Estar sob o olhar
alheio é uma experiência perturbadora. Como dois juízes prontos para nos
sentenciar, os olhos refletem valores adquiridos a partir da nossa convivência
em sociedade, por isso são tão eficazes em nos amedrontar, intimidar,
constranger, inferiorizar, humilhar, porque são prismas inseridos na nossa
personalidade. Por estarem em todos os cantos, sobretudo agora com a
redemocratização da internet, somos cada vez mais alvos fáceis de olhares
tecnológicos das câmeras de vídeo, dos celulares, além da própria TV, todos
controlados pela visão humana. Esses Argos da atualidade são ainda mais
vigilantes quando o assunto é a estética alheia. Semelhante ao gigante da
mitologia grega, os sentinelas da beleza estão em toda parte prontos para
rechaçar quem se atreve a fugir da normalidade imposta pelos paradigmas da
beleza moderna, sobretudo as mulheres.
Desde que me descobri
desencaixada dos padrões da moda, tratei rapidamente de me por no meu lugar.
Não se tratava de me inferiorizar. Nada disso. Adquiri precocemente a
maturidade de pensamento sobre os ditames impostos pela indústria da beleza.
Nesse período de reflexão, eu tinha três caminhos: ou me entregava aos apelos
mercadológicos do que é ser/estar bonita, ou correspondia às expectativas
sociais da beleza dentro dos meus limites, de acordo com aquilo visto por mim
como aceitável, saudável e, sobretudo, barato; ou abolia qualquer alternativa
de me encaixar no modelo alta, magra, cabelo liso, dando literalmente um foda-se
aos que se incomodavam com as minhas formas “disformes.” Antes de decidir tomar
um desses rumos, experimentei todos eles. Depois de uma infância e adolescência
buscando a aprovação das colegas de escola, descobri que só seria aceita se me
moldasse ao pré-estabelecido, o qual para mim, na época, parecia o certo.
Então, fiz inúmeras
dietas, pus química para alisar meus cachos, aderi a academia, gastei com
roupas caras, usei maquiagens importadas, mas nenhum esforço era o bastante
para afastar de mim aqueles olhares que me seguiam dizendo nas entrelinhas: “você não faz parte disso.” Se estava na
academia, minhas ‘companheiras’ de musculação não disfarçavam o sentimento de
despeito nas comparações entre o meu corpo e o delas, que mesmo não sendo
gorda, tão pouco era sarada. Qualquer celulite, estria, gorduras localizadas,
eram analisadas minuciosamente por todos, abrindo um debate fútil sobre como
cheguei aquele estado “deplorável” e o que poderia ser feito para mudar. Desamparada
pelas minhas formas, deixava-me ser julgada, por acreditar que naquelas
palavras havia mais boas intenções do que maledicências. Porém, os vigilantes
da estética nunca se davam por satisfeitos, mesmo eu fazendo tudo dentro do
possível para atender suas cada vez mais egocêntricas expectativas.
Mesmo assim eu insistia.
Mentia em voz alta na esperança das palavras se tornarem verdade, afastando
aqueles que me vigiavam. Não funcionou. Os olhares de repreensão eram mais
onipresentes. Estavam em casa, no meu trabalho, nas ruas, nas festas, na
televisão, na frente do meu espelho. Onde houvesse reflexo, era possível me
enxergar sendo examinada por todos, por mim mesma. Passei a me sentir
frustrada, por pouco não entrei num estágio de depressão. No ápice da busca
pelo pertencimento, os males da saúde não tardaram a se manifestar. Passei a
comer cada vez menos e sem nenhuma orientação médica. Fazia exercícios em
demasia. Nessa ânsia, saí do manequim 40 para o 36, mas estava debilitada,
fraca, o que resultou numa internação às pressas com diversos problemas, entre
eles anemia, exaustão física, desnutrição, baixa autoestima, etc. Quase morri.
Todavia, mesmo visivelmente fragilizada, não deixei de ser perseguida pelos
vigilantes da estética, que agora me olhavam de forma ainda mais repreensiva.
Quando cheguei a este
nível de autodepreciação, achei que seria o fim. Até que, meses depois, já com
a saúde restabelecida, passei por uma loja e vi um manequim vestido com uma
roupa linda. Fiquei em transe do outro lado, olhando aquele modelito e me vendo
no reflexo da vitrine. Era evidente que não caberia naquele modelo, mesmo ainda
estando magra após quase fenecer. Nessa neura, tive a impressão de que aquele
fantoche travestido a minha frente tinha ganhado vida, julgando a minha
estúpida decisão de talvez comprar aquela peça cara, a qual não ficaria bem no
meu corpo. Assustada com aquilo, vi que era hora de dar um basta ao cárcere de
onde tinham me aprisionado. Olhei fixamente para o manequim, para os
vendedores, para a loja, estendi meu olhar por 360° graus pela rua e gritei
feito uma louca: fodam-se os vigilantes da estética. Minha voz saiu como um
brado e todos os olhos, que costumavam me olhar de soslaio analisando minhas
formas, agora estavam voltados para mim, possivelmente achando que enlouqueci.
