Se os heróis do mestre Cazuza morreram
de overdose, os heróis da galerinha de hoje vão ao “Encontro”, com Fátima
Bernardes
“No meu tempo era melhor!”. Quantas
vezes você falou ou ouviu alguém falar isso? Vocês são saudosistas chatos? Essa
possibilidade não pode ser descartada, mas talvez a resposta seja “não”. Talvez
seus tempos, em alguns aspectos, tenham sido melhores mesmo. Como isso pode ser
medido? É possível mensurar algo que, em princípio, é basicamente opinião
subjetiva? Um parâmetro interessante, embora discutível, é medir esse valor por
meio dos ídolos de cada era.
Se forem esses os termos, claro, não vai
faltar quem defenda que Ronaldo é melhor que Neymar, que Romário é melhor que
Ronaldo, que Zico é melhor que Romário, que Pelé é melhor que Zico e que
Sócrates é melhor que todos. Mas a questão não é tão simples. No caso desses
atletas a excelência, ou mesmo o gênio, é evidente em todos. Não serão
estatísticas ou jogadas gravadas em vídeo que definirão opiniões, mas apenas o
gosto pessoal pelo estilo ou personalidade de cada jogador. O problema surge
quando toda uma geração de ídolos é inapelavelmente medíocre.
Os medíocres sempre existiram em todas
as atividades humanas, seja nos esportes, na política, nas religiões, nas
ciências, na guerra ou na cultura. Estamos acostumados com eles. Em muitos
casos são inofensivos ou mesmo necessários. A ameaça se revela quando se tornam
dominantes, como é o caso no cenário cultural brasileiro. Podemos observá-lo em
vloggers, blogueiros, socialites, literatos e cineastas, entre outros. Mas onde
esse fenômeno se torna mais evidente é na música popular. Tenho certeza de que
você já se pegou assistindo a um desses programas de auditório dominicais,
durante a apresentação do cantor ou cantora do momento, e pensou: “ei, eu
consigo fazer melhor” ou mesmo “ei, no boteco aqui perto de casa já vi fazerem
melhor”. O que pode parecer despeito em um primeiro momento (afinal, você só
está deitado preguiçosamente no sofá e não apresentando sua “arte” na telinha
mágica para milhões de espectadores), talvez seja a mais pura e cristalina
percepção da verdade. O rei está nu. Salvo se você realmente for um cantor de
bar; nesse caso é despeito mesmo, e é você quem precisa se vestir.
Em todo caso, observem os campeões de
audiência da atualidade. Nem preciso citar nomes (para não ser processado nem
datar esse artigo). Repare que eles não são particularmente bonitos, nem
particularmente inteligentes, nem particularmente articulados, nem
particularmente talentosos, nem particularmente nada. São pessoas absolutamente
comuns. Nos tempos áureos de Hollywood se costumava dizer que, por baixo do
glamour e da maquiagem, estrelas como Marilyn Monroe ou James Dean só queriam
ser pessoas comuns, mas não conseguiam porque eram monstros de talento ou
carisma. O caso aqui é o inverso: nem o glamour cafona nem os quilos de
maquiagem escondem que são pessoas medíocres.
Entendo que a palavra “medíocre” é
forte. Uma palavra que choca, agride a sensibilidade dos mais ensaboados.
Parece que estou ofendendo, diminuindo ou desqualificando a pessoa. Longe
disso. O termo “medíocre” costuma ser mal usado e ainda mais mal interpretado.
Eu o utilizo em seu sentido original: medíocre significa mediano. Nem ruim, nem
bom. Nem quente, nem frio. Morno. Em relação aos “artistas” do tal programa
dominical, esse é o melhor diagnóstico. É o famoso caso do “antes se era famoso
por ser especial, agora se é especial por ser famoso”. Até o Troféu Imprensa,
que sempre foi uma piada, já teve dias melhores. Éramos felizes, e não
sabíamos, na época em que Fábio Júnior era eleito o melhor cantor do ano e
ganhava sua simpática imitação de Oscar. Essa sensação apocalíptica é reforçada
quando vemos que muitos dos ídolos atuais dançam diante de milhares de fãs em
seus shows, mas se saem mal na Dança dos Famosos, onde se exige um mínimo de
disciplina e técnica (e ainda ganham nota 9,5). Como explicar esse paradoxo?
Tenho uma teoria: a culpa é da internet.
Sim, eu sei, a culpa de tudo é da internet. Sei que muitos ingênuos acham que o
ser humano não pisou na Lua por culpa da internet, sei que outros tantos acham
que os Illuminati dominam o mundo por culpa da internet, sei que milhões
acreditam que o seriado Chaves é coisa do capeta por culpa da internet, sei de
tudo isso. Não é disso que se trata.
