31 agosto 2014

As pessoas com deficiências também se relacionam, com e sem amor - por Manu Candido

Frequentemente vejo textos que se propõem a falar sobre a vida de pessoas com deficiência cujo título é: “deficientes também amam”. Até aí nada de mais, como seres humanos capazes de ter sentimento, naturalmente que amam.

O problema é que ao ler noto quase todos os textos não tratando de amor, mas sim de sexualidade e outros tipos de relacionamentos que podem ou não envolver amor. Na maioria das vezes é só sobre sexualidade mesmo.

É muito importante que o fato de pessoas com deficiência fazerem sexo seja tratado de forma desmistificada. Se já me incomoda que amor e sexo se confundam de modo geral, como pessoa com deficiência, pra se referirem a nós acho pior ainda.

Pra começar, esse não é um grupo homogêneo. Existem os vários tipos de deficiência e existem as pessoas, com suas personalidades, suas complexidades e vivências. Dizer “os deficientes também amam” é nos igualar, desconsiderando nossas escolhas, nossas particularidades e formas de lidar com cada relacionamento. Não acho possível considerar que haja amor envolvido nem em todos os relacionamentos específicos de um indivíduo com deficiência, quanto mais de modo geral. Acredito que as pessoas que escrevem tais textos têm boas intenções, mas pelo menos pra mim passa uma mensagem de padronização.

Além disso, todo mundo acha normal, parte da vida, que outros grupos flertem, fiquem, façam sexo casual, sexo sem um relacionamento estável, sem necessariamente um envolvimento “romântico”. O sexo nesses grupos não é relacionado diretamente com amor. Quando se fala em deficientes e essa ligação é automática, me parece que fica insinuado: “Claro, esses carentes encontraram alguém que os queira, como não ficarem perdidos de amor?”.

Acontece que na realidade sem estereótipos deficientes nem sempre transam porque estão perdidos de amor ou carentes. Não que estejamos imunes à carência, apenas nossa carência não está diretamente ligada à deficiência. Podemos ficar carente por vários motivos, feito todo mundo.

Como qualquer outra pessoa, deficientes também fazem sexo pelo sexo. Às vezes também só queremos trepar e vazar. Rola de nos relacionarmos sem sequer estar apaixonados, quanto mais amando. É muito possível que ao ficar com alguém seja só pelo tesão. Estabelecer um vínculo emocional, antes ou depois disso não é regra.

Enquanto ficam com alguém, deficientes também não estão obrigatoriamente idealizando casamento, dois filhos e um cachorro. Ao afirmar isso não condeno quem por acaso deseje, se relacione com essa intenção. Até porque a possibilidade, embora totalmente real, de casarmos e termos filhos nos é sistematicamente negada. O que repudio são as entrelinhas do espanto quando dizem: “está com uma pessoa, mas não quer casar?” Que traduzindo significa: “vai deixar escapar alguém que te quis?” (Nem vou entrar no mérito de como é equivocado achar que casamento, pra qualquer pessoa, é não deixar que o outro “escape”).

Quando o relacionamento de uma pessoa com deficiência é com uma pessoa sem deficiência, amor também aparece como obrigatório. Só que é um tipo diferente de amor. Um amor devotado, abnegado, caridoso. O parceiro de uma pessoa com deficiência é tratado como um ser de luz, evoluído, que entre tantas pessoas no mundo escolheu ficar com “alguém assim”. Uma parenta minha chegou a verbalizar que meu ex era um anjo na minha vida e ela não se referia ao contexto romântico (que já seria meio enjoado).

O senso comum de fato vê nossos parceiros como anjos. E diz a mística que anjos não têm sexo. Então de um lado a escolha é fruto de generosidade extrema, praticamente uma missão. De outro é dependência (seja física, ou emocional. Com essa suposta dependência também se confunde o tal amor) e gratidão total. Se chegarem a se separar só há duas possibilidades: Ou quem faz a “caridade” cansou, ou quem recebe não soube agradecer.

Sério, não aguento tanta superficialidade. Apesar de preconceitos baterem na minha cara todo dia, tenho dificuldade em entender gente achar possível e normal ficar/namorar/casar motivado por caridade. E ainda achar que sim, essa é a única explicação.

No aspecto sexual, apesar de opinião rasas e preconceituosas me causarem ímpetos que vão de revirar os olhos, até distribuir muletadas, pelo menos entendo onde surgem. A sociedade estabeleceu um padrão do que é atraente. Se estamos fora desse padrão, como alguém pode sentir tesão por nós? E mesmo que a pessoa sinta, temos limitações. Como transar seria, não só viável, mas prazeroso?
Simples, como é pra qualquer um.

Acredito que o que faz um indivíduo gostar de outro são coisas variáveis e subjetivas. Pode ser sorriso, olhar, covinhas (eu tenho covinhas que encantam muita gente. Desculpa a falta de modéstia. *beijinho no ombro*), personalidade. Sobretudo, é o desejo de estar, que pra cada um é composto de um conjunto de coisas (caridade não está entre elas pra ninguém).

No sexo idem. O que torna uma pessoa atraente pra outra é pessoal. Quando uma companhia é desejada, limitações ficam em segundo plano. Se não ficassem não haveria nenhum tipo de relação entre ninguém, já que alguma limitação todo mundo tem. Com vontade de ficar junto, você troca o foco no que não rola pelo que rola numa boa e não sente falta de nada.

Seja no sexo com amor, no sexo sem amor, no amor sem sexo. Seja pra pessoas com ou sem deficiência, acredito que o lance é não determinar que haja um comportamento padrão. Muito menos exotificar. O lance é permitir e naturalizar.


Visto no: Lugar de Mulher

Um comentário: