06 dezembro 2012

Lucidez - por Thomaz Homero




Irrevogavelmente lhe conheço pelo silêncio que abrigo em ti, mais que abrigas em mim. Enquanto teu corpo de homem formado, com a curvas certas, a fôrma pronta, os pelos no lugar e o gozo, ejaculável, entre as pernas, se mantinha parado ao lado do meu corpo de menino, conversávamos muitas coisas. Sobre o tempo, sobre os deuses, sobre a pedra que acaba de rolar pelo asfalto. Conversávamos bulhufas. Isso mesmo, sobre bolhas de sabão e carne e o preço do feijão e guerra mundial secreta e anjos e orixás e nada de astrologia. Você nunca gostou disso.

Passei a mão pelo cabelo. Você me olha, sorri a primeira vez. Tenho vontade de te abraçar, conhecer ao teu interior não é o suficiente. Gosto desse contato com o corpo, com os lábios, mas me faltam palavras para isso. E que-se-dane-o-cosmo, estou mesmo querendo é teu olho profundo e pintado sussurrando sobre as estrelas e me recitando Álvaro de Campos. Não essa mulher, contando sobre a bala que refresca a garganta e cura até aids, gritando no meu ouvido. Quero teus dedos finos acariciando a minha pele crua e sedenta em desejo. Nua.

Volto a querer levantar e ir para longe de ti. Você é de uma geração futura a minha. Tomo um gole d’água. Refresco a mente. As ninfas perturbam. Você me olha. Abaixo a cabeça. Viro de lado. Olho o vento. Sugo a poeira. Limpo os ombros.
Caspas. Disse o doutor que não tem cura, nem mesmo com macumba das brabas.
Nada de Exu, Iemanjá, anéis de Saturno, terra vermelha de Marte, estrela cadente.
É coisa permanente, de pra sempre e nunca acabar. Merda.

Você levanta na próxima parada e me pergunto o que ainda estou fazendo sentado aqui sem falar. Sabemos que essas conversas intelectuais são mais interessantes, só que não, só que quero o toque entre as minhas pernas e o supremo sumo escorrendo entre os dedos. Você me olha. Esses silícios grandes, essas sobrancelhas largas, esses lábios desenhados. Mordíveis. O cabelo coberto por um boné de meio de feira, as unhas roídas até o sabugo, pintadas de negro, que só resta nos cantos. O corpo gordo, digo magro, mas musculoso com pouca pelugem que a gilete sempre some, corpo na medida certa. Nunca vi. Tira o boné.

Calcula a jogada de cabelo. Balança. Joga perfume que impregna, perfume de homem, perfume barato. Cueca de marca. Cueca de feira. Bege. O maxilar rígido, a barba mal feita, três dias calculados, acne.

Arrumo os livros sobre o colo. Olhas mais uma vez para o meu sorriso perdido.
Abaixa a cabeça e repõe o boné, cabelos lisos, finos, sebosos, oleosos, meus.
Vamos chega ali, mas a mente anda em um curto tão grande que penso sem parar o que falar. Que tal um olá-seu-moço ou esse-grafite-lhe-pertence-varão-de-deus ou quem sabe lhe entregar essa minha carta que escrevi para Joseph. Ele vai gostar. Não é nada sobre amor perdido, incurável. É sobre as pedras de Calcutá, o ovo apunhalado e as ovelhas negras. Livros que releio toda a semana como se fossem novos, quentes, saídos de uma maternidade agora. Isso mesmo, é sobre o Caio e talvez se a Clarisse tiver o que falar tem algo sobre ela também.

Clarisse. Caio. Clarisse. Fernando. Lispector. Abreu. Caio.

Olho para o lado e aquele velho está ali novamente. Ele alisou o saco e sorrio pra mim, será que quer sexo seguro ou algo mais largado ali mesmo no meio domato? Acho que vou perguntar. Antes perguntar a você que perfume é esse, preciso. Coisa de louco por perfume, peito, ninfas, estrelas, signos e juras de amor.

Devia parar com essas coisas, mas não consigo. Gosto de homem, do gosto de homem, das sobras, das roupas, do jeito, do braço, da pegada, do beijo forte. É tão difícil entender? É esse gosto bom que escorre pela boca. Nada de desperdiçar, vamos arrombar a noite inteira cheia de nossos sumos.

Pego a carta na mochila. Batuco uma ou duas vezes sobre a perna.
Engarrafamento. Congestionamento. Maldito, você disse impaciente. Bendito, sussurrei. Tomei um gole dessa minha água, tá com gosto de cozinha de feira. Mal lavada. Porco. Galinha. Verdura podre. Fruta estraga. Goiaba não praticante. Culpa da avó e da prima. Bixinha. Urg.

Olho pela janela e me venho na lembrança o primeiro dia em que te vi. Você sempre sentado nessa mesma cadeira e eu sempre procurando um paquera no meio dos ônibus. Você sentado me esperando com um sorriso torto. Envergonhado retribui, aceitei, mordisquei a tua virilha. Logo assim de primeira, sem pensar duas vezes. Arrepiou. Sei que você gosta de coisas eróticas e de sexo com estranhos.

Acho que vou te entregar a carta. Gosta de Malboro Light, vi na primeira vez quando foi tirar o celular que tocava algo desconhecido. Devia ser um som alternativo, mas nada nacional. Você conversava sobre a morte do porco-espinho e da velha vizinha rabugenta com seu poodle preto e sarnento e boca de confusão.

Deve ser isso. Você é desses qualquer. Tudo isso. Encanto. Roupas. Cheiro. Curvas.
Deve ser do Satanás, pra me tirar do caminho.
- Licença?
- Oh, claro.

Escorrego para o banco que você esquentava com as nádegas. Porra. Passei tanto tempo calculando te entregar a carta que mal soube o que fazer na hora.
Gelei. O tempo parou. Pensei. Calculei. Você esperou os outros descerem. Fitou sobre o ombro. Sorriso safado de cachorro gostoso. Arruma a mochila nas costas.

Uma última olhada, sorriso.
- Ei, você deixou isso cair.
- Não é meu.
(Sorriso)
- Caiu dai oh.
- Obrigado.

O sangue respinga no chão. Todos desse ônibus mortos por bala. Culpa desse velho babaca que está todo excitado para o meu lado, penso que pode morder o dedo e rebolar segurando na cintura, logo menos. Nojentos. Depois de velhos resolvem virar veados, que absurdo. Tanto tempo na estrada e tenho que competir com esses ai por ainda estar me formando. Devia ter comido mesmo uma bucetinhas dessas qualquer. Mas sempre em falta. Pra mim tudo em falta. Falta de palavras, se socializar. Computador. Tecnologia. Retardamento. Tarde demais.

E você pega a carta. Sorri. Pisca – juro que eu te vi piscando. Vai embora. Acho que amanhã pego o outro ônibus, tomo um rumo diferente. Acho que vou fazer assim mesmo. Você vai ler e ver quantas besteiras consigo falar em poucas linhas e vai correr, vai fugir. Agora estou tristonho. Passou a chover e tive que fechar a janela, o vento não trás mais o teu cheiro. Fim. Não, amanhã tem mais.

Juro, prometo, sincero. Sugo teu sumo. Beijo teus lábios. Aperto os seus mamilos. Vou te fazer voltar. Vou te fazer sorrir. Vamos cantar, sonhar. Mas antes, apenas me diga olá. Só, olá. E depois que eu passar uma semana fazendo caminhos divergentes me diga olá apenas, fale do caio. Diga que ele é boca-deconfusão.

Arrase.

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