Algumas militantes LGBTs nos últimos dias denunciaram em suas timelines um blog chamado Mais Discreto. Por alto, trata-se de um canal de entretenimento e informações pertinentes (na avaliação dos criadores do blog) para homens gays, tipo um yahoo perguntas pras bichas. Em especial, chamou a atenção das militantes um post cujo título é: Dicas de como não ser um gay afeminado.[1]
Sim, isso mesmo. A ideia era fazer um tutorial sobre como ser mais másculo, menos pintosa, mais enrustido. O blog trazia 5 conselhos:
1º Não fale gesticulando com as mãos, acaba denunciando alguma coisa já que é um pouco feminino
2º Não ande rebolando, se observar quando estiver andando ajuda bastante a evitar esse hábito que muitos tem e não sabem como tirar, pedir a amigos (íntimos) que façam correções também ajuda
3º É fã de alguma Banda? Cantora? não demonstre isso , ou pelo menos não faça desse fanatismo uma coisa pública
4ª Postura ao andar e sentar também é importante, andar com a bunda empinada ou mesmo sentar de forma irregular pode acabar “denunciando” alguma coisa
5ª Quando ver qualquer foto de homem, ou mesmo um homem bonito é importante olhar de forma discreta se isso for indispensável nem mesmo as mulheres gostam de ser “secadas” por homens, imagine – se na situação oposta
A advertência é a seguinte: cara, quer ser homossexual? Beleza, mas viadinho já é vandalismo! É um processo de construção do gay ideal, sobre o qual temos muito o que refletir. Misógino por excelência, ele formula pra gente que quanto mais distante do que se entende por feminino, mais aceitável a subjetividade. Se voltarmos e lermos essas dicas com outros olhos veremos, na verdade, um belo tutorial com tudo que um gay pode fazer para não parecer uma “mulher”. Gay massa é gay Homem: quem nunca ouviu isso?
Naturalizando o binarismo de gênero que as feministas denunciam há muito tempo, o texto traz pra gente o que são coisas que homens devem fazer em oposição às coisas que as mulheres fazem. O gay ideal, por isso, tem que coçar o saco, cuspir no meio da rua, peidar na sala de TV, não lavar o prato, gostar de futebol, falar grosso e de preferência sem muita demonstração de afeto, ser pintudo, sarado e bundudo, porque ser gay ideal também é ser um projeto de homem ideal. Projeto porque o homem ideal é um símbolo heterossexual, mas o gay ideal herda outros atributos deste, sobretudo a cor da pele: de preferência branca!
Interessante observar que a masculinidade aqui cria nivelamentos e aparece como um termômetro que afere o quão gay você é – e numa sociedade homofóbica o mais legal é ser menos gay – como se isso existisse. A violência nesse discurso se intensifica ainda mais porque consegue se travestir muito bem de segurança e proteção. Nos comentários no blog é possível ler pessoas que adoraram a iniciativa porque acreditam que ser afeminado dá muito trabalho, se sofre mais discriminação, mais preconceito, tudo é mais difícil. A mentalidade é: se o mundo é homofóbico, melhor que eu não dê pinta para não ser alvo.
Isso parece até fazer sentido: se você apanha quando anda de mãos dadas com sua namorada, melhor não fazer isso, certo? Errado! Com essa postura acabamos criando uma lógica esquisita, que não toca no cerne do problema – a realidade da homofobia -, mas apenas criminaliza a própria vítima. A resposta que nós damos ao patrão que demitiu o funcionário é que na verdade o problema foi o cara ter dado sinais da sua homossexualidade; o erro, no fundo, é ser gay na frente dos outros.
Chega-se, aqui, àquela velha problemática do público versus o privado. Essa dicotomia é uma presença constante nas sexualidades desviantes. Fazendo o recorte para gays, lésbicas e bissexuais, Sedgwick em A Epistemologia do Armário[2], sustenta que o armário é a grande opressão LGBT, justamente porque ele significa o não-dito, o proibido, porque ele joga uma vida pra dentro de quatro paredes.
Se analisarmos algumas expressões cotidianas veremos como essa necessidade de esconder algo é bem explícita. Por exemplo: quem nunca foi perguntado: “Sua mãe sabe de você…?” Ou então ouviu: “Nossa, não sabia que fulano era.” Vem sempre aquele pigarro na garganta e a gente logo se lembra que não se pode falar a palavra que todo mundo sabe qual, ainda mais se tiver uma criança por perto. Gay, viado, sapatão, travesti… são palavras que ofendem, é feio falar e isso tudo é processo do armário, que traz o privado para marginalizar uma identidade.
“Mesmo num nível individual, até entre as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que não estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas. Além disso, a elasticidade mortífera da presunção heterossexista significa que, como Wendy em Peter Pan, as pessoas encontram novos muros que surgem à volta delas até quando cochilam. Cada encontro com uma nova turma de estudantes, para não falar de um novo chefe, assistente social, gerente de banco, senhorio, médico, constrói novos armários cujas leis características de ótica e física exigem, pelo menos da parte de pessoas gays, novos levantamentos, novos cálculos, novos esquemas e demandas de sigilo ou exposição.
Mesmo uma pessoa gay assumida lida diariamente com interlocutores que ela não sabe se sabem ou não. É igualmente difícil adivinhar, no caso de cada interlocutor, se, sabendo, considerariam a informação importante. No nível mais básico, tampouco é inexplicável que alguém que queira um emprego, a guarda dos filhos ou direitos de visita, proteção contra violência, contra “terapia”, contra estereótipos distorcidos, contra o escrutínio insultuoso, contra a interpretação forçada de seu produto corporal, possa escolher deliberadamente entre ficar ou voltar para o armário em algum ou em todos os segmentos de sua vida.”
Quando a gente diz que homofobia mata não necessariamente reivindicamos o sangue, mas também nos lembramos de posts como o desse blog, que empurra subjetividades pra debaixo do tapete, poda a irreverência em nome da construção de um personagem que vai sempre estar à margem, em nome do bom convívio com o homofóbico. Entende bem errado quem acha que o movimento LGBT busca tolerância, busca o direito de se enfurnar em quartos e becos escuros; se limita muito aquele que se contenta com o direito de participar de um aplicativo temático para pegação no celular, que é mais uma apropriação dessa guetificação por parte de algumas empresas do que uma inclusão de fato: é contra essa lógica que nos obriga a recuar que lutamos e reivindicamos as purpurinas.
Ser bafoneira é uma necessidade histórica, mas também o é a responsabilidade de não achar que a simples emancipação pessoal é suficiente para mudar o mundo, de fato. Temos o desafio de movimentar tudo isso, buscar outras respostas e precisamos, para tanto, não estar sozinhas/os. Se organizar coletivamente é se permitir enxergar a totalidade, buscar outras experiências e novos recortes que interseccionam uma luta específica. As opressões são uma experiência de carne e osso, são esses os corpos que precisam se levantar contra o que fere.
Se uma pintosa incomoda muita gente, todas elas juntas fazem a revolução!
Por Hugo Sousa da Fonseca
Visto no: PET Direito UNB
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