Dentre os muitos
clichês que escutei ao longo da minha vida sobre os relacionamentos amorosos,
um em especial merece ser resgatado do senso comum, ganhando ares de
importância filosófica. Trata-se da assertiva a qual diz que o amor é cego. A polissemia nesse
enunciado é o que garante a ele ares de relevância. Isto porque, o amor- esta
instância superior ansiada por todos e, por isso, supervalorizada ao longo da
história – obscurece a visão dos mais apaixonados, fazendo-os idealizar um
projeto de vida a dois que deixaria os mais açucarados autores de novelas
insossos em suas criações. Por ser o patriarca dos sentimentos, sua supremacia
se dá através do desejo de poder desfrutar uma vida plena com a pessoa amada,
mesmo que para isso crie-se um mundo de fantasia onde as imperfeições do
relacionamento e, sobretudo, do parceiro (a), passem despercebidos ou sejam
ofuscados pela nossa obcecada vontade de viver um romance romântico. Quando
aquilo que nos nublava à vista se dissipa, nos damos conta de que o que
achávamos ser amor estava próximo de uma patologização da nossa identidade,
algo que impedia a nossa existência de ver o sol, de ver a vida que nós
perdemos.
Foi essa a maneira que
encontrei de tirar o engasgo da garganta após ler A Garota no Trem, de Paula
Hawkins. A narrativa é centrada na história de Rachel, uma mulher que faz um
percurso diário de uma cidade a outra na Inglaterra de trem, passando por trás
de casas onde ela acompanha a rotina de um casal, denominados por ela como Jess
e Jason, cuja relação aparentemente perfeita, a faz idealizar a personalidade
deles, suas carreiras, histórias de vida e, principalmente, seu relacionamento.
A princípio, Rachel fica entusiasmada com o que vê: as carícias entre aqueles
dois desconhecidos, a forma como se portavam, mesmo sabendo que havia um trem e
que pessoas poderiam estar visualizando sua rotina. Aquele convívio harmonioso se
torna inspiração para aquela espectadora matinal. De tanto observar, ela
elabora uma cadeia de possibilidades para os pseudônimos Jess e Jason,
atribuindo peculiaridades a eles a partir de uma óptica simplista focada na
aparência de ambos. Entretanto, tudo muda, quando Rachel vê um terceiro
elemento, desconhecido até então por ela, irromper nesse conto de fadas visto dos
trilhos. Daí em diante, a história ganha longos contornos até o seu
surpreendente fechamento.
Para quem está
acostumado a ler thrillers, certamente sabe que tais enredos costumam ganhar
intensidade ao folhear das páginas. Para mim, que li pouquíssimos livros desse
gênero – e já havia me esquecido desse recurso – foi meio maçante de início ler
as primeiras páginas de A Garota no Trem. Confesso que não foi um livro que me
ganhou de primeira. Ficava constantemente esperando que algo desse mais
velocidade a trama, mas, mesmo com capítulos curtos, a história seguia lenta,
como se precisasse esmiuçar cada detalhe antes de ganhar a celeridade adequada,
ou pelo menos esperada pelo leitor. Então, levemente entediado, persisti e não
me arrependi. Após terminar o livro, compreendi o porquê de sua narrativa
morosa: era preciso detalhar cada panorama dos personagens, entender seus
dramas, conflitos, realidades, até fazer o cruzamento de todas as peças.
Decerto, a minha crítica quando ao tempo não deve ser vista como algo que
desqualifica o livro. Em sobretudo, é uma boa obra. Apenas leitores
desacostumados com esse gênero podem sentir o estranhamento que eu senti.
Aqueles menos perseverantes, poderiam incorrer pelo erro de abandonar a
leitura, acreditando não valer a pena dar continuidade. Caso você faça parte
desse segundo grupo, sugiro retomar a leitura o quanto antes, pois não há
razões para se arrepender.
Dito isso, é preciso
retomar à máxima da obra, o amor. Este sentimento é avaliado a partir de uma óptica
novelesca, com momentos evidentes de pieguice, melodrama, psicopatia,
entretanto é a manipulação desse sentimento que confere status quo A Garota no
Trem. Quando se vive numa relação em que os dois não estão no comando, mas
apenas uma das partes, o que ocorre é a dissimulação do que se vive, fato
responsável pelos inúmeros desentendimentos, brigas, traições e toda a sorte de
violências físicas, verbais e emocionais derivadas disso. Não se pode permitir
o outro controlar o nosso amor. Estar com alguém não quer dizer se submeter a
esse alguém. Quando não é feita esta separação clara, substituímos o eu pelo
outro, e de tal totalidade há a anulação de uma existência em detrimento da
outra. Em outras palavras, o fato de amar alguém não significa nos desamar. É
preciso encontrar um equilíbrio. O problema é que a tradição
literária/midiática/hollywoodiana ganha milhões de adeptos há gerações nos
dizendo o oposto, fazendo-nos acreditar no amor como sacrifício, penitência, o
que não deixa de ser verdade por completo, mas não se limita a isso. Então,
desprovidos da visão, somos guiados pela elaborada ideia de amor doentio que
nos foi dada como a única possível.
