Exibido na abertura do
festival, filme de Marcelo Caetano investiga os afetos em um Brasil profundo
encravado entre a periferia e os bairros operários
A 12ª edição do
Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo teve início na quarta-feira 26
com a exibição de Corpo Elétrico, primeiro longa-metragem do diretor Marcelo Caetano.
O filme de abertura é um cartão de
visitas para conhecer a produção contemporânea dos países da região, e também
uma proposta de incursão sobre o que está acontecendo aqui ao lado, nos bairros
vizinhos, na maioria das vezes sem o mesmo alarde de algumas produções
nacionais que, também muitas vezes, produzem muito barulho e pouco estofo.
O
filme é a chance de visitar não exatamente um Brasil profundo, mas distante.
No
caso, acompanhar as relações desenvolvidas nas fábricas dos bairros operários de
São Paulo por onde já não circulamos.
Caetano
situa nos galpões do Bom Retiro a nova classe trabalhadora, que pisa quase
sempre em fronteiras confusas entre a exploração e a semiescravidão, com
direito a descanso cassado, negociado em condições desiguais enquanto os
proprietários passam as férias na Europa e mandam marcar presença em eventos e
desfiles onde os trabalhadores não circulam
O modelo de exploração, a alienação do
trabalho, a carga horária abusiva de uma fábrica de confecções servem como pano
de fundo, mas não parece ser este o interesse do diretor.
Em
vez de um filme denúncia, ele propõe uma aproximação nos afetos produzidos
nestes espaços, nestas cidades.
Uma
delas é a diversidade, tão debatida (a distância) nos círculos ilustrados e ao
mesmo tempo tão natural nos espaços onde não há outra opção se não o convívio –
sobretudo quando passamos mais tempo com os colegas de trabalho do que com a
família.
O que
parece interessar ao diretor são as ações pautadas pelas relações de trabalho
desenvolvidas fora do horário do expediente, como uma forma de conter o
aniquilamento.
Em
uma das cenas, após um plantão estendido para dar conta das demandas da fábrica
(estamos às portas do Natal), os companheiros de trabalho caminham por uma rua
deserta e mal iluminada da metrópole em direção a um bar, onde improvisam um
festejo de fim de ano entre bebidas, batuques e música popular.
A câmera, movimentando-se para trás,
acompanha os grupos de afinidade que se formam em torno dos assuntos.
Um
dos personagens, evangélico, conta
que vai se casar, mas não tem casa, dinheiro ou automóvel. Outro está
construindo uma laje de três andares. Outro quer fumar maconha. Outro
ensaia um flerte com uma colega. Outra fala do receio de voltar tarde para
casa, onde mora com a mãe e a filha.
Outro,
de Guiné-Bissau, tenta
acompanhar e absorver a fala acelerada dos novos colegas de trabalho (como se
expusesse uma hierarquia não formalizada, os bolivianos da fábrica não
participam dos festejos).
Os
grupos se montam e se desmontam em módulos temáticos, e quem circula por eles,
como se tentasse participar de todos os assuntos, é um jovem negro e gay que
tenta conciliar o trabalho na fábrica com as apresentações em casas noturnas na
companhia da “família” – como chama as amigas croosdresser, uma delas cover da
cantora Rihanna.
A menção à família deixa clara a
proposta do diretor em investigar as formas de acolhimento numa cidade marcada
pela exclusão.
O
protagonista, Elias (Kelner Macêdo), também gay, é uma espécie de subchefe dos
colegas, embora o status não lhe permita muito conforto além de uma quitinete
onde a privada e o fogão são separados por uma porta sanfonada (e quebrada) do
banheiro.
Dele
sabemos, em um dos diálogos, que nasceu na Paraíba, um outro sonho feliz de
cidade com vistas para o mar (também uma imagem explorada no filme) e que não
tem contato com a família.
Os
laços são reconstituídos e reinventados nessa rede entre colegas, amigos e
possíveis amantes. Naquele ambiente, onde praticamente todos representam uma
minoria ou grupo estigmatizado (por exemplo, os evangélicos e os estrangeiros),
as possibilidades de convívio e acolhimento se multiplicam sem grandes
fricções, apesar da tensão ensaiada.
A
expectativa de explosão, aliás, diz mais sobre quem assiste do que sobre o que
está em cena.
Eles se deslocam o tempo todo por uma
cidade onde boa parte das pessoas prefere, por medo, se trancafiar. “Do centro
para a periferia, da periferia para o centro. O mais importante para mim era
mostrar os deslocamentos na cidade, esses corpos que dançam e transitam pelas
ruas, as caminhadas na rua, os ônibus. Eu cresci vendo um cinema paulista muito
preso nos apartamentos e nos estúdios. Ainda que ame filmar a cama, o quarto, a
intimidade, acredito que os afetos precisem ganhar as ruas e meu filme é quase
um manifesto dentro do cinema paulista nesse sentido”, diz o diretor Marcelo
Caetano no texto de apresentação do filme.
É
como se nessas brechas de rotina e trabalho massacrantes houvesse uma
compensação em forma de liberdade, sem apego a rótulos e cartas de compromisso.
É o presente contínuo vivido a todo vapor, sem que se saiba com quem vamos
acordar na manhã seguinte.
A
certa altura, o protagonista é questionado por um dos patrões como vê a sua
vida dali a cinco anos. Aos 23, Elias diz não ser capaz de visualizar algo tão
distante. E quem é capaz?
Eles se deslocam o tempo todo por uma
cidade onde boa parte das pessoas prefere, por medo, se trancafiar. “Do centro
para a periferia, da periferia para o centro. O mais importante para mim era
mostrar os deslocamentos na cidade, esses corpos que dançam e transitam pelas
ruas, as caminhadas na rua, os ônibus. Eu cresci vendo um cinema paulista muito
preso nos apartamentos e nos estúdios. Ainda que ame filmar a cama, o quarto, a
intimidade, acredito que os afetos precisem ganhar as ruas e meu filme é quase
um manifesto dentro do cinema paulista nesse sentido”, diz o diretor Marcelo
Caetano no texto de apresentação do filme.
É
como se nessas brechas de rotina e trabalho massacrantes houvesse uma
compensação em forma de liberdade, sem apego a rótulos e cartas de compromisso.
É o presente contínuo vivido a todo vapor, sem que se saiba com quem vamos
acordar na manhã seguinte.
A
certa altura, o protagonista é questionado por um dos patrões como vê a sua
vida dali a cinco anos. Aos 23, Elias diz não ser capaz de visualizar algo tão
distante. E quem é capaz?
Visto na: Carta Capital
Nenhum comentário:
Postar um comentário