Crianças
eufóricas se reúnem para a colheita que aguardaram por um ano. Acordam cedinho
para mergulhar nos aromas e cores do cacau. Frutos coloridos e ovalados se
oferecem pendurados ao deleite dos olhos e ao alcance dos adultos. Do que eles
colhem, elas carregam o que podem, abrem sem cerimônia e se lambuzam até não
aguentar mais. Essa Páscoa feliz, comemorada anualmente no supermercado mais
próximo, tem um preço que não está embutido nos valores dos ovos que a
simbolizam: o trabalho infantil em lavouras de cacau africanas. A reportagem da
SUPER visitou fazendas na Costa do Marfim e em Gana – países que exportam 65%
de todo o cacau consumido no mundo – para conhecer o plantio e acompanhar o
trabalho de ONGs que combatem o trabalho escravo infantil – fruto muitas vezes
de tráfico de pessoas – nas roças em que nasce o chocolate.
Que trazem pra mim?
Já passa das 19h
e os últimos raios alaranjados de sol começam a sumir por trás da floresta. O
clima, que poucas horas antes era insuportavelmente abafado, aos poucos vai
ficando agradável, e uma brisa começa a soprar timidamente. A copa das árvores
é alta e a estrada de terra vermelha rasga a selva.
Pelas beiradas do caminho, trabalhadores
caminham após mais um dia duro. Misturados aos adultos, crianças e adolescentes
carregam facões que às vezes medem metade de suas alturas. Alguns deles, além
do facão, carregam pesadas bacias na cabeça, carregadas de mamão, mandioca,
couve ou água – tudo para consumo familiar. Quase todos estão descalços. A
escola mais próxima fica a 10 km do vilarejo em que vivem. Trabalho? Só na
agricultura mesmo. Além dos cultivos tradicionais de subsistência de cada
família, um produto em especial é o grande empregador da região: o cacau.
Estamos na
fronteira entre a Costa do Marfim e Gana, na costa oeste da África. A Costa do
Marfim é o maior produtor e exportador mundial de cacau, seguido da vizinha
Gana. De todas as amêndoas de cacau que saem daqui, calcula-se que 90% sejam
cultivadas por agricultores de subsistência, como os que acabamos de descrever.
“Somos os
maiores produtores de cacau, mas nós, os camponeses, sofremos muito. Somos os
mais pobres do nosso país. O dinheiro que ganhamos com o trabalho não é
suficiente, não dá para sustentar as famílias”, desabafa um trabalhador de
fazenda de cacau em Gana que prefere não se identificar. A combinação entre
pobreza, falta de escolas e recursos naturais valorizados internacionalmente
resulta em uma aberração enfrentada por muitos países em desenvolvimento: o
trabalho infantil.
Que trabalho eles têm?
Visto de dentro,
um típico cultivo de cacau é tão vistoso e as sombras das árvores tão
agradáveis que é fácil se distrair e acabar se perdendo. Seguindo os passos dos
guias locais, aos poucos ouvem-se os ruídos das lâminas dos facões. Ao redor de
uma pequena montanha de cacau maduro, quatro adultos quebram com destreza os
frutos e depositam as amêndoas em uma bacia à parte. Ao redor dela, três meninos
e uma menina, todos com menos de 10 anos, separam as amêndoas da polpa. Vira e
mexe, uma ou outra criança pega o facão para terminar de cortar um fruto ou
para brincar nos intervalos. Em outros cultivos, pré-adolescentes, já mais
“responsáveis” na hierarquia de produção, manuseiam os facões o tempo todo,
arriscando decepar partes do corpo junto com os frutos. Há quem defenda que a
melhor maneira de quebrar o cacau maduro seja com um pedaço de pau, para evitar
os acidentes com lâmina. Mas o costume local segue afiado.
Esse trabalho
arriscado e precoce já é tradição familiar. “As crianças precisam trabalhar
desde cedo para ajudar a família”, explica um ativista local que pede para não
ter seu nome citado. O trabalho de crianças em várias regiões da África –
sobretudo em atividades agrícolas – é visto com naturalidade, assim como em
algumas regiões do Brasil. De acordo com a cultura de muitas etnias da África
subsaariana, aprender o ofício do pai e da mãe, assim como cooperar com as
tarefas domésticas, faz parte do cotidiano das crianças. “Não podemos confundir
trabalho infantil com o fato de alguns filhos ajudarem os pais nas tarefas em
casa. Nesse caso, é importante também que os pais respeitem os horários
escolares para que os filhos não percam as aulas nem sejam colocados em
situações de risco, usando facões, por exemplo”, argumenta Willy Kyeremeh,
agrônomo que trabalha no setor de cacau em Ashanti, uma das maiores regiões
produtoras de Gana.
