15 outubro 2013

Se ouvir “Eu não sou preconceituoso, mas…”, corra para longe - por Leonardo Sakamoto

 


 Eu não sou preconceituoso, mas…
 
Esta frase é deliciosa. Não é um aviso de “olha, não encare isso como preconceito”, mas um alerta. Do tipo “segura, que lá vem um preconceito”. A ressalva, completamente inútil, serve, pelo contrário, para reforçar que a pessoa em questão é exatamente aquilo pelo qual não gostaria de ser tomada.
 
Cultivamos nosso medo e ódio, mas, às vezes, pega mal expressá-los em público assim, tão abertamente. Porque pode ser visto como crime ou delito. Ou ser alvo de críticas - mesmo que os críticos compartilhem da mesma visão de mundo. E, além do mais, como todos sabemos, o Brasil é o país da alegre miscigenação, em que todos são considerados iguais em direitos. Os que discordam disso devem se mudar ou levar um corretivo para deixarem de serem bestas. É isso: ame-o ou deixe-o.
 
É engraçado como o preconceituoso não se vê como tal. Quem solta um “Eu não sou preconceituoso, mas…” separa essa palavra de seu significado e pensa o preconceito como algo abstrato, etéreo. Uma ideia que não teria nada a ver com tratar pessoas de forma diferente ou fazer um julgamento prévio de seu caráter devido à sua classe social, orientação sexual, cor de pele, etnia, nacionalidade, identidade de gênero, pela presença de alguma deficiência e por aí vai.
 
Dizem que falta informação e, por isso, temos uma sociedade que pensa de forma tão tacanha. Que não temos contato com o “outro” e, portanto, continuamos a temê-lo e a achar que ele é um risco à nossa existência. Conscientizar sobre isso passa por estimular a vivência comum na sociedade, pela tentativa do conhecimento do outro. Tolerância é bom. Porém, legal mesmo não é apenas tolerar, mas acreditar que as diferenças tornam o mundo mais interessante e rico do que uma monotonia monocromática a que estamos subjugados pela religião, pela tradição, pelo preconceito…
 
E cabe tanta abobrinha em um “Eu não sou preconceituoso, mas…” que ele se tornou o novo “Amar é…”, presente naqueles livrinhos simpáticos da minha infância.
 
Duvida?
 
Eu não sou preconceituoso, mas bandido bom é bandido morto.
 
Eu não sou preconceituoso, mas baiano é foda. Quando não faz na entrada faz na saída.
 
Eu não sou preconceituoso, mas mulher no volante é um perigo.
 
Eu não sou preconceituoso, mas tenho medo desses escurinhos mal encarados qe pedem dinheiro no semáforo.
 
Eu não sou preconceituoso, mas cigano é tudo vagabundo.
 
Eu não sou preconceituoso, mas os gays podiam não se beijar em público. Assim, eles atraem a violência para eles.
 
Eu não sou preconceituoso, mas acho o ó ter um terreiro de macumba na nossa rua.
 
Eu não sou preconceituoso, mas é aquela coisa: não estudou, vira lixeiro.
 
Eu não sou preconceituoso, mas não gostaria de ver minha filha casada com um negro. Não por ele, é claro, mas eles sofreriam muito preconceito.
 
Eu não sou preconceituoso, mas esses sem-teto são todos vagabundos.
 
Eu não sou preconceituoso, mas chega de terra para índio, né? Se eles ainda produzissem para o país, mas nem isso acontece.
 
Eu não sou preconceituoso, mas esses mendigos deviam ir para a periferia onde não incomodariam ninguém.
 
Eu não sou preconceituoso, mas sabe como é esse pessoal de esquerda. É tudo petralha.
 
Eu não sou preconceituoso, mas sabe como é pessoal da direito. É tudo tucanalha.
 
Eu não sou preconceituoso, mas São Paulo é São Paulo, né amiga? Não é Fortaleza.
 
Eu não sou preconceituoso, mas esse aeroporto tá parecendo uma rodoviária.
 
Eu não sou preconceituoso, mas adoro esse shopping. Só tem gente bonita por aqui.
 
Eu não sou preconceituoso, mas sobe o vidro, amor. Você não tá nos Jardins.
 
Eu não sou preconceituosa, mas vocês não acham que essas médicas cubanas têm cara de empregada doméstica?
 
Cuidado, seja sutil. Preconceito é para ser dito, repetido e aplicado, mas com naturalidade. Diluído no dia a dia, aparece como uma forma de manter a ordem das coisas e de lembrar quem manda. E quem obedece.
 
 
*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
 
Visto no: Blog do Sakamoto  

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