O olhar é um dos sentidos humanos mais complexos. É a partir dele que
captamos o mundo, ao passo que nosso íntimo é fisgado pelas lentes alheias.
Porém, em uma sociedade dissimulada, as relações humanas são ofuscadas pelo
consumo, pela mídia, pelas possibilidades da internet, lentes desviantes que
nos impedem de ver a singularidade do outro a nossa volta, renegando-o a
invisibilidade. Assim, determinados dilemas surgem à nossa frente como um
holograma, mera representação de uma realidade paralela, distante, mas, ao mesmo
tempo, cabível de existir caso fôssemos capazes de captar as relíquias
individuais que há em cada pessoa com suas histórias, dramas, particularidades,
sonhos. A Vida que Ninguém Vê faz um compêndio visceral das existências
daqueles que subsistem pelo país. São narrativas intrigantes construídas sob o
pilar crítico do texto jornalístico de Eliane Brum cuja sensibilidade com a
palavra nos faz ver o não visto.
A priori, chamou a minha atenção a maneira como Brum conduziu àquelas
histórias. Dona de uma escrita inegavelmente empática, suas crônicas tocam mais
profundamente pelo senso de humanidade da escritora em torno daquelas
narrativas. Cada uma delas Brum deu uma roupagem textual digna de seus enredos.
Não fez isso pelo simples artifício de ornamentar tais trajetórias, como se
quisesse suavizar seus dissabores, mas, na minha perspectiva, para permitir que
víssemos com os mesmos olhos dela aquelas vidas apagadas pelo esquecimento. Só
a palavra é capaz de reavivar a existência daqueles cuja vida foi destinada ao
vazio do silêncio. Eliane Brum é a porta-voz desses emudecidos, além de luneta
para as nossas visões míopes sobre o outrem. Após concluída cada crônica,
insurge uma inquieta constatação: o que nos fez cegar diante dessas pessoas
que, apesar de únicas, possuem histórias semelhantes a muitos de nós, mas que
não notamos frente ao turbilhão de coisas que embaçam nossas vistas?
Talvez não seja a intenção da autora buscar uma resposta a esta e tantas
outras indagações. Senti que o que está em jogo nas crônicas é um exercício de
identificação. É permitir ao outro exilado em seu limbo a chance de voltar à
luz não apenas em suas palavras, mas no nosso vislumbre. Isto porque o espanto
também é capaz de suscitar grandes reflexões sobre a coisificação do outro, seu
apagamento perante aos demais, garantindo a tais espectros que vagueiam pela
cidade a chance de encarnarem seus corpos por meio da corporificação das
palavras de Brum que nos penetram a alma. Por isso, a cada nova crônica,
sentimos algo transcendental, como se aqueles personagens transitassem entre
dois mundos, ambos desconhecidos por nós, porém resgatados pelo jornalismo
holístico de Brum.
Nesse sentido, é preciso também enaltecer o trabalho dessa jornalista.
Já a conheço de longas datas das colunas que escrevia na Revista Época e agora
no El País Brasil. Contudo, esse é o meu primeiro contato com seu livro. Brum,
tanto nas colunas quanto aqui, é excepcional no trato com as palavras. Sua
linguística é preenchida de uma dignidade que a diferencia de muitos outros
jornalistas. Destaca-se ainda o enfoque que dá as suas notícias vide crônicas.
Nelas o clichê não encontra morada. Não há uma preocupação com o noticialesco.
Ela não banaliza os comezinhos do cotidiano. Seu trabalho centra-se nos
meandros, nas imperceptibilidades, no não visto, naquilo que seria fatalmente
ignorado por outros repórteres. Dessas sutilezas, ela emerge em carne viva a
realidade sanguinolenta, sofrível, às vezes auspiciosa e inebriante de pessoas
carcomidas pelo abandono. O impacto que recebemos nos faz adultecer.
Após passar a vê a vida que não via, me encantei com muitas crônicas
relatadas por Brum: história de um olhar; Adail quer voar; Enterro de pobre; O
sapo; O menino do alto; O exílio; Sinal fechado para Camila e o doce velhinho
dos comerciais, foram as que mais me chamaram atenção. Nelas uma parte de mim,
meus temores mais secretos, se manifestaram em meio aquelas verdades vividas
por desconhecidos que poderiam estar transitando, e estão, pela minha cidade.
Esse é sem dúvida outro ponto a ser destacado deste livro: muitos daqueles
personagens não se restringem às ruas de Porto Alegre. Há muitos outros com
narrativas tão fantásticas, tristonhas e desafiadoras próximas de nós, mas não
as vemos porque estamos hipnotizados pela profusão das alvíssaras criadas pelo
capitalismo, responsável por coisificar humanos e humanizar as coisas. Dessa
inversão, há os invisíveis e os invisibilizados. Próximos em semântica, mas
opostos na sintaxe. O invisibilizado é aquele ignorado pelos privilegiados, mas
que se insurgem seja pela violência, seja pela engenharia de suas habitações no
panorama urbano das cidades. Os invisíveis, porém, são aqueles que nem ricos
nem pobres notam. Sua presença é destituída de valor por fazer parte da
subcategoria anterior. Por isso não os vemos porque em nenhum momento
atribui-se vida a eles. São seres sem alma numa sociedade desalmada.
Por tudo isso, A Vida que Ninguém Vê é um relicário, uma abertura
jornalista para aqueles sem espaço dentro e fora dos meios midiáticos. É uma
coletânea indigesta para quem tem brio de admitir a estrábica visão que
nutrimos pelos nossos semelhantes. De tal maneira, em muitas páginas me senti
grogue, desconcertado dentro da minha atmosfera a qual considerava difícil de
suportar. Todavia, ao ler as histórias singulares daquelas pessoas, percebi
como a leitura consegue realocar nosso egocentrismo para fora do nosso orgulho,
fazendo-nos entender que apenas enxergando o outro em suas complexas
construções poderemos conferir algum sentido a nossa existência. Daí a
importância do choque, encandear às vistas para passar a ver de verdade. Assim,
as lágrimas dos meus olhos, que antes não viam, passaram a se inundar com a
vida daqueles desconhecidos. Dessa forma, aconselho não apenas ler esse livro o
quanto antes, mas também se permitir romper a represa contida em seus olhos.
Deixem suas lágrimas desaguarem por eles, por você, por nós, mas não por pena
dos envolvidos, e sim para que todo humano tenha o direito de ser visto como
tal.