Nem sempre é possível
amar-se em primeiríssimo lugar. Por mais alarde que se faça em torno da frase “é preciso amar a si mesmo”, geralmente
são os outros que ocupam o pódio desse sentimento. A priori, não há nada de
errado nisso. Penso que oferecer amor a quem nos rodeia cria um ciclo positivo
cujo retorno costuma ser inevitável. O problema, porém, reside quando a doação
desse afeto em demasia vai nos esgotando, retirando de nós a nossa essência,
esvaziando nossas reservas emocionais. Isto porque, por mais ilimitado que seja
o amor, isso não significa que ele seja infinito. Então, para suprir a demanda
do outro, tornamo-nos escravos de uma forma de amar patológica, a qual é
responsável muitas vezes por eliminar a nossa identidade. Logo,
imperceptivelmente, traímos nossos ideais, fazemos coisas inimagináveis, nem
sempre as mais sensatas, ignoramos os nossos limites, nos entregamos sem
reciprocidade. E, o pior, abandonamos o pouco que havia guardado em nós para
elaborar uma imagem pessoal idealizada, mas falsa, que costuma ruir tempos
depois quando descobrimos que perdemos tempo não nos amando.
Encaro essa fase, que
se manifesta em qualquer período de nossas vidas, como um litígio pessoal não
programado. É quando rompemos com nós mesmos em detrimento do outro, que não
precisa ser necessariamente uma pessoa. Pode ser um trabalho, uma religião,
uma conquista material, etc. Seja qual for a motivação, o resultado geralmente
é o mesmo: desconstrução das nossas individualidades. Para atender as
expectativas do outrem, cedemos aos seus mais variados caprichos. Em
relacionamentos amorosos isso é mais corriqueiro. Fazemos diversas concessões
em nome do amor, muitas indiscutivelmente egoístas apenas para manter o
equilíbrio da relação. Por medo de confrontar o parceiro (a), optamos pela
negociação, que é uma prática acertada, quando ambos estão dispostos a entrar
em acordo para o bem de todos. Todavia, na intensidade das paixões, só uma das
partes cede facilmente a certos desejos. Assim, do outro lado da moeda, haverá
alguém boicotando-se em prol da manutenção da normalidade daquele
relacionamento. Atitudes assim resvalam em desconciliação da pessoa consigo
mesma, o que a longo prazo será pano de fundo para a dissolução daquilo que se
achava que era amor.
Personalidades mal
construídas também são mais susceptíveis a esse conflito interno. Não sou
totalmente a favor da generalidade da qual somos todos influenciáveis,
sobretudo no ramo sentimental, mesmo ciente de que há uma comercialização cada
vez mais piegas do amor. Entretanto, acredito que há pessoas mais permissíveis
ao autoboicote, levadas por discursos de cumplicidade e amor eterno que por si
só já soam imaturos. São as ditas sonhadoras amorosas, aquelas criadas
acreditando em amor para a vida toda, numa relação angelical em que há uma
devoção à figura do outro em oposição à pessoal. Então, hipnotizados por essa
busca pelos príncipes e princesas encantados, anulamos nossas particularidades
para viver uma relação onírica, um faz de conta construído para elaborar uma
pseudoideia de felicidade. Entre amigos acontece algo semelhante. Para nos
enturmarmos, muitas vezes realizamos feitos que nos desagradam, mas precisam
ser cumpridos como ritos de inclusão para pertencer a determinados grupos.
Desse modo, cortamos qualquer vínculo conosco para estar inserido em meio a
pessoas desinteressadas em nos conhecer por completo, ou simplesmente nos ter
em suas vidas da forma que somos de verdade.
São essas pequenas
coisas que nos fazem entrar em divórcio conosco: manter relacionamentos
egoístas que nos cobram o máximo e nos oferecem menos que o mínimo. Insistir em
namoros, noivados, casamentos, por mera formalidade imposta pelas palavras, mas
desprovidos de companheirismo, conversa, entrega mútua. Amizades desonestas que
se aliam a nós motivadas pelo o que podemos oferecer, não pelo que somos ou
podemos ser em suas vidas, caso seja dado a nós a permissão de nos mostrar ao
outro sem reservas, sem temer ser eliminado quando os nossos verdadeiros “eus” vêm à tona. Trabalhos excessivamente
degradantes, ocupando nossas rotinas quase que integralmente com funções que
não levam muitas vezes em conta as nossas potencialidades. Então, escravizados
pela necessidade de ganhar amor, carinho, dinheiro e atenção, realizamos sem
questionar os desejos do outro e engavetamos os nossos. Então, inobservantes,
somos desquitados de papel passado de nós mesmos. Desatamos quaisquer nós que nos
atavam firmemente ao que tínhamos de mais precioso à custa de viver para um
outro, que nem sempre nos nota. Daí, nosso amor próprio, frágil por natureza,
sucumbe diante à pressão exercida sobre nós para servir unicamente ao outro.
Semelhante a muitos,
também já me privei de ser eu mesmo para poder atender as expectativas alheias.
Deixei várias vezes de me amar, fazer as coisas que gosto, estar com as pessoas
que me fazem bem, para corresponder aos anseios alheios. Não valeu a pena e me
custou um preço altíssimo. Certas aparentes decisões nossas costumam ser irreparáveis.
Hoje não permito que isso se repita. Mesmo ciente disso, sei que não estou/sou
imune de me litigiar desse amor próprio recém adquirido num futuro próximo.
Essa é a fragilidade da máxima “amar-se em primeiro lugar”, porque ela carrega
em si toda uma significância egocêntrica em um mundo onde o outro é tão ou mais
carente de amor do que nós mesmos. Talvez o mais apropriado fosse amar o ser
humano que há em si e fazê-lo reluzir noutras pessoas. Servir-se de expoente
para o outro. Caso sua luz emane positivamente em muitos, já que em todos é
impossível, significa que há amor próprio suficiente para facultar ao
desconhecido o direito de fazer parte da nossa vida e ser contagiado por esse
sentimento e, na sorte, somá-lo com mais amor.
Para tanto, é preciso
entender que amar-se significa reencontrar-se com aquele alguém perdido ou
usurpado dentro de nós mesmos pelas inúmeras cobranças da vida. Ele está ai
dentro, adormecido pelas tantas ocupações nos impelidas, mas sempre disposto a
despertar do pungente sono eterno do qual foi sentenciado. Como somos pessoas
distintas, cada um de nós vai unir-se a si próprio novamente quando a
maturidade bater à porta, e ela baterá. Na verdade, já deve estar batendo
agora, mas só a ouviremos quando o fracasso irromper nossos muros internos
enfraquecendo nossas certezas, usadas como escudos para manter certas relações
abusivas sob o rótulo de amor. Quando questionamos isso já é o primeiro sinal
de que estamos acordando para uma vida mais autônoma, mas não menos perigosa.
Amar-se plenamente, nesse sentido, é um risco a quem ousa fazer-se feliz, pois
questiona a ideia de que não podemos ser/estar felizes com nós mesmos, sem a
presença do outro. Ledo engano. Se o amor suga o pouco que somos, é mesquinho e
irrevogavelmente unilateral, então precisa ser apartado de nós antes de nos
perdermos por completo nele. Então, reconciliar-se consigo mesmo, além de
urgente, é a forma mais altruísta que conheço de amar.
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