapidamente lembrada por ser, talvez, a prática mais transgressora nesse
sentido. Acontece que nem sempre os arranjos sexuais se encerram por aí. Há,
por exemplo, indivíduos movidos por desejos claros tanto por homens quanto por
mulheres, evidentemente sendo tão ou mais incompreendidos do que os
homoafetivos. O nó ficará mais arrochado quando encontrarmos mais comumente pessoas
afirmando que ser desse ou daquele gênero não é critério preponderante para alguém
se tornar desejável aos seus olhos, mas sim o fato de ser uma pessoa. De fato,
de tão simples, a pansexualidade perturbará todos aqueles presos àquele
panorama fechado de relacionamento, mas, ao mesmo tempo, suscitará profundas
questões sobre como nos envolvemos com o outro para além de suas genitálias.
A pansexualidade, que já é a
vanguarda, se tornará nosso apelo ao humano.