Não é de hoje que
escrevo. Muitos antes de me tornar professor, na infância, eu já tinha uma
relação com as palavras. Nesta época, lembro-me bem que costumava escrever
pequenos versos num caderno mirrado, o qual ganhara junto ao material escolar
ofertado pelo governo. Nele também mantinha o hábito de copiar as músicas que
mais gostava de ouvir, para depois ver se escrevi certo cada letra. Desde sempre,
não sabia explicar essa relação com a palavra escrita. Sentia uma imensa
necessidade de escrever qualquer coisa, por mais ilógico que fosse. Com o
passar dos anos, essa escrita foi ganhando novas conotações e contornos
diferenciados. Tudo isso se deu não só por causa do meu exercício quase semanal
com os textos escritos, mas com a minha capacidade de olhar o verbo e
verbalizar esse olhar de uma maneira muito particular. Muito minha. Uma relação
íntima e unitária que se estabelece sempre em que algo me chama atenção,
convidando o meu olhar a enxergar a realidade além do que o meu biológico globo
ocular pode captar.
Para isso, poderia
trazer vários conceitos acadêmicos que pudessem explicar como se processa a
escrita, desde a sua construção mental até a materialização no papel. No entanto,
me dou o direito de me despojar dos academicismos para retratar o que sinto
quando escrevo algo. Na verdade, eu não possuo uma única maneira de escrever. Nem
tão pouco procuro temas específicos para direcionar meu olhar. Escrevo aquilo
que inquieta meu ser. Aquilo que me perturba, ou que, no mínimo, fere o que eu
acredito ser correto, humano e digno de ser discutido. Então, para entender bem
o meu traçado com a palavra, é preciso entender um pouco do que é essa avalanche
chamada Diogo Didier. Nunca tentei me conceituar. Acho que nenhum ser humano
consegue se definir por completo. Entretanto, algumas coisas em mim são tão
perceptíveis que acabam resvalando em meus textos. Entre essas coisas, as
palavras felicidade e liberdade são as principais. Em minha mente, ser feliz é
ser capaz de se libertar das amarras que nós mesmos criamos. É arrebentar as
correntes da ignorância. É vencer as barreiras da discriminação. É trancafiar o
preconceito e viver sem tabus, sem bloqueios, aproveitando cada momento que a
vida pode oferecer.
Essa filosofia de vida,
(se é que pode ser chamada de filosofia), é a essência dos meus textos. Escrevo
sobre o que quero, como quero e do jeito que quero. Esses quereres nem sempre
são vistos e lidos da melhor forma possível. Vez ou outra alguém se manifesta
contrário ao que eu escrevo e isso é bom, pois confronta o meu eu e me faz
pensar sobre o ponto de vista do outro. No entanto, geralmente o meu ponto de
vista é tão persuasivo que não me permito retroceder a opiniões tachativas e
limitadas. Na verdade, escrevo para romper as limitações alheias. Para mostrar
a quem está do outro lado que existe outro olhar sobre o mesmo objeto. Faço isso
para alargar as mentes daqueles que são hipnotizados por esse sistema de
marionetes denominado de sociedade, onde alguns ditam e muitos obedecem sem
questionar. Não posso ver tudo isso e ficar inerte, como se o mundo a minha
volta não me pertencesse. Ele me pertence. Como pertence aos meus parentes,
amigos, colegas, alunos e tantos indivíduos que passam ou passaram pela minha
vida. Então, é no exercício da palavra que percorro as questões dessa gente
oprimida e mostro a elas que há uma possível saída e que esta não é impossível
de ser realizada, visto que ela reside dentro de nós mesmos.
Dentre os muitos temas,
destacam-se os polêmicos. Entende-se aqui por polêmica todos aqueles assuntos
que a sociedade trata superficialmente, ou pior, aqueles que ela insiste em não
querer ver o outro lado. Entre esses temas, os que giram em torno da
sexualidade humana são os mais comuns em meus escritos. Nunca me conformei com
essa ideia tacanha do sexo mecanizado, que só se realiza para reproduzir um
novo ser. Nesse sexo sacralizado, o qual desconsidera o animal que orbita
nossas mentes no ato da cópula. Nesse sexo limitado, que não encara a
sexualidade humana de forma plural, limitando os indivíduos a seguirem moldes preestabelecidos.
Não me conformei e ainda não me conformo, pois vejo o quão perigoso são os
discursos daqueles que defendem uma ideia de uma sociedade puritana, onde o
sexo é meramente realizado para fins nascituros. Por outro lado, não desejo, nem escrevo, que a
sociedade entre numa onda de libertinagem e baderna. Não propago a intolerância
nem tão pouco a transgressão da ordem vigente. Apenas gosto de pontuar a
mudança, a qual começa lentamente nas mentes de alguns e pode alcançar grandes
proporções se chegar ao todo. Gosto de provocar.
