O vazio ao lado da cama
me acordou. É uma sensação incômoda tatear o lençol intacto e não encontrar
vestígios teus. Com os olhos semicerrados insisto em vasculhar algum traço que
te identifique: um fio de cabelo, teu cheiro, o calor do teu corpo, o
travesseiro que costumava ficar úmido com teu suor. Nada. Levemente
desconcertado, volto a fechar os olhos. O sono já tem me abandonado, mas
insisto em ficar prostrado em pensamentos, rememorando fagulhas de lembranças.
Aos poucos, elas vêm e
meu corpo se ouriça. Lembro-me de nós dois dividindo esse mesmo recinto. Você
insinuante a me provocar. Eu cedendo facilmente aos teus encantos. Nós
entregues entre os lençóis, emaranhados entre beijos e toques e carícias e
paixão. Subitamente essa sintonia unificava nossos corpos, colocando-nos dentro
um do outro. Era simples, intenso, mágico, sublime, sobrenatural. O encaixe
perfeito para nosso molde de amor.
Entorpecido por essas
memórias, deixo meu corpo estremecer. Deleito-me com essa breve sensação de
prazer em tua homenagem. Ofego. Ainda arquejante, vou recobrando a consciência.
Você não está mais aqui para partilhar deste delírio comigo. Mas me recuso a
aceitar tua partida. Então, ainda em êxtase, levanto e me deixo levar por
aquele cômodo, agora ainda menor sem tua presença. Encontro-me debaixo do
chuveiro inerte. A água toca minha pele ainda em brasa. Meu coração pulsando
firmemente, sôfrego, desejoso do teu corpo ao meu lado. Aos poucos, a
temperatura da água me recoloca para a realidade.
Não sei que horas são.
Aliás, na dor de um sentimento não correspondido, as horas parecem se arrastar,
ampliando nosso sofrimento. Vejo que o sol penetra as nuvens. Irrompe o céu,
que teimoso, não quer permitir que aquele astro reine sobre nós. Meu corpo
lentamente se esfria. Desperto, então, sessenta por cento. Nem sei se
conseguirei estar pleno até sair para trabalhar.
Não sou mais cem por
cento sem ti.
Olho-me no espelho sem
me encontrar naquele reflexo. Nada me é familiar. Sou impreciso na minha
autodescrição: será que engordei ou emagreci? Essa mancha na minha barriga já
estava ai antes? Tinha esse mesmo tamanho? Não me lembro de ter esse corte de
cabelo. Nem sei se ele está na moda. O que aconteceu com o meu rosto? Meus
olhos brilhantes, agora estão opacos, vazios, distantes. Minha face
preencheu-se de espinhas, manchas, marcas, que eu não sei decifrar. Meus lábios
estão rachados, secos, como se não fossem hidratados a eras. Lanço
desesperadamente punhados generosos de água gelada, para extirpar do espelho aquele
estranho que se apossou da minha face. Não funciona. Espanco aquela imagem
desconhecida com tapas, depois socos, que só pioram o que já está aterrador.
Sou eu mesmo. Nem sei quando me permitir adquirir aquela aparência. Na agonia
da incerteza, me agacho nu em prantos. Choro incontrolavelmente pelo que me
tornei, pelo que perdi, por não te ter aqui perto de mim. Deixo-me afundar
nesta dor merecida, pungente, necessária, por um tempo.
Quando sinto as
lágrimas se esgotarem, busco forças para me levantar. Perambulo incerto por
aquele espaço irreconhecível sem ti. Recolho fragmentos de roupas sujas
abandonadas pelos móveis. Visto-as como estão, sem reparar em qualquer possível
combinação, sujeira, mal cheiro, ou qualquer outra coisa que as coloque em
desuso. De repente, recordo de ti me impedindo de me vestir. Era sempre difícil
te deixar para ir trabalhar. Você desabotoava minha camisa com a boca, enquanto
eu protestava mansinho que precisava ir. Você relutava sabendo que eu cederia.
Nesse jogo eu fazia
questão de perder, mesmo que me custasse chegar atrasado ao trabalho. Só mais
um pouquinho, você dizia. Como eu poderia negar-te mais um beijo? Com essa boca,
esse corpo, qualquer jogador se daria por vencido. Esse joguinho se repetia por
várias manhãs. Comíamos juntos. Às vezes, eu levantava cedinho só para preparar
a sua comidinha favorita. Acariciando teus pés, eu te acordava lentamente
enlaçando-me entre meu corpo. Você, surpresa, amava receber mimos na cama. Eu,
inebriado pela sua alegria, ficava cada vez mais apaixonado. E mais beijos,
carícias. Mais você e eu, nós.
Relembrar isso me
machuca. A emoção domina meus olhos doloridos de tanto chorar, mas as lágrimas
não descem. Ficam represadas em mim, turvando a minha visão, obscurecendo meus
pensamentos. Num ímpeto, procuro você loucamente pelos cantos da casa. Abro o
guarda roupa atrás das suas coisas. Nada. Nenhuma roupa, toalha, perfume,
creme, escova, nada que me faça relembrar sua presença aqui. Com o coração a
batucar, vou à busca de uma foto. Nada. Chamo seu nome, seu apelido, a forma
carinhosa como nos referíamos um ao outro. Nada. Pego o telefone e disco o seu
contato. Nada. Tento parentes, amigos, seu trabalho. Nada. Em sofreguidão,
acesso as redes sociais à sua procura. Nada.
Você não está lá, não
existe aqui, não me atende, não quer me ver, não me quer mais. Ensandecido pelo
medo, urro pela casa ecoando seu nome como uma fera capturada numa armadilha
certa de que vai morrer se não for resgatada. Eu preciso ser resgatado por ti. Não
quero acreditar na tua ausência, pois é a tua presença que me fez viver por
todo esse tempo. Na torpeza daquilo que me fere, caiu novamente no sono
profundo.
Algo me desperta
teimosamente. É o despertador. Estou na cama, com um livro ao meu lado. Você
está aqui deitada a minha frente. Sinto um alívio tranquilizar minha
consciência. Foi apenas um pesadelo. Solto um suspiro arfante. Você acorda e
vira para o outro lado. Eu te toco, mas você rejeita a minha mão. Insisto. Você
balbucia algo como, você precisa trabalhar... Não pode ficar deitado o dia
todo... Me deixa dormir. Respeito tua vontade.
Levanto, tomo banho e
como qualquer coisa. Você levanta e repete o mesmo processo. Na mesa, somos
dois estranhos compartilhando o mesmo recinto. Puxo uma conversa, você me
ignora. Faço um elogio, você nem nota. Pergunto se está tudo bem, você dá de
ombros. Percebo instantaneamente que estamos no mesmo espaço, dividimos a mesma
cama, partilhamos da comida, mas há um vazio entre nós. Porém, não há culpados
ou inocentes. Ambos os são inconscientemente. Talvez falte apenas diálogo.
Quando estamos numa
relação sem conversa, atraímos sem perceber os fantasmas da separação. Então
sugiro bater um papo sobre nós quando voltar do trabalho. Você assente e diz
ok. Tomo o último gole de café e beijo tua testa fraternamente dizendo tenha um
bom dia. Você limita-se a responder, você também. Caminho até a porta. Antes de
abri-la você chama meu nome. Fico retesado esperando um gesto carinhoso, quem sabe um beijo. Você apenas diz: você esqueceu o livro na cama,
que é para devolver hoje.
Agradeço com um
obrigado insosso. Na capa, o título: a certeza da ausência.
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