Não sou uma teórica feminista, sou alguém que se tornou feminista pra poder sobreviver. Feminismo pra mim é um modo de vida, foi o que me libertou da vontade de ser qualquer outra coisa, menos eu. Mas demorei muito tempo até conseguir chamar isso de feminismo, por muitas razões. Então o que vou contar aqui é também parte da minha história. Há muitas coisas que gostaria de falar para outras mulheres, na esperança de ajudar alguém como eu fui ajudada.
Às vezes parece que estamos sozinhas e estas coisas só acontecem conosco, mas muito do que passamos é compartilhado.
Acredito que o receio que muitas mulheres têm de se dizer feministas, é também o receio de reconhecer que suas vidas não são assim tão únicas quanto imaginam. Que somos, na verdade, seres moldados para a feminilidade e que esta feminilidade é uma forma de prisão. E é claro que a prisão mais eficaz será aquela que as pessoas prisioneiras puderem pensar que gostam, ou que escolheram.
Há algo que constantemente me pergunto: como fazer as mulheres perceberem que nosso problema não é individual, que nosso sofrimento não é algo meramente pessoal que poderia ser resolvido “no íntimo”?
Conversando com uma amiga, que não entendia porque ainda precisamos de feminismo, apesar de todos os índices de violência contra a mulher e desigualdade de gênero, ela me questionou: mas por que você se tornou feminista?
A resposta a fez perceber que embora eu estivesse falando de mim e das minhas experiências, talvez ela também pudesse se dizer feminista, pois a despeito de todas a nossas diferenças compartilhamos desse mesmo sentimento profundo de inadequação em relação à nossa própria identidade “feminina”.
Então, minhas irmãs, eu vou falar de mim. Mas não se surpreendam se isso as recordar algo, e doer em vocês como dói em mim.
Me tornei feminista porque cresci ouvindo para me comportar como uma mocinha, para sentar de pernas fechadas, para comer de boca fechada, para ficar de boca fechada.
Me tornei feminista porque fui ensinada que todas as brincadeiras divertidas dos meninos seriam para mim perigosas. Por até hoje só saber subir em árvore de maneira desajeitada. Por ter tido todo meu corpo moldado e condicionado aos movimentos comedidos do espaço privado.
Me tornei feminista por andar de cabeça baixa, por ter aprendido a ter medo, por não poder ficar até tarde na rua. Por saber que nenhum espaço seria seguro para mim, pela anatomia do meu corpo ser a anatomia do corpo violável e não do corpo de viola e violenta.
Me tornei feminista pelos abusos que sofri, facilitados pela educação de silêncio, culpa e domesticidade, e assim silenciados toda uma vida junto com a inocência engolida com o bolo que eu ajudava a fazer e até hoje sei a receita.
Me tornei feminista por ter nojo da minha menstruação, do meu corpo, dos meus pelos. Por crescer sentindo que jamais seria bonita o suficiente, e sem isso, eu nada seria.
Me tornei feminista por ter sido educada desde a infância para amar um homem, desejar um homem, depender de um homem para ter minha identidade respeitada, para, finalmente, ser “a mulher de alguém”.
Me tornei feminista por perceber que quase todas as pessoas importantes – que aparecem nos livros e nos jornais, que escrevem os livros e jornais – são homens.
Me tornei feminista porque até deus é homem.
Me tornei feminista pelo sentimento ambíguo de medo, reverência e dependência a tudo que diz respeito ao masculino.
Me tornei feminista por achar que precisava desesperadamente conquistar um homem. Por mutilar meu corpo para isso, por aceitar novas regras dentro do meu mundo de regras.
Me tornei feminista por ter sido ensinada a odiar mulheres, assim como os homens as odeiam, e a vê-las como minhas adversárias no objetivo de adentrar, ainda que subalterna, o mundo dos homens através do passaporte de ser mulher de um homem.
Me tornei feminista por todos os relacionamentos abusivos, pela imposição de um desejo que nunca foi meu. Para poder questionar que desejo é esse que me faz um ser inferior, submisso, subserviente. Que gozo é esse que me simboliza escrava e não deusa.
Me tornei feminista pelos olhos abertos no escuro e a dor no corpo.
Me tornei feminista pelo esforço não recompensado no trabalho. Pela gagueira com o público. Pelo nó na garganta em todas as reuniões a portas fechadas.
Me tornei feminista pelas doenças psicológicas que nenhum remédio curava.
Me tornei feminista pela humilhação de saber que as ruas não me pertencem, que meu corpo é público, é julgável, é tocável. Por saber que tenho que me esconder e, se isso não for o suficiente, tenho que correr. Mas, se isso tampouco for o suficiente, a culpa continua sendo minha.
Me tornei feminista porque os homens são ensinados a odiar mulheres.
Me tornei feminista porque os homens são ensinados a desejar mulheres obsessivamente e a detestar, dominar e corromper o objeto de sua obsessão sexual.
Me tornei feminista porque o feminino, no mundo dos homens, é a Mãe Natureza à disposição da destruição, do abuso, do desrespeito. O ser feito para ofertar terna e eternamente.
Me tornei feminista porque entre puta e santa, entre vadia e mãe, a escolha é entre duas prisões dependentes do masculino.
Me tornei feminista porque sempre fui apenas o outro daquele a quem é permitido ser.
Me tornei feminista porque dizem “nem todos os homens”, mas, sim, é o sofrimento de todas as mulheres.
Estou completamente apaixonada por esse texto.
ResponderExcluirApaixonadíssima; por ti, e pelo texto! Sou tua aluna do CPV. <3
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