Acontece que a minha
capacidade de verbalizar não se limitou apenas a atmosfera do sexo e suas
variáveis. Com o passar do tempo e a prática redacional, eu comecei a enxergar
o mundo de outra forma, a começar pelo meu mundo. Minha vida, minha casa, meu bairro, as
pessoas que nele vivem e em seguida o Brasil. Todos começaram a ser vistos por
mim por outros ângulos. Eu não mais andava pelas ruas alheio as coisas que me
circundavam. Agora, tudo me chamava atenção, como ainda chama. O ponta pé
inicial para isso foi quando uma grande professora que tive disse que eu
deveria ler o mundo a minha volta. Nunca pensei em ler a realidade e nela as
suas variadas cores, formas, objetos e pessoas. Sempre pensei em leitura como
algo clássico, erudito, restrito ao ambiente literário proporcionado pelos
livros e seus autores mais renomados. Só mais tarde entendi que a citação da
professora nada mais era do que a visão de outro grande mestre, o saudoso Paulo
Freire, o qual lutou para que tantas crianças e adultos pudessem enxergar um
mundo em volta deles. A partir dai, comecei a ver tudo diferente. A questionar
as coisas. A ser mais observador. A aguçar meus sentidos, começando pela visão
e, a posteriori, a audição e o tato. Incrivelmente, como esse exercício,
comecei a ver melhor as coisas que não via antes. A não só ouvir, mas a
entender o que ouvia. E a captar com mais sensibilidade na pele aquilo que
escapava dos outros sentidos.
Desde então, ando
transformando a minha escrita. Se estou na rua e vejo um mendigo, procuro ver o
que levou aquele indivíduo a tal situação. Se alguém joga lixo no chão, mesmo
podendo guardar para direcionar ao lugar correto, me questiono sobre o porquê
de tanta inconsciência. Se presencio algum caso de preconceito com o diferente,
tento buscar estratégias que sejam capazes de explicar o que leva os iguais a
se tratarem como estranhos. Faço isso também ao ouvir uma música, ao ler um
poema, ao ver uma tragédia na mídia. Procuro me sensibilizar com a desgraça
alheia. Tento tomar partido em alguns momentos, mas como sou muito pequeno, só
me resta à palavra para registrar a minha insatisfação e, quem sabe, motivar a
ação de alguém, de fato, poderoso. Nesse sentido, escrevo não só porque sou
professor, ou para provar algo para mim mesmo ou para o outrem, que muitas
vezes nem sei quem é. A escrita para mim é um instrumento de subversão. Com ela
eu tenho o poder nas mãos e consigo utilizá-lo em prol dos meus propósitos. A cada
texto feito, sinto que uma nova batalha foi vencida. Não sei se ganharei a
guerra. Acho que estou distante de tal proeza. Entretanto, continuo belicoso na
frente de batalha e convido comigo outros soldados com coragem o bastante para
brigar pelas causas das quais eu acredito.
Por tudo isso, escrevo.
Para libertar as minhas inquietações, que no fundo no fundo, não são só minhas.
Escrevo para ressuscitar ideias que andavam embalsamadas, esquecidas e
renegadas. Escrevo, porque é na palavra que encontro a verdade da minha
existência, o verdadeiro sentido de ainda está vivo. Escrevo por necessidade,
pois não conseguiria permanecer vivo sem conseguir registrar o que acredito,
penso e sinto. Escrevo por profissão, pois é através do ato redacional que
tenho recolhido grandes frutos para minha vida. Escrevo ainda por contemplação,
detalhando aquilo que o outro não é capaz de ver sozinho. Escrevo e quero
continuar escrevendo para alimentar meus sonhos e realizar meus desejos.
Escrevo para ser compreendido, lido, interpretado, questionado, aplaudido ou simplesmente
lembrado. Escrever me oferece tudo isso e ainda me dá a chance de ser eu mesmo.
A escrita possibilita essa interação. Ela não é egoísta, nem restringe aqueles
que procuram navegar em suas águas. Pelo contrário, ela está sempre aberta a
quem estiver disposto a compartilhar coisas bacanas e construtivas através das
suas inúmeras facetas. Por isso escrevo
e sei que no futuro colherei frondosos frutos dessa árvore chamada escrita. Enquanto
isso, continuarei o meu trabalho como semeador da palavra, para que outras
pessoas possam futuramente ser donas do seu próprio jardim.
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