"...
Aquela, que por um momento de humanidade, sonhou com a justiça, lutou por
liberdade e ousou ir mais alto do que permitia sua cor". (Anielli - Poeta, Volta Redonda)
A vereadora do
Rio de Janeiro Marielle Franco, juntamente com o motorista Anderson Gomes, fora
barbaramente assassinada com extensos nove tiros, quatro dos quais,
cirurgicamente projetados em sua cabeça. Isso definitivamente não é detalhe!
Como não é filigrana contar que Marielle era mãe, jovem, pobre, negra,
militante dos direitos humanos e socialista.
Seu assassinato
deve ser melhor compreendido e interpretado; já é questão latente e nevrálgica
do tamanho do Brasil e evidentemente, não é fruto somente da ação de um
indivíduo ou grupo de indivíduos; bem mais complicado, o monstro que levou sua
vida é antes, um tempo que sintetiza contemporaneamente a guerra aberta e
escancarada entre as classes sociais e que, como bem atestamos, segue firme,
profunda, teimosa e em definitivo, sem prazo de encerramento. Aliás, poucas as
vezes um crime se apresentou com carga simbólica tão densamente presente.
Quem matou
Marielle? Eu digo que foi o tempo! Isso mesmo... O tempo! Não me refiro a esse
tempo cronológico, esse tempo que se mede, que se conta, 'de relógio'. Nada
disso! É o tempo como tendência, como movimento e que não está flutuando,
flanando caótico, boiando sobre as existências humanas mas que, ao contrário,
se apresenta, se revela íntegro sobre as coisas materiais e imateriais. Esse
tempo está nas ideias, nos discursos e na estética; nas artes, em suas
produções e na política; em discursos raivosos, de pleno ódio e nas relações
que o poder estabelece, sobretudo, para com os menores e desassistidos.
É tempo integralmente espraiado sobre o Estado e seu
funcionamento, suas prioridades, opções e formas de acontecimento. Marielle
está e vai continuar no tempo; neste tempo que produz contradições, conflitos e
em suas consequências absolutamente imprevisíveis.
Fui claro? Não,
claro que não... É que não é possível ser claro com algo tão doloroso, tão
profundamente dramático e sofrível. É possível a dor, sua expressão e, quem
sabe, algum dialogo a respeito. Particularmente, estou arrasado, acho-me um
caco humano, "um pote até aqui de mágoas" como canta o poeta; uma
chaga aberta e que sangra. Vou falar dessa dor...
Haverá algum
sentido na morte de Marielle se, e somente se, for politizada; não poderia ser
diferente; é que é assassinato político; é acontecimento abertamente político;
como são políticos os cortes sistematizados de verbas para a saúde, educação,
moradia e assistência social; como, da mesma forma, é determinação política a
matança fabril de cinquenta mil garotos negros ao ano nas cidades do Brasil; o
genocídio de mais de quarenta mil mulheres pela bala, fome, estupro ou
desamparo puro e simples.
O drama é que
Marielle não vai parar de morrer... Sua segunda morte, que já está se dando,
acontece pelo conceito; se entendermos, vejam bem, que sua execução fora apenas
a "violência" do Rio de Janeiro a estaremos eliminando pela segunda
vez. Por obséquio, não sejamos tão ingênuos assim... Essa moça não fora morta
pela "violência"; não digam isso... É tudo o que os donos do poder
querem ouvir; é a narrativa dos sonhos porque os isenta, inocenta e legitima
para continuarem em sua marcha por poder e mais poder.
Aliás, o discurso fácil e em drágeas da violência é apenas a
recepção do prédio; é preciso entrar, tomar o elevador e ir para o andar mais
alto para, de lá, ver a paisagem, contemplar o "deserto do real"
milimetricamente concebido e construído para engolir Marielle e que está me
devorando e devorando a cada um de nós.
Retomo a ideia
de tempo porque fora justamente esse tempo feito, alimentado e potencializado
que conferiu condição, sentimento, afeto e política para que essa jovem
liderança fosse executada de maneira tão vil e covarde. E o tempo não é como a
gravitação universal que nos traz o dia ou a noite; é produzido, manufaturado;
é, por sinal, objeto de disputas e está carregado de intencionalidades; os
vencedores lhe impõe valor, sentido, dinâmica e forma de atuação.
E é essa
trágica e específica lógica que assassinou Marielle! E a sinistra pedagogia da
sua morte me tocou profundamente! Justo na cabeça! Gostaria de pensar sobre
isso! É que a cabeça de um ser humano é a convergência da luz, é o vértice
ótimo onde ideias são formadas a partir de conceitos, sensibilidades,
aprendizados, percepções e experiências pessoais. É ali que reside o
pensamento, o instrumental fundamental para o debate, a exposição, a
contradita, a defesa daquilo que é certo, adequado e justo.
E logo ela, uma
mulher de ideias, palavras, intervenções e defensora de políticas para os que
mais precisam... É o tempo que levou e não levou Marielle. Que a matou e que
jamais irá conseguir matá-la!
Agora Marielle Franco vai ser semeada em todo esse país de
sangue para darmos forma para um tempo de justiça, belezas e poesias.
*Economista, cientista
político, doutorando na USP e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)
Visto no: Brasil 247
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