O cenário,
porém, é mais complexo. O trabalho infantil nas lavouras de cacau se divide em
três tipos: o de auxílio na agricultura familiar, como continuidade do ofício
dos pais; o trabalho fora de casa – com o consentimento dos pais – em troca de
dinheiro para a família; e o trabalho clandestino, associado ao tráfico de
pessoas. Em outras palavras, escravidão.
No sul da Costa
do Marfim, é comum a presença de pessoas com aparência diferente dos ganeses e
marfinenses. Eles têm a pele mais escura, olhos amendoados e traços árabes
típicos de países como Mali e Burkina Faso. Embora Gana e Costa do Marfim
enfrentem sérios problemas sociais e econômicos, a situação é ainda pior em
alguns países vizinhos. Mali, por exemplo, é o 17º país mais pobre da África.
Burkina Faso não fica muito atrás nesse quesito. Não à toa, desses países vêm a
maior parte das crianças e adolescentes traficados para lavouras de cacau.
“Pela nossa
experiência trabalhando aqui na região, existem relatos de que crianças
traficadas são ‘alugadas’ por um valor que varia entre US$ 280 e US$ 380 por
ano, e que muitas vezes são os próprios familiares que as entregam”, explica um
funcionário da ONG Creer (sigla francesa para “Centro de Reinserção e de
Educação para as Crianças de Rua”) que não quer ser identificado.
A Interpol
realizou duas operações de combate ao trabalho infantil na Costa do Marfim, em
2014 e 2015. Na primeira, 76 crianças entre 5 e 16 anos foram resgatadas do
trabalho escravo. Na segunda, o número dobrou: 150 reouveram sua liberdade.
Segundo um estudo desenvolvido pela Universidade Tulane (EUA), mais de 1 milhão
de crianças e adolescentes trabalhavam em plantações de cacau na Costa do
Marfim em 2014. O número de menores envolvidos nas lavouras cresceu 46% entre
2009 e 2014.
“O governo local
está trabalhando, tentando lidar com esse problema, mas os recursos são
escassos e as empresas que lucram com o comércio de chocolate pouco se
importam. Elas ganham milhões vendendo chocolate pelo mundo, mas não
implementam uma medida sequer para amenizar o problema”, diz Chloe Grant,
fundadora e presidente da Creer.
Fora da gaiola
Em uma região
tão pobre, com total ausência de serviços públicos decentes, a Creer trabalha
para amenizar o sofrimento de algumas crianças. Criada em 2010, a ONG funciona
em uma humilde casa em Abengourou – cidade marfinesa a 30 km da fronteira com
Gana. Na casa, apenas uma funcionária cuida das três crianças abrigadas pela
ONG no momento. Seus nomes serão mantidos em sigilo, porém pode-se dizer que
todas elas sofreram maus-tratos ou eram obrigadas a trabalhar. O menino mais
velho, de 8 anos, é sério e fica dentro da casa. Ele tem a perna direita
enfaixada, resultado de uma queimadura que sofreu como punição. Por isso, fugiu
para viver na rua, até ser encontrado e acolhido pela Creer. A menina, um pouco
mais nova, é tímida, mal consegue falar e passa o tempo se balançando num pneu
pendurado na árvore do quintal. O caçulinha do trio, de 5 anos, talvez seja
novo demais para entender a situação. É o mais animado e corre para lá e para
cá com seus carrinhos de brinquedo.
“Trabalhamos
muito para alertar os agricultores. Vamos para a floresta para educá-los,
explicar como funcionam as leis. No entanto, existe uma demanda pelo trabalho
das crianças nas fazendas, porque o preço do cacau está muito baixo. Por isso,
acho pouco provável que a situação mude em um futuro próximo”, conclui Chloe.
Resta
como esperança alguns oásis de educação, capazes de modificar a condição das
crianças de maneira imediata. Em um dos muitos vilarejos visitados pela
reportagem da SUPER – um dos poucos com escola –, um professor alto, magro e
simpático se aproxima para contar sobre sua experiência com os alunos. “Desde
que a escola começou a funcionar aqui em Ashanti, conseguimos manter as
crianças afastadas do trabalho. Todas as comunidades da região deveriam ter uma
escola. Antes, sem educação, as crianças estavam fadadas a seguir os passos dos
pais. Agora, com a escola, a maioria diz que não quer trabalhar com cacau. Eles
querem estudar para ser professores, médicos, advogados. E mesmo os que ainda
pretendem se envolver com o cultivo do cacau no futuro sabem que existem outras
oportunidades nesse mercado”, explica Dominique Sasu, com brilho nos olhos cor
de chocolate.
Visto na: Superinteressante
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