14 maio 2018

O tempo de Marielle – por Ângelo Cavalcante*



"... Aquela, que por um momento de humanidade, sonhou com a justiça, lutou por liberdade e ousou ir mais alto do que permitia sua cor". (Anielli - Poeta, Volta Redonda)
           
            A vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, juntamente com o motorista Anderson Gomes, fora barbaramente assassinada com extensos nove tiros, quatro dos quais, cirurgicamente projetados em sua cabeça. Isso definitivamente não é detalhe! Como não é filigrana contar que Marielle era mãe, jovem, pobre, negra, militante dos direitos humanos e socialista.
            Seu assassinato deve ser melhor compreendido e interpretado; já é questão latente e nevrálgica do tamanho do Brasil e evidentemente, não é fruto somente da ação de um indivíduo ou grupo de indivíduos; bem mais complicado, o monstro que levou sua vida é antes, um tempo que sintetiza contemporaneamente a guerra aberta e escancarada entre as classes sociais e que, como bem atestamos, segue firme, profunda, teimosa e em definitivo, sem prazo de encerramento. Aliás, poucas as vezes um crime se apresentou com carga simbólica tão densamente presente.
            Quem matou Marielle? Eu digo que foi o tempo! Isso mesmo... O tempo! Não me refiro a esse tempo cronológico, esse tempo que se mede, que se conta, 'de relógio'. Nada disso! É o tempo como tendência, como movimento e que não está flutuando, flanando caótico, boiando sobre as existências humanas mas que, ao contrário, se apresenta, se revela íntegro sobre as coisas materiais e imateriais. Esse tempo está nas ideias, nos discursos e na estética; nas artes, em suas produções e na política; em discursos raivosos, de pleno ódio e nas relações que o poder estabelece, sobretudo, para com os menores e desassistidos.
É tempo integralmente espraiado sobre o Estado e seu funcionamento, suas prioridades, opções e formas de acontecimento. Marielle está e vai continuar no tempo; neste tempo que produz contradições, conflitos e em suas consequências absolutamente imprevisíveis.
            Fui claro? Não, claro que não... É que não é possível ser claro com algo tão doloroso, tão profundamente dramático e sofrível. É possível a dor, sua expressão e, quem sabe, algum dialogo a respeito. Particularmente, estou arrasado, acho-me um caco humano, "um pote até aqui de mágoas" como canta o poeta; uma chaga aberta e que sangra. Vou falar dessa dor...
            Haverá algum sentido na morte de Marielle se, e somente se, for politizada; não poderia ser diferente; é que é assassinato político; é acontecimento abertamente político; como são políticos os cortes sistematizados de verbas para a saúde, educação, moradia e assistência social; como, da mesma forma, é determinação política a matança fabril de cinquenta mil garotos negros ao ano nas cidades do Brasil; o genocídio de mais de quarenta mil mulheres pela bala, fome, estupro ou desamparo puro e simples.
            O drama é que Marielle não vai parar de morrer... Sua segunda morte, que já está se dando, acontece pelo conceito; se entendermos, vejam bem, que sua execução fora apenas a "violência" do Rio de Janeiro a estaremos eliminando pela segunda vez. Por obséquio, não sejamos tão ingênuos assim... Essa moça não fora morta pela "violência"; não digam isso... É tudo o que os donos do poder querem ouvir; é a narrativa dos sonhos porque os isenta, inocenta e legitima para continuarem em sua marcha por poder e mais poder.
Aliás, o discurso fácil e em drágeas da violência é apenas a recepção do prédio; é preciso entrar, tomar o elevador e ir para o andar mais alto para, de lá, ver a paisagem, contemplar o "deserto do real" milimetricamente concebido e construído para engolir Marielle e que está me devorando e devorando a cada um de nós.
            Retomo a ideia de tempo porque fora justamente esse tempo feito, alimentado e potencializado que conferiu condição, sentimento, afeto e política para que essa jovem liderança fosse executada de maneira tão vil e covarde. E o tempo não é como a gravitação universal que nos traz o dia ou a noite; é produzido, manufaturado; é, por sinal, objeto de disputas e está carregado de intencionalidades; os vencedores lhe impõe valor, sentido, dinâmica e forma de atuação.
            E é essa trágica e específica lógica que assassinou Marielle! E a sinistra pedagogia da sua morte me tocou profundamente! Justo na cabeça! Gostaria de pensar sobre isso! É que a cabeça de um ser humano é a convergência da luz, é o vértice ótimo onde ideias são formadas a partir de conceitos, sensibilidades, aprendizados, percepções e experiências pessoais. É ali que reside o pensamento, o instrumental fundamental para o debate, a exposição, a contradita, a defesa daquilo que é certo, adequado e justo.
            E logo ela, uma mulher de ideias, palavras, intervenções e defensora de políticas para os que mais precisam... É o tempo que levou e não levou Marielle. Que a matou e que jamais irá conseguir matá-la!
Agora Marielle Franco vai ser semeada em todo esse país de sangue para darmos forma para um tempo de justiça, belezas e poesias.

*Economista, cientista político, doutorando na USP e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)


Visto no: Brasil 247

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