23 setembro 2013

A transfobia não cabe na felicidade - por Miguel Rios

Gente que teve a indigência da cidadania carimbada pela coragem de passar um batom
 
Uma das primeiras vezes que vi uma transexual foi em uma roda familiar em volta de uma revista Fatos e Fotos.
 
Anos 1980, edição daquelas de Carnaval.  Roberta Close, no ápice da fama, cercada de rapazes sarados, em algum baile carioca. Ouvi logo a porrada: “Safados que se aproximam de uma peste dessa”. Safados eram os caras. Peste, Roberta. Outras vezes em que vi e ouvi sobre transgêneros, palavras do calibre de safado e peste vinham na esteira.
 
Vi Rogéria dando entrevista a Hebe Camargo. “Essa bicha velha ainda faz sucesso. Já devia ter sido morta pela aids”.
 
Cláudia Raia interpretou uma que volta para casa já mulher para surpresa de todos na novela As Filhas da Mãe. “Como é que pode um negócio desses na televisão? É para desmoralizar”.
 
Eu as vi nas ruas, na madrugada, na vida. Certa vez um taxista emendou: “Olha as bichas tudo sem-vergonha. Deviam levar um tiro”.
 
Nas boates gays, elas, em grupo, como em um cercado imaginário. Poucos se aproximam. Poucos querem papo.
 
“Queima o filme” é a crença e a desculpa. “Se juntar com travesti? Deus me livre. Quero distância” é a prática.
 
Assisti a um breve documentário de uma parada gay em Nova Iorque onde havia uma transexual lésbica. Deu aquele tilt no meu juízo. Como pode um cara que gosta de mulher, virar mulher para pegar mulher? “Encosto espiritual. Cuca em total desordem”, raciocinei na ignorância.
 
Perto do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, uma sambava em frente a uma batucada, em um domingo ensolarado. “Depois não quer levar curra. Um veado desses”, já disparou um colega gay.
Aprendi dia a dia que transgênero o mundo resumia, e ainda resume, em traveco ou sapa braba.
 
Reles gay/lésbica que exagerou ao cúmulo do absurdo. Errados demais, que não precisavam da metamorfose, que para gostar do mesmo sexo são dispensáveis peitos e bundas de silicone ou retirar seios e criar barba. Poderiam ser homens e mulheres como qualquer outro, na linha “normal”, se curtindo ocultos, para evitar choque nas vistas alheias.
 
Dizem ser eles sujeiras na comunidade. Que perto deles se acaba qualquer disfarce, o poder de se misturar à paisagem. Como sirenes apitando, holofotes acesos. Não mais se é invisível.
 
Sempre me foi, ainda é, martelado que não passam de ladras, traficantes, certeza de chave de cadeia, de navalhada na cara. Que o ideal é passar longe. Que servem apenas para dar se rir dos trejeitos e da voz. Para dublar no palco, naquele momento diva. Mas que fiquem lá. Distantes. Nos bastidores.
 
Sempre me dizem que enganam os homens, que se mascaram de mulher para fisgá-los quando bêbados e desonrá-los. Armadilhas humanas. Que ficar atento se há volume entre as pernas ou no pescoço é imprescindível para não trocar gato por lebre e se evitar a vergonha eterna.
 
O adjetivo, a definição e as consequências ligados aos transgêneros que me chegam são os piores.
 
Que odiá-los/las, no mínimo, escanteá-las/los, é o mais prudente a fazer.
 
E a gente cresce, acredita e se formata em mentiras. Cria medo de tocá-las/os, de conversar. Faz de conta que não viu, desvia de fininho, se algum/a chega perto e puxa assunto.
 
A gente acha que é o certo segregá-las/os. Que vai se preservar, que escapará das suspeitas, que nada no mundo pode ser pior se a ligação for estabelecida. A gente acha por que o medo de ser discriminado a reboque é real e forte, maior que a solidariedade e a necessidade de entendê-los/as.
Raro se escuta sobre como se nasce em um corpo quando a alma pede outra identidade

Raro se escuta sobre como se nasce em um corpo quando a alma pede outra identidade. Quando se escuta, tantas vezes não se quer ouvir, se quer seguir no que pregam por aí. E, assim, se integra à massa, se desvia das discussões, se é aceito como uma opção melhor, que não fere tanto os padrões emoldurados, se vira, digamos, um “gay exemplar”.
 