O fato é que a internet popularizou o
acesso à informação, à desinformação, à pornografia, à possibilidade de dar
opiniões e a muitas outras coisas, mas popularizou, sobretudo, a sensação de
que “qualquer um pode chegar lá”. A internet é o punk do século 21. O movimento
punk defendeu que só era preciso saber tocar três acordes para se montar uma
banda, que o importante era ter atitude. Isso é absolutamente verdadeiro e
positivo, e abriu um oceano de possibilidades de iniciativas, mas no caso dos
atuais “ídolos populares”, criou um lamentável efeito colateral.
A internet sempre foi ao mesmo tempo uma
aliada e um estorvo para as grandes corporações de mídia. Atualmente, mais um
estorvo. E não nos enganemos: ninguém fica famoso, mas famoso mesmo, não um
simples “conhecidinho”, se não estiver de algum modo atrelado a uma dessas
empresas. Fama é como dinheiro na Bolsa de Valores. Se você investir pouco esse
pouco pode não virar nada ou aumentar um pouco, se investir muito os riscos e
os lucros são potencialmente gigantescos. Por isso se procura minimizar os
riscos. Grandes empresários artísticos só apostam no certo, jamais no duvidoso.
Para isso testam o mercado e chegam a fórmulas. Essa é a essência do pop. Reúna
um conjunto de elementos que comprovadamente agradam o público-alvo de
determinado gênero musical e invente um “artista” para incorporar esse estilo
criado em laboratório. Você nunca se perguntou por que cantores absolutamente
desconhecidos de repente se tornam celebridades e ganham disco de ouro numa
época em que quase não se vendem discos? O pop desconhece o elemento humano, o
pop é uma grife. Tanto faz se é fulano, sicrano ou beltrano, o que importa são
o investimento e o retorno.
Existe o pop do sertanejo, o pop do
rock, o pop do samba, o pop do rap, o pop do funk, o pop do heavy metal, o pop
do gospel, o pop do erudito e até o pop do pop (um abraço para os meninos do KLB!).
Na prática, o pop não é o gênero, mas a versão pasteurizada do gênero. Essas
fórmulas milimetricamente pensadas para agradar grandes fatias do mercado são o
que se apresenta nos programas de auditório dominicais. Não podem ter nada que
lembre “atitude”, para não correr o risco de desagradar potenciais
consumidores. O discurso politicamente correto precisa estar na ponta da
língua, ainda que a aparência venda um tipo de rebeldia domesticada. Exatamente
por isso os atuais sertanejos universitários se vestem como roqueiros
limpinhos, enquanto os verdadeiros roqueiros limpinhos fazem discurso contra as
drogas e as cantoras deixaram de ser fêmeas alfa carismáticas para se
transformarem em meninas fofinhas do tipo “essa é para casar”. E todos fazem
coração com as mãos. É a consagração da estética “teletubbie” apregoada pelo
grande profeta do apocalipse, Lobão. Assim, entre galãs sem virilidade,
periguetes carolas, groupies virgens, safadões com discurso família e coisas do
tipo, vai-se levando a vida e o fluxo de caixa não para. Na dúvida, pegue um
livro de colorir, um Danoninho, que vale por um bifinho, e um Yakult, com
milhões de lactobacilos vivos. Afinal, alguém precisa ter vida nesse mundo de
homens-massa.
Sim, ser medíocre é preciso, viver não é
preciso. Sem passar a santa sensação de mediocridade não se gera a
identificação com a plateia. Acabou-se o tempo em que o grande público se
contentava em ficar abismado com as metamorfoses e a dança de Michael Jackson,
com a voz e a erudição de boteco de Renato Russo ou a pinta de galã de
fotonovela de Paulo Ricardo. São coisas muito distantes. O internauta precisa
se sentir capaz de ser e de fazer o que seu ídolo faz para ficar à vontade para
consumir, sem ser consumido pela inveja. Tudo deve estar a um tutorial de
distância. No máximo.
Os fãs dos ídolos medíocres, quando
pararem de xingar muito no twitter, podem até conseguir se defender com o
extraordinário e inédito argumento de que “gosto não se discute”. Mas, como
provou o crítico Carlos Augusto Silva, gosto se discute sim, o que não se
discute é preferência. O indivíduo é livre para preferir sorvete Kibon a
Häagen-Dazs, mas ao fazer isso, automaticamente assina um atestado de mau
gosto.
Os intelectuais ligados à UFE
(Universidade Federal do Esquenta), pesquisadores altamente reconhecidos por
seus esforços acadêmicos em agradar a galera do Piscinão de Ramos e de Caldas
Novas, podem argumentar cientificamente que se trata apenas de uma questão de
geração. Cada geração possui suas referências e todas são igualmente válidas,
não podendo ser quantificadas nem qualificadas, exceto se envolver alguma
música, peça ou livro de nosso querido Chico Buarque (te amamos, Chico, diga
não às drogas!). Acho essa explicação, no mínimo, condescendente.