Nunca estive tão lúcida. Depois saí aliviada e passei a ignorar as vistas
alheias.
A química do meu cabelo
caiu, meu corpo ganhou contornos naturais, uso maquiagem agora apenas em
eventos importantes e em pouquíssima quantidade, roupas caras nem pensar e
mantenho uma alimentação saudável, mas sem excluir aquilo que me dá prazer.
Faço caminhada às vezes, mais para manter minha vitalidade do que para perder
quilos e atrair os holofotes da estética à minha direção. Evidentemente os
olhos estéticos da sociedade continuam a me perseguir. A mim e a todas as
mulheres. Entretanto, seus juízos de valores não me afetam como antes. Percebi
nesse processo que quanto mais cedemos às cobranças desses olhares mais ficamos
submissos aos seus caprichos. Qualquer imperfeição precisava ser corrigida para
que os vigilantes se dessem por satisfeitos. Acontece que tal sensação era
momentânea e rapidamente surgia uma nova exigência para nos aprisionar.
Infelizmente a maioria de nós não consegue escapar desse ciclo vicioso, vivendo
à mercê do estabelecido pelo arquétipo ideal da beleza por toda a vida. Eu
recusei tamanha subserviência e pago um preço por isso, como todas e todos que
irrompem com o que é/está padronizado. Mas os ganhos pessoais são impagáveis.
Apesar dos avanços na
questão da aceitação do corpo feminino em sua multiplicidade, há um longínquo caminho
até que todas nós nos sintamos encorajadas a romper esse casulo ditado pela
indústria da moda. Até esse dia, muitas meninas continuarão a fazer dietas
mirabolantes, destruirão suas fibras capilares originais com alisamentos,
gastarão fortunas em academias, roupas e maquiagens caras, perderão tempo vendo
tutoriais que reproduzem mais a beleza padrão do que aquela real, acessível e
palpável, e, no fim, poucas verão o quão infrutífero é querer enquadrar a capa
corpórea enquanto o interior, que mais importa, não é valorizado. Isso não
significa se descuidar, virar um eremita ou aderir a uma moda hippie como forma
de revolta ao sistema. Trata-se de superar o que nos aflige, os vigilantes da
estética, apelidados muitas vezes de “vigilantes do peso”, cuja preocupação com
a nossa saúde está em enésimo plano. O que eles focam é em regular nossas
formas, tolerando-as ou excluindo-as. Não
permita que eles ganhem ainda mais força sobre aquilo que é de total autonomia
sua, seu corpo. Eles não têm esse direito. Só nós possuímos a plena capacidade
de nos aceitar, mas para isso precisamos quebrar esse feitiço
televisivo/midiático/fashion/cosmético/fitness que puseram sobre nós.
Querem me vigiar? Então,
olhem! Estou/sou linda. Admirem meus cabelos naturais em meio a esse mar de
progressivas. Olhem minhas curvas autênticas feitas por Deus e não moldadas em
salas de cirurgias. Meu manequim voltou aos 40. Minhas roupas condizem com o
meu corpo e bolso. Maquiagem? Só se for uma data muito especial. Como o que
quero, sem abuso, mas desencanei das dietas mágicas que prometem o
irrealizável. Amo na mesma medida um prato de salada e um pedaço generoso de
bolo de chocolate. Gosto de fazer exercícios, porém não quero mais perder tempo
em academias que só me viam como experimento, como uma estranha fora do ninho. Minhas
celulites, estrias, são marcas da feminilidade do que é ser mulher e precisam
ser vistas com respeito, não como inimigas da nossa identidade. Não sou melhor
ou pior do que ninguém por querer ou não fazer a sobrancelha, hidratar meus
cabelos, fazer depilação, tomar shakes emagrecedores, usar toneladas de cremes
e cosméticos, ou abolir a tudo isso. Minha vaidade não se restringe às
interferências que faço no meu corpo. Trata-se, antes de tudo, de
autenticidade. Essa sou eu agora. Aquela que sempre fui, na verdade, mas
ocultada pela pressão do culto à forma. Não sou plenamente livre, ainda.
Nenhuma de nós é/será, mas me esforço para ser a menos aprisionada possível.
Então, Argos modernos,
lidem com isso ou fodam-se!
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