O interesse em saber como elas/es constroem a consciência de si mesmos quando o entorno diz que eram para ser de outro jeito se resume a quase zero. O senso comum basta. Um desumano “problema deles. Quem manda querer ser mulher quando se é homem, ser homem quando se é mulher? Coisa nada a ver. Que feio. Loucura. Aberração”. Curiosidade mínima pelo que sentem, o que passam.
 
Nem aí para os tratamentos, cirurgias e dores aos quais se submetem. A gente acha simplesmente desnecessários, injustificáveis passar por tudo isso por uma pinta mais forte. Volta o cruel “problema deles. Culpa deles/as se acabam no isolamento, na prostituição, na sarjeta”.
 
A gente presume que não é para amá-las/los. Que quem gosta, se apaixona, assume e vai viver com um/a deles/as deveria pegar um homem ou uma mulher de “nascença”, que se crê como os de verdade. Que seus amantes devem ser tão desvirtuados quanto, tarados ao máximo, tão indignos de ser gente quanto.
 
A gente, gota a gota, se torna insensível. Não liga se eles/as  transformam o corpo com o que têm a mão, pela falta de grana, de informação, pela necessidade urgente de se enxergar perto do que se quer. Nem damos bola se acabam agredidas/os por cafetões, pela polícia, entre si.
 
A gente acha que pediram por isso, que escolheram ser assim, que aguentem ser alvos de pedradas, latas de cerveja, balas de revólver dos pitbulls precisados de autoafirmação.
 
A gente desdenha em saber o sofrimento na escola quando eram estudantes, em alguma loja na hora de comprar sapatos, com os rostos se virando espalhando raiva quando entram em algum restaurante, com pais e mães carregando filhos para longe quando se aproximam, as chacotas que nunca cessam.
 
A gente faz de conta que não é com a gente, que a porrada que pega na pele delas/es não pega na nossa. A gente as/os usa para desviar o preconceito  e sairmos ilesos, como se a mira homofóbica fosse única e os barcos fossem vários e distantes.
 
Mas a gente pode mudar. Pode dar um basta na idiotice. Ter uma luz, querer se informar. Aí nos aparecerem histórias como a de Katie Hill e Arin Andrews, ambos trans, apaixonados um pelo outro. Felizes. Como a de Laysa Machado, que já catou comida no lixo e virou diretora de uma escola estadual no Paraná, apoiada pelos alunos.
 
Feliz. Como a de Lea T., filha de Toninho Cerezo, crescida no ambiente supermachista do futebol, hoje modelo de sucesso, admitindo dores físicas e mentais, dúvidas e certezas, após o genital trocado. Mas em frente. Feliz. Como a de Laerte Coutinho, que passou a usar vestido e maquiagem e afiou mais seus quadrinhos pela causa dos direitos iguais. No ativismo. Feliz.
 
E mais  histórias chegam, a cabeça dilata, se abre, o coração acolhe. O com aparência de menina passa a  menino, gostando de meninos e meninas. A menina, antes menino, mas que curte só meninas. A que foi expulsa logo cedo de casa e só teve o sexo vendido como escapatória. A que conseguiu ser professora. A que se formou dermatologista. Relatos lidos e escutados deles/as e não mais de quem as/os julgava e condenava pelo ouvir dizer.Diversos casos, orientações, receios, convicções. Parecidos em tantos pontos, longínquos em outros mais.
 
Felicidades contagiantes por um RG com o nome pelo qual se lutou tanto, por um casamento que se sonhou demais, pelo discurso que se faz para um público atento e aberto a compreender. Tristezas pelas notícias de suicídio de quem ruiu, por quem padeceu em mãos assassinas.
 
Gente que teve a indigência da cidadania carimbada pela coragem de passar um batom e botar um vestido ou dar um corte militar no cabelo e calçar coturnos, Gente que  a vida tratou com agressividade, que responde com um I Will Survive dos mais animados. Que sempre deu a cara para bater, aos gritos de “Existimos!”, enquanto tantos enrustidos e envergonhados achavam que o melhor era a penumbra, não provocar, suportar a submissão.
 
Gente a quem peço minhas desculpas pela meu passado de equívocos. Eu não vivo mais lá.
 
Visto no: NE 10

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