Não sou ingênuo a ponto de achar que “no
meu tempo” havia pureza. Sei muito bem que o show sempre foi business, mas
também me parece que houve tempos em que até o lixo era mais bem produzido e
podia ser reciclado. Por exemplo: na época do Rock Brasil da década de 1980 o
zeitgest era o mesmo para todos, mas havia uma nítida hierarquia estética entre
as bandas. Pode-se dizer que Titãs e Legião Urbana estavam no topo e Plebe Rude
e Capital Inicial gozavam de certa respeitabilidade, mas ninguém levava a sério
Kid Vinil e Os Heróis do Brasil, João Penca e Seus Miquinhos Amestrados, Rádio
Táxi, Placa Luminosa ou Absyntho. O que não impedia ninguém de se divertir com
as aventuras do Ursinho Blau Blau.
O ponto é que existia certo senso de
individualidade e de proporções, ainda que diluídas no imaginário coletivo.
Atualmente, todas as duplas de sertanejo universitário parecem iguais, ainda
mais do que os exércitos de pagodeiros da década de 1990. Ali pelo menos alguns
vocalistas possuíam personalidade, destacando-se dos clones que sacolejavam atrás
deles. Taí o Anderson do Molejão, que não me deixa mentir (Molejo é melhor que
Beatles? Não vi Beatles, mas vi Molejo? Assunto para outro artigo.). Não é por
acaso que depois de décadas sendo espinafrados pela crítica especializada, hoje
Zezé di Camargo e Luciano (“Dois filhos de Francisco” é ótimo!), É o Tchan e
Sidney Magal tenham se tornado “clássicos” de final de festa. Se o valor
estético da música é questionável, a “atitude” fez com que permanecessem na
memória afetiva. Atualmente, tentar ser original é considerado pedantismo. “Tá
querendo aparecer”, diriam. Mas o objetivo de todo artista não é justamente
aparecer?
Acho interessante quando perguntam para
um desses fãs o que mais gostam em seu ídolo medíocre e a resposta é: “ele é
uma pessoa humilde”. Também acontece muito com participantes de reality shows:
“vou votar em fulano porque é o mais humilde”. Como assim? Então devo admirar
uma pessoa por ela ser humilde? Se for assim, talvez seja mais fácil admirar o
empacotador da lojinha da esquina, um sujeito superlegal e humilde, fica até
mais fácil para pedir autógrafos, ele está sempre por ali. Um artista, para
pelo menos tentar ser artista, precisa ter um mínimo de orgulho criador. Em
alguns casos esse pode até ser o combustível para sua criatividade. O inverso
nunca é verdadeiro – ou alguém já ouviu falar de humildade criadora? Se algum
indignado intelectual da UFE se lembrou da “humildade científica” que Umberto
Eco defendeu em “Como se faz uma tese”, sugiro que o releia, pois trata-se de
outra coisa.
Mas, como diria o poderoso chefão
Michael Corleone, são apenas negócios. É possível até vislumbrar que um ou
outro desses ídolos medíocres seja mais talentoso e pretensioso do que sugere a
imagem que desejam vender. Policiam-se para parecerem menores do que são. Se
não é uma opção artística honesta, é uma opção comercial compreensível. A vida
é dura e a fama só dura quinze minutos, já dizia Andy Warhol. É preciso
aproveitar o momento, para no futuro não aparecer todo botocado pedindo ajuda
nesses programas de terça à tarde para donas de casa. Artista assombrado por
seus fantasmas internos é coisa de gente que morreu com vinte anos, de
tuberculose, no século 19; ou de overdose entre as décadas de 1950 e 1990. Se
os heróis do mestre Cazuza morreram de overdose, os heróis da galerinha de hoje
vão ao “Encontro”, com Fátima Bernardes.
Felizmente, se a internet trouxe a
doença, ela também tem a cura. Em pequenas doses. Também é na internet que se
encontram verdadeiros oásis de criatividade. Não só em música, mas também em
literatura, artes, humor, quadrinhos, audiovisual, crítica e em muitas outras
áreas. Só é preciso ter paciência para procurar. Esses criadores virtuais
ganham cada vez mais notoriedade, e os limites são potencialmente infinitos.
Afinal, sabemos o que é a internet hoje, mas não sabemos o que será amanhã. Não
há mesmo muito o que fazer para melhorar esse cenário cultural, fora continuar
apostando na tática de guerrilha via internet. Seja como for, não parece ser um
negócio tão ruim, considerando que o programa “Ídolos” não criou nenhum ídolo,
o programa “Super Star” não criou nenhuma superestrela e o “The Voice Brasil”
tem a Claudinha Bagunceira no júri.
Visto na: Revista Bula
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