Por essa razão, A
Garota no Trem nos prende, porque percebemos a quebra desse sonho romanesco a
partir da fantasiosa obsessão de Rachel por aquele casal. Evidentemente que
ajuda entender a história da personagem central, recém separada, machucada
emocionalmente, submersa no vício e indiscutivelmente perdida, perfil típico
das mulheres abandonadas, depois de saírem – ou serem expulsas – de relações
abusivas. No caso dela, nada disso é inverossímil, todavia, não passa de mais
uma estratégia social responsável por colocar um dos pares, geralmente a
mulher, no patamar de vulnerabilidade após o término de uma relação, numa clara
alusão ao machismo ainda vigente nesses tipos de arranjo. Hawkins, para
descontruir tal atmosfera, precisa validar Rachel, legitimar a sua dor ao longo
do livro, mas sem vitimizá-la descaradamente. É preciso que o leitor entenda o
estado doentio dela, a obstinação pela vida dos desconhecidos Jess e Jason –
que na verdade se chamam Megan e Scott – sua compulsão pelo álcool, o
descrédito dos amigos, familiares, para a partir daí buscar razões
justificáveis capazes de explicar porque ela chegou tão rapidamente ao fundo do
posso. Ninguém se afunda em si mesmo se a atração em levá-lo para baixa seja
mais forte do que as mãos que tentam resgatá-lo.
Hawkins faz isso:
resgata uma mulher desacreditada por todos, preenchendo as suas lacunas,
elucidando suas dúvidas, ao passo que desnuda as suas dores. Não é uma tarefa
simples. Quando estamos fragilizados emocionalmente, apenas os olhares
pesarosos nos enxergam, os mais racionais se limitam a julgar nossa dor, mas
nunca em entendê-la por completo. Para piorar o estado de Rachel, aquela que
ela chamava de Jess desaparece misteriosamente, levando a traumatizada
protagonista a se envolver ainda mais na vida daqueles indivíduos, até então
totais desconhecidos. Soma-se a isso os constantes encontros e desencontros com
o seu ex-marido, Tom; a compaixão desmedida da amiga Cathy e agora a quebra de
expectativa de Rachel quando esta descobri, a partir do sumiço de Megan, que a
realidade vivida por aquele casal não passava de uma quimera. Eis ai mais uma
intenção do livro: nos mostrar que relacionamentos perfeitos não existem,
sobretudo vistos de perto. Dessa forma, é possível entender o recurso da
distância. Ao passar de trem, a protagonista tem a esperançosa sensação de que
há pessoas felizes com os seus respectivos parceiros, diferentemente dela, que
foi abandonada pelo seu. É desse alento que reside a dissimulação do amor, em
achar que este sentimento é isento de imperfeições, fazendo dos amantes seres
mágicos imersos numa vida de devoção cega um pelo outro. Apesar de instantes
lúdicos dessa natureza serem possíveis, o amor real costuma vir carregado de
provações a serem superadas.
Guiando-nos a seu
belprazer por rotas onde só o amor doentio conhece, A Garota no Trem merece ter
seu lugar entre as obras modernas de destaque. Apesar de instantes de clichê –
típicos do gênero thriller e não da obra propriamente dita – a obra esclarece
as dúvidas da personagem sobre o que parecia ser um relacionamento perfeito
entre Megan e Scott, ao passo que, por extensão, nos alerta dos perigos do amor
patológico. Tudo isso através do trem, mais poderia ser outro mecanismo de
mobilidade qualquer. O enfoque aqui também reside nessa nossa falha de achar
que sempre a vida do outro é melhor; seus relacionamentos são mais intensos e
que o fracasso do fim da relação que tínhamos com alguém se resume a um
culpado, o eu, quando na verdade não é o eu que erra, e sim o nós, já que se
trata de um convívio entre duas pessoas. Então, quando culpabilizamos apenas
uma das partes, perdemos a direção, o respeito próprio e mútuo, tão caros à
dignidade humana. Infelizmente, não somos educados e ver o amor a dois por esse
ângulo, limitando nosso alcance ocular naquilo que nos apresenta: o amor
rasgado, intensamente doce, melado, escorregadio, até carregado de privações,
mas todas superáveis, levando-nos a descarrilhar completamente quando
percebemos que, na prática, o amor exacerbado pode nos lançar literalmente para
fora do trem.
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