Irrevogavelmente lhe conheço pelo silêncio que abrigo em ti, mais que
abrigas em mim. Enquanto teu corpo de homem formado, com a curvas certas, a
fôrma pronta, os pelos no lugar e o gozo, ejaculável, entre as pernas, se
mantinha parado ao lado do meu corpo de menino, conversávamos muitas coisas.
Sobre o tempo, sobre os deuses, sobre a pedra que acaba de rolar pelo asfalto.
Conversávamos bulhufas. Isso mesmo, sobre bolhas de sabão e carne e o preço do
feijão e guerra mundial secreta e anjos e orixás e nada de astrologia. Você
nunca gostou disso.
Passei a mão pelo cabelo. Você me olha, sorri a primeira vez. Tenho
vontade de te abraçar, conhecer ao teu interior não é o suficiente. Gosto desse
contato com o corpo, com os lábios, mas me faltam palavras para isso. E
que-se-dane-o-cosmo, estou mesmo querendo é teu olho profundo e pintado
sussurrando sobre as estrelas e me recitando Álvaro de Campos. Não essa mulher,
contando sobre a bala que refresca a garganta e cura até aids, gritando no meu
ouvido. Quero teus dedos finos acariciando a minha pele crua e sedenta em
desejo. Nua.
Volto a querer levantar e ir para longe de ti. Você é de uma geração
futura a minha. Tomo um gole d’água. Refresco a mente. As ninfas perturbam.
Você me olha. Abaixo a cabeça. Viro de lado. Olho o vento. Sugo a poeira. Limpo
os ombros.
Caspas. Disse o doutor que não tem cura, nem mesmo com macumba das
brabas.
Nada de Exu, Iemanjá, anéis de Saturno, terra vermelha de Marte, estrela
cadente.
É coisa permanente, de pra sempre e nunca acabar. Merda.
Você levanta na próxima parada e me pergunto o que ainda estou fazendo sentado
aqui sem falar. Sabemos que essas conversas intelectuais são mais interessantes,
só que não, só que quero o toque entre as minhas pernas e o supremo sumo escorrendo
entre os dedos. Você me olha. Esses silícios grandes, essas sobrancelhas
largas, esses lábios desenhados. Mordíveis. O cabelo coberto por um boné de
meio de feira, as unhas roídas até o sabugo, pintadas de negro, que só resta
nos cantos. O corpo gordo, digo magro, mas musculoso com pouca pelugem que a
gilete sempre some, corpo na medida certa. Nunca vi. Tira o boné.
Calcula a jogada de cabelo. Balança. Joga perfume que impregna, perfume
de homem, perfume barato. Cueca de marca. Cueca de feira. Bege. O maxilar
rígido, a barba mal feita, três dias calculados, acne.
Arrumo os livros sobre o colo. Olhas mais uma vez para o meu sorriso
perdido.
Abaixa a cabeça e repõe o boné, cabelos lisos, finos, sebosos, oleosos,
meus.
Vamos chega ali, mas a mente anda em um curto tão grande que penso sem
parar o que falar. Que tal um olá-seu-moço ou esse-grafite-lhe-pertence-varão-de-deus
ou quem sabe lhe entregar essa minha carta que escrevi para Joseph. Ele vai gostar.
Não é nada sobre amor perdido, incurável. É sobre as pedras de Calcutá, o ovo
apunhalado e as ovelhas negras. Livros que releio toda a semana como se fossem
novos, quentes, saídos de uma maternidade agora. Isso mesmo, é sobre o Caio e
talvez se a Clarisse tiver o que falar tem algo sobre ela também.
Clarisse. Caio. Clarisse. Fernando. Lispector. Abreu. Caio.
Olho para o lado e aquele velho está ali novamente. Ele alisou o saco e
sorrio pra mim, será que quer sexo seguro ou algo mais largado ali mesmo no
meio domato? Acho que vou perguntar. Antes perguntar a você que perfume é esse,
preciso. Coisa de louco por perfume, peito, ninfas, estrelas, signos e juras de
amor.
Devia parar com essas coisas, mas não consigo. Gosto de homem, do gosto
de homem, das sobras, das roupas, do jeito, do braço, da pegada, do beijo
forte. É tão difícil entender? É esse gosto bom que escorre pela boca. Nada de
desperdiçar, vamos arrombar a noite inteira cheia de nossos sumos.
Pego a carta na mochila. Batuco uma ou duas vezes sobre a perna.
Engarrafamento. Congestionamento. Maldito, você disse impaciente.
Bendito, sussurrei. Tomei um gole dessa minha água, tá com gosto de cozinha de
feira. Mal lavada. Porco. Galinha. Verdura podre. Fruta estraga. Goiaba não
praticante. Culpa da avó e da prima. Bixinha. Urg.
Olho pela janela e me venho na lembrança o primeiro dia em que te vi.
Você sempre sentado nessa mesma cadeira e eu sempre procurando um paquera no meio
dos ônibus. Você sentado me esperando com um sorriso torto. Envergonhado retribui,
aceitei, mordisquei a tua virilha. Logo assim de primeira, sem pensar duas vezes.
Arrepiou. Sei que você gosta de coisas eróticas e de sexo com estranhos.
Acho que vou te entregar a carta. Gosta de Malboro Light, vi na primeira
vez quando foi tirar o celular que tocava algo desconhecido. Devia ser um som alternativo,
mas nada nacional. Você conversava sobre a morte do porco-espinho e da velha
vizinha rabugenta com seu poodle preto e sarnento e boca de confusão.
Deve ser isso. Você é desses qualquer. Tudo isso. Encanto. Roupas.
Cheiro. Curvas.
Deve ser do Satanás, pra me tirar do caminho.
- Licença?
- Oh, claro.
Escorrego para o banco que você esquentava com as nádegas. Porra. Passei
tanto tempo calculando te entregar a carta que mal soube o que fazer na hora.
Gelei. O tempo parou. Pensei. Calculei. Você esperou os outros descerem.
Fitou sobre o ombro. Sorriso safado de cachorro gostoso. Arruma a mochila nas
costas.
Uma última olhada, sorriso.
- Ei, você deixou isso cair.
- Não é meu.
(Sorriso)
- Caiu dai oh.
- Obrigado.
O sangue respinga no chão. Todos desse ônibus mortos por bala. Culpa
desse velho babaca que está todo excitado para o meu lado, penso que pode
morder o dedo e rebolar segurando na cintura, logo menos. Nojentos. Depois de
velhos resolvem virar veados, que absurdo. Tanto tempo na estrada e tenho que
competir com esses ai por ainda estar me formando. Devia ter comido mesmo uma bucetinhas
dessas qualquer. Mas sempre em falta. Pra mim tudo em falta. Falta de palavras,
se socializar. Computador. Tecnologia. Retardamento. Tarde demais.
E você pega a carta. Sorri. Pisca – juro que eu te vi piscando. Vai
embora. Acho que amanhã pego o outro ônibus, tomo um rumo diferente. Acho que
vou fazer assim mesmo. Você vai ler e ver quantas besteiras consigo falar em
poucas linhas e vai correr, vai fugir. Agora estou tristonho. Passou a chover e
tive que fechar a janela, o vento não trás mais o teu cheiro. Fim. Não, amanhã
tem mais.
Juro, prometo, sincero. Sugo teu sumo. Beijo teus lábios. Aperto os seus
mamilos. Vou te fazer voltar. Vou te fazer sorrir. Vamos cantar, sonhar. Mas
antes, apenas me diga olá. Só, olá. E depois que eu passar uma semana fazendo caminhos
divergentes me diga olá apenas, fale do caio. Diga que ele é boca-deconfusão.
Arrase.
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