15 dezembro 2013

O cemitério de estrelas - por Arnaldo Jabor



Meu Deus, que saudade do cinema! Que saudade do sonho, da utopia fílmica dos anos 1950 e 60, sacralizada pela “Cahiers du Cinéma” e pelos círculos de fumaça dos Gitanes sem filtro. Atualmente, a cinefilia soa como um vício sexual. Hoje o cinema é nu. Está exposto nas lojas, feiras e bancas de jornais, na ponta dos dedos dos insones, está rodando bolsinha nas ruas. Tenho saudades da sala escura, do cinema segredo, o cinema dos pobres tímidos, punheta dos rapazes feios, o cinema como realidade alternativa. Como era bom esperar um filme do Fellini, a cada ano, e o novo Antonioni, e o novo Godard... Não chego a ser um cinéfilo puro. Faltam-me o gosto arquivista, o amor às fichas técnicas remotas, o mundo das fofocas de Hollywood.

Cinéfilo era o Manuel Puig. Li, outro dia, que Puig estava morrendo em Cuernavaca. Uma de suas “filhas”, Yasmin (uma bicha “filha” dele com o Ali Khan, pois Puig se imaginava a Rita Hayworth), chorava à beira do leito achando que Puig já entrara em coma. Mas, na esperança, testou os sinais vitais de sua “mãe”. Falou-lhe: “Mãe..., ontem eu vi ‘Stella Dallas’, do King Vidor. Chorei tanto...”. A “mãe” Puig balbuciou do leito: “É... a Barbara Stanwick está bem, mas o John Boles nunca me emocionou...”. Yasmim, a bicha cinéfila, caiu em prantos de felicidade: “Mamãe está viva!”.

O cinema era a “síntese das artes”. E todo mundo pensava: “Qual é a alma do cinema? O que é o cinema?”.

Sempre que me perguntam isso, eu me lembro de Humberto Mauro, que conheci já velhinho.

Para Humberto Mauro, o célebre cineasta-fundador dos anos 1920/30, “cinema é cachoeira”. Por quê? Vou contar aqui de novo. Quando ele fazia seus filmes na Cinédia do Rio, todo amigo que ele encontrava na rua dizia: “Humberto, você precisa é ir no meu sítio lá em Correias filmar a cachoeira que tem lá! Você precisa ver que cachoeira!”. E o Humberto Mauro ficava com aquilo na cabeça: “Por que querem que eu filme cachoeiras?”.

Um dia, ele estava dando uma palestra para uns cinéfilos de um cineclube do interior quando, já na estação, atrasado para pegar o trem, um garoto agarrou-o pelo paletó e perguntou-lhe sobre o grande enigma: “Seu Mauro, afinal de contas, o que é a ‘alma’ do cinema?”. E o velho Mauro, correndo atrás do vagão que partia, deu a grande definição: “Cinema, meu filho, é cachoeira!”.

Hoje, ninguém pergunta mais isso. Tantas são as formas de reprodução da imagem, tanta é a virtualização da realidade, que talvez a pergunta devesse ser feita por alguém na tela, algum fantasma projetado na tela nos perguntando, invertidamente:

“Ei, você aí!... O que é a realidade?”.

Hoje, vemos que a “máquina do mundo”, quanto mais aberta é, mais vazia e misteriosa. A fome de decifrá-la, digitalizá-la, matematizá-la, descreve-a, mas não a condensa. Por isso, a ideia de cachoeira é a metáfora melhor de cinema. Esta imagem “heraclitiana” de uma água que não para de fluir é ótima para definir nossa ex-sétima arte. Por isso, os amigos de H. Mauro, na sua sabedoria para o óbvio, diziam no botequim: “Vai filmar minha cachoeira!”. Só o movimento tem de ser filmado. Só as cachoeiras da vida têm de ser retratadas na busca de alguma verdade. Não há uma realidade que finalmente pare e se configure. Buscá-la, tanto na arte quanto na política, é fracasso certo.

Esse foi o aprendizado do século XX. Tentou capturar o vasto e incessante universo em fórmulas que o esgotassem e nada ficou preso. Por mais que queiramos que o cinema seja a arte de captar a vida, o cinema é a arte da morte.

Henri Bergson, ao ver o “cinematógrafo” pela primeira vez em Paris, deu a grande definição: “O cinema é importante, para que se veja e se saiba no futuro a maneira como os antigos se moviam”. É isso aí. Cinema é o que se passa dentro do plano, a ação entre as pessoas e as coisas, para além do que contam os roteiros. Há uma “fisicalidade” no cinema em que as coisas brilham antes do enredo. Há uma superficialidade “profunda” no cinema básico que os grandes mestres sacaram.

Sem bodes, irmãos, mas vejam como Hollywood é um luminoso cemitério de estrelas. É um cemitério de beijos e olhos e corpos embalsamados no tempo da película. Vejam como Fred Astaire dança no ar do nada, vejam como James Dean já prefigurava a morte na própria interpretação de sua melancolia. Como dói se apaixonar por uma morta, como eu, que me apaixonei por Brigitte Helm em “Metropolis” e amei as pernas perfeitas de Louise Brooks, numa necrofilia de sala escura. Mesmo num musical, o cinema filma a morte; mesmo no filme de ação, quando todos tentamos burlá-la numa ginga, num drible, ela não deixa. Como é estranho que Gene Kelly tenha morrido, aquele anjo de juventude, como pôde Kirk Douglas ter um derrame e gaguejar na festa do Oscar, como pôde o nosso Super-Homem morrer na cadeira de rodas?

O trágico do cinema é sua maior verdade. A pintura e outras artes tentam exorcizar a morte, todas as artes fazem isso. Mas, nelas, ninguém se mexe. A barra é mais leve. No cinema não tem perdão. Ligou a câmera, lá está a velha morte nos olhando. Assim, não há ideologia ou política ou arte ou filme ou literatura que dê conta do implacável fluir desta cachoeira. Toda a tragédia dos séculos tem sido a tentativa de se trancar o movente em fórmula fechada, em alcançar um céu estático, definitivo, um dia em que tudo se resolva. O paraíso seria um lugar imóvel, onde não houvesse a morte e, portanto, nem cinema. Não há “cinema paradiso” (talvez por isso o filme seja tão ruim).

Hoje estamos todos na saudade deste passado. Queremos voltar, principalmente intelectuais e outros religiosos, a esse tempo em que a morte seria dominada pela técnica, em que o paraíso fosse planejável. Não há isto. Somos uma cachoeira olhando a outra e todas nossas ações no mundo têm este fracasso fundamental: por mais que olhemos no fundo das coisas, jamais veremos um fim ou um início. A galáxia e o ovo, todos estamos num fluir sem rumo. Por isso, a cachoeira é a melhor definição de cinema, ou da vida.

Visto no: O